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Maria Teresa Horta (1937-2025). Senhora dona de si

Em 2024, a BBC destacou-a na lista das mulheres mais influentes em todo o mundo. Mas Portugal não precisava desta distinção para reconhecer o quanto deve à escritora, poetisa e militante feminista Maria Teresa Horta, que morreu esta terça-feira, na sua Lisboa, aos 87 anos.

Foto: Sebastião Almeida
04 de fevereiro de 2025 às 15:46 Maria João Martins

Ainda não tinha 50 anos e era já uma lenda viva nas redações por onde tinha passado: Os homens temiam-na, as mulheres, mesmo as que lhe receavam o juízo implacável, admiravam-lhe a imensidão da coragem. Com Maria Teresa Horta, que morreu na manhã deste dia 4 de fevereiro de 2025, aos 87 anos, desaparece também a última das Três Marias (as outras eram as escritoras Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa) que afrontaram a moral bafienta do Estado Novo, ao publicarem Novas Cartas Portuguesas, com edição de outra mulher maior do que o país, Natália Correia. Mas o seu legado cívico e literario mudou, espera-se que para sempre, as vidas das mulheres portuguesas.

Foto: Sebastião Almeida/ @MÁXIMA

Maria Teresa nasceu em Lisboa a 20 de maio de 1937 numa família na aparência conservadora, mas pouco convencional, desde logo porque descendia da Marquesa de Alorna, Leonor de Almeida Portugal, poetisa setecentista e grande figura de mulher, a quem, em 2011, dedicou o romance de mais de 1000 páginas, As Luzes de Leonor.

Mas também porque, como revela Patrícia Reis na biografia exaustiva, A Desobediente (publicada no ano passado), a mãe era um pouco diferente das mulheres da sua geração: "Acho que ela se tornou feminista por causa da mãe. É o primeiro exemplo de uma mulher que queria viver a sua vida e foi condenada pela sociedade e pela família a ser constantemente vilipendiada e humilhada. Acredito que muita da reivindicação de liberdade da Teresa passa pela Carlota de Mascarenhas, que era uma mulher deslumbrante e que rivalizava as suas toilettes com a Natália Correia, no Teatro de São Carlos. O pai, por outro lado, achava a filha mais velha muito estranha e não se cansava de o dizer. Em criança, as pessoas atiravam-lhe em cara que ela ia ser como a mãe, que ia ter muitos amantes, que não se calava. Era pesado." (Entrevista ao Diário de Notícias, 7/4/2024).

Foto: Sebastião Almeida/ @MÁXIMA

Menina e moça, Maria Teresa Horta frequentou o Liceu Dona Filipa de Lencastre, em Lisboa, e depois a Faculdade de Letras. Estreou-se na poesia em 1960, com Espelho Inicial. No ano seguinte participou com Tatuagem no movimento Poesia 61, de que também faziam parte nomes maiores da literatura portuguesa contemporânea como Gastão Cruz, Fiama Hasse Pais Brandão, Luiza Neto Jorge e Casimiro de Brito.

Mas a notoriedade pública surgiu com Novas Cartas Portuguesas, obra publicada em 1971. Glosando o título clássico de Cartas Portuguesas, atribuídas à freira amorosa Soror Mariana Alcoforado, o livro reúne cartas, ensaios, poemas e fragmentos de vária ordem, "saltando" entre o uso das línguas portuguesa e francesa. Tudo começa com uma carta datada de 1 de março de 1971 e termina com um fragmento de 25 de outubro do mesmo ano. Mas com a notoriedade pública veio também a perseguição política: A ditadura, mesmo no seu estertor, sentiu-se afrontada pela liberdade das três Marias. Os textos foram considerados "imorais" e "pornográficos", pois retratavam mulheres livres, que questionam a sua identidade e expressam o desejo de ter acesso a novas ideias sociais, religiosas e a outras vivências do corpo e do erotismo. Foi-lhes, por isso, instaurado um processo judicial, que seria encerrado dias após o 25 de Abril de 1974. Além da perseguição política, as três autoras foram vítimas de ameaças várias e Maria Teresa foi mesmo agredida na via pública, tendo sido hospitalizada na sequência desse ataque.

Foto: Sebastião Almeida/ @MÁXIMA

Jornalista de ofício (tal como o seu segundo marido, Luís de Barros), publicou com assiduidade em jornais como Diário de Lisboa, A Capital, República, O Século, Diário de Notícias e Jornal de Letras, Artes e Ideias. No vespertino A Capital dirigiu o suplemento Literatura e Arte, por onde passaram, nessa época, nomes como Natália Correia, Ary dos Santos, José Saramago, Alexandre O’Neill e Mário Cesariny de Vasconcelos, entre outros. Foi também chefe de redação da revista Mulheres, marco fundamental da imprensa feminista em Portugal, publicada entre 1978 e 1989. Ao serviço desta revista, entrevistaria grandes nomes das artes e da literatura como Marguerite Duras e Marguerite Yourcenar.

Foi distinguida em 2011 com o Prémio D. Dinis, da Fundação Casa de Mateus, pelo romance As Luzes de Leonor, embora se tenha recusado a recebê-lo das mãos do primeiro-ministro Pedro Passos Coelhos, que cabia entregá-lo, alegando que este está "a destruir o país". Nesse ano ganhou ainda o Prémio Máxima de Literatura pela mesma obra. Em 2014, recebeu o Prémio Consagração de Carreira da Sociedade Portuguesa de Autores e o ministério da Cultura distinguiu-a com a medalha de mérito cultural, em 2020. No ano passado, a BBC colocou-a entre as 100 mulheres mais influentes e inspiradoras do mundo.

Foto: Sebastião Almeida/ @MÁXIMA

Entre as suas principais obras contam-se, na poesia, Minha Senhora de Mim (1967); Educação Sentimental (1975); As Mulheres de Abril (1976); Poesia Completa I e II (1960-1982) (1982); Os Anjos (1983); Minha Mãe, Meu Amor (1984); As Palavras do Corpo - Antologia de poesia erótica (2012); Poemas para Leonor (2012); Poesis (2017); Estranhezas (2018). Na ficção, são de destacar, entre outros títulos,  Ambas as Mãos sobre o Corpo (1970); Ana (1974); Ema (1984); A Paixão Segundo Constança H. (1994); A Mãe na Literatura Portuguesa (1999); As Luzes de Leonor (2011); A Dama e o Unicórnio (2013) e Meninas (2014).

A militância feminista e política (chegou a ser militante do Partido Comunista Português) nunca a impediram de encarar a condição feminina na sua multiplicidade (e desigualdade) como demonstra este poema: "Onde uma tem/O cetim/A outra tem a rudeza/Onde uma tem/A cantiga/A outra tem a firmeza/Tomba o cabelo/Nos ombros/O suor pela barriga/Onde uma tem/A riqueza/A outra tem/A fadiga/Tapa a nudez/Com as mãos/Procura o pão/Na gaveta/Onde uma tem/O vestígio/Tem a outra/A pele seca."

Do mesmo modo, os desígnios da luta não lhe travaram a vivência e a expressão da paixão amorosa e carnal. Como escreve no poema "Segredo": "(…) Deixa que feche o anel/em redor do teu pescoço/ com as minhas longas/ pernas e a sombra do meu poço/Não contes do meu/ novelo nem da roca de fiar/ nem o que faço com eles/a fim de te ouvir gritar (…)."

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