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"Comecei a receber atenção através do meu corpo, era estranho e assustador, eu continuava a ser uma criança de 13 anos"

“Não se nasce mulher, torna-se”, uma experiência singular/universal, comunitária/solitária, silenciosa/gritante. Se o nosso corpo falasse, contaria histórias que são tanto nossas quanto de outras mulheres, emaranhadas numa sociedade na qual crescemos para ser livres, mas quase sempre com um guião. Ahhh, mas ele fala, e se fala! Pergunte à mulher que está ao seu lado, pergunte à Ana ou à Matilde, cada uma (sobre)vivendo na sua forma, na sua vida, no seu corpo.

Foto: Pexels
09 de janeiro de 2025 às 16:40 Patrícia Domingues

"Desde o momento em que tive o período, que foi bastante jovem, sinto que perdi o controlo sobre mim. Foi traumático. Senti que a minha infância estava, de certa forma, a ir embora, mas mentalmente a minha cabeça ainda existia neste espaço de criança. Quando comecei a receber atenção através do meu corpo – seja de colegas da escola ou piropos e carros a apitar –, era estranho e assustador, porque, enquanto continuava a ser uma criança de 13 anos, as pessoas e os adultos tinham reações como se não fosse. Aconteceu com tanta frequência e intensidade que comecei a achar que essa atenção era uma coisa positiva e comecei ativamente a procurá-la. Acabei em situações para as quais não estava preparada. Achava que o meu valor dependia da atenção que recebia através do meu corpo.

Depois de experiências de abuso sexual e hipersexualização, acho que a única tática que consegui encontrar para ultrapassá-las foi passar por uma grande fase de experimentação em termos da minha aparência. Mudar o meu cabelo, a forma de vestir – nunca com uma direção definitiva, nem a tentar seguir uma tendência ou tentar ser outro tipo de pessoa, mas tentando encontrar o que me fizesse sentir bem sem ser pensar no que podia ser apelativo aos olhos dos outros.

Sentia muita raiva e tentei transformá-la em algo construtivo – não digo que tenha conseguido sempre, mas era essa a intenção. Durante o período de Covid, no qual estávamos dentro de casa, houve uma segurança em poder reavaliar-me e uma certa obrigação em estar apenas comigo, sem julgamento exterior (positivo ou negativo). Comecei a refletir sobre todas as coisas que condicionavam o meu corpo, deixei crescer os meus pelos, rapei o meu cabelo, comecei a vestir coisas nas quais estava verdadeiramente confortável. Fui testando para ver como as coisas mudavam, em mim ou nos outros, e o que percebi é que as pessoas vão ter sempre opiniões, mas, se estiveres bem contigo, não tem esse impacto. Isso retira-lhes esse poder. Se estás confiante e tens a coragem de o fazer, a probabilidade de alguém te dizer alguma coisa é muito pouca. 

Consciente ou inconscientemente, sempre fui atraída pela figura feminina. Na faculdade, comecei a olhar para artistas dos anos 70 e 80, um dos momentos fortes em termos de performances e que simbolizou quase um build-up, uma panela de pressão que teve de ser libertada. As pessoas podem olhar para essas performances e achar que é loucura, mas eu vejo-as como uma necessidade de digerir essa loucura para ela não te consumir. Comecei a pesquisar sobre vários performers e conheci algumas pessoas que já tinham explorado esse território e comecei a fazer, primeiro para poucas pessoas, agora para muitas. Nessa altura, conectei-me de novo com o barro, que também tinha sido algo que tinha trabalhado quando era mais nova, e parece que tudo começou a fluir. O que mais gosto no barro é que é muito semelhante à nossa pele, ao nosso corpo, no sentido em que cresce e diminui, estica e parte. Outro dos factos que me despertou a atenção foi o de algumas tribos africanas constituídas só por mulheres conseguirem subsistir através do barro, da venda de peças, e daí terem ganhado a sua independência.

Também queria tentar fazer performances porque era quase como um teste: ‘Será que posso mesmo relacionar-me com o meu corpo e num espaço com outras pessoas e ter este controlo de volta?’ Ao início, era desconfortável colocar-me nesta posição em que nunca mais tinha estado desde que era um bebé, que estava nua na praia e a brincar e enrolada na areia. Aí, és só uma criança e estás a explorar o mundo através do teu corpo, tal como os animais. A performance não é a única forma de o fazermos – de atingir esse estado quase infantil, natural, nativo – mas para mim é. Por nunca ter tido oportunidade de expressar a minha angústia, ou ter tido tentativas de comunicar – mas as pessoas não sabiam como digerir ou o que dizer –, sinto que, finalmente, posso contar o meu segredo num lugar seguro onde vai ser aceite. Parte dessas performances foi expressar o que me aconteceu e estar num lugar onde as pessoas vão recebê-lo sem acontecer nada. No bom sentido. Sem ter pessoas a não acreditar ou a serem rudes, isso também é bastante healing. Sendo um contexto em que não só estou nua, como a interagir com o barro, as pessoas veem essa vulnerabilidade e percebem. Não têm outra resposta a não ser serem empáticas. Cada vez mais temos tendência para ser duros e frios uns com os outros, mas acredito que a única forma de nos entendermos é ao sermos vulneráveis."

Texto originalmente publicado na revista anual da Máxima, de novembro de 2024.

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