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Histórias de Amor Moderno: “Voltou-se para o rapaz que mandava piropos e abanou a cabeça com uma expressão de nojo"

“Todos os presentes tinham optado pela solução ‘ignoremos e esperemos que passe’, em vez de escolherem a confrontação.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: IMDB "Lost in Translation"
24 de maio de 2025 às 07:00 Máxima

"Dantes, os homens eram mais valentes", disse-me Sara, com um ar desapontado, pegando no blusão e na carteira. Saiu do bar e imagino que tenha ficado à espera que eu fosse atrás dela. Não fui. Talvez eu não seja, de facto, um homem valente - e se esse é um critério importante para as escolhas de Sara, então procedo ao exercício de autoexclusão. Posso não saber o meu lugar, mas sei perfeitamente onde é que ele não fica: ali, onde se encontram os homens valentes como os de antigamente, segundo Sara.

A descrição da situação não merece muito detalhe. Um tipo bêbado, acompanhado de outros quatro ou cinco amigos, também eles bêbados, estava num bar a mandar piropos às mulheres. De vez em quando, metia-se com uma. Estava a ser incoveniente, mas a figura triste superava largamente os efeitos da sua inconveniência. Sara assistia a tudo como se se metessem com ela. Só que ninguém se tinha metido e, na verdade, também ninguém ligava ao rapaz bêbado e inconveniente - não digo que essa fosse a reação moralmente mais correta, mas presumo que todos os presentes tenham optado pela solução "ignoremos e esperemos que passe", em vez de escolherem a confrontação, que muito provavelmente levaria a uma sessão de pancadaria triste e, quem sabe, até muito mais violenta do que o caso merecia.

Mas para Sara aquilo não estava bem. Sentia-se incomodada, o que é legítimo - é até lógico, natural, quase exigível. Eu próprio estava incomodado. Só que eu, tal como os restantes, preferi fingir que nada daquilo me incomodava de modo a preservar a paz e a prevenir desfechos de gravidade imprevisível. "Não dizes nada?", perguntou Sara. Encolhi os ombros. No momento anterior, estávamos a conversar sobre viagens, a recordar a do verão passado e à procura de consenso para um novo destino no verão que aí vinha. Para quê interromper? "São uns idiotas, se ninguém lhes ligar, não passa disto, vão-se embora." Sara discordou. Voltou-se para o rapaz que mandava os piropos e abanou a cabeça em sinal de desaprovação enquanto, com o rosto, construía uma dramática expressão de nojo. Ele olhou para ela com um certo ar intirgado, fez uma pose à bully dos filmes hollywodescos de adolescentes em que o rapaz popular se dirige a alguém de forma confiante e carregada de desdém. "Calma, baby… também não és nada de deitar fora."

Nesse ponto, deixei-me ficar a olhar para o telefone enquanto pegava na caipirinha. Não me apetecia cruzar olhares. Não queria estar naquela situação. Sara dirigiu-se a mim, "não vais fazer nada?" Não respondi. "Ah estás com o namorado… peço desculpa, peço desculpa - peço desculpa a ti e ao namorado", disse o rapaz bêbado, com a voz arrastada e a dicção possível. Depois virou-se para os amigos e riu-se à gargalhada. Os outros também riram. Sara abriu muitos os olhos quando olhou de novo para mim, de modo mais insistente, como quem diz "então? Nada?" Encolhi os ombros, de novo. "O rapaz já pediu desculpas", disse-lhe, com o pragmatismo mais neutro que consegui incorporar na minha atitude, tornando-me quase snob. Há quem faça como os gatos e se assanhe muito, há quem prefira ser um panda vermelho e aumente o volume para se tornar assustador; eu, numa situação de confronto, prefiro assumir a postura do pavão: contemplem-me à vossa vontade, desde que não me aborreçam.

Sim, foi depois disso que Sara saiu clamando que "dantes, os homens eram mais valentes". Eu continuei a beber a minha caipirinha, que não era nada de espetacular, de resto. Inflacionada, tinha excesso de açúcar e uma cachaça de qualidade muito duvidosa. Chamei o barman, "mais uma?", perguntou. Respondi-lhe que não, "já tive castigo que chegue por hoje", e pedi-lhe a carta de vinhos. "Puto", disse o rapaz bêbado dos piropos aproximando-se de mim, "puto, desculpa aí, a sério". Olhei para ele, que continuou, "não queria que a tua miss se chateasse contigo, mano, estou só no gozo". Sorri e disse-lhe tranquilamente que, epá, pois, mas a inconveniência tende a ter consequências, e que nem todos temos o mesmo espírito, e que, além disso, é um bocado triste um tipo andar a meter-se com mulheres, mas que raio, estamos em 2025, desde quando é que isso hoje em dia era aceitável?

Olhou-me com algum espanto - confesso, não sei se hoje em dia é aceitável ou não; tive a felicidade de crescer num mundo que ia progredindo e em que se tornou óbvio que certos comportamentos eram manifestamente inaceitáveis, mas estou desatualizado e, olhando em redor, acredito que também neste momento particular estejamos a viver um retrocesso. "Puto… mano, tens toda a razão", disse o rapaz, e abraçou-se a mim como se tivesse tido uma epifania. "Garçon", disse ele, "dê-lhe o que mano quiser beber, pago eu." Nesse momento, o "garçon" chegou com a carta de vinhos, "não é preciso pagares nada, amigo", disse eu ao rapaz, mas ele fez questão, insistiu e eu acabei por aceitar. Pedi um copo de Vale Meão 2011, o barman sorriu e o rapaz perguntou "Vale Meão? Isso é Douro? Boa escolha, gosto do Douro". É Douro, confirmei.

Nessa noite, cheguei muito tarde a casa. Aproveitei a inesperada solidão daquela sexta-feira-à-noite para deambular pelos habitats dos noctívagos da cidade. Parava num sítio, pedia a minha bebida e contemplava. Observava o ambiente em redor, os comportamentos, as posturas. Aproveitei para refletir um pouco sobre o que acontecera no primeiro bar, sobre a parvoíce do rapaz bêbado e a reação de Sara. A princípio, aceitei que não compreendia nenhuma das duas. Mas, quanto mais fui pensando, mais me senti intrigado, quase desafiado. Por um lado, o comportamento bruto e quase bizarro de um rapaz armado em macho, sem a menor noção de educação e, acreditei eu no momento, com muito reduzidas probabilidades de ter algum sucesso entre mulheres. Contudo, à medida que fui observando os outros ambientes por onde passei, notei que aquele tipo de figuras se multiplicava: rapazes, homens jovens, comportavam-se como primatas em época de acasalamento. Nalguns casos, nem lhes faltava grunhir, só mesmo bater no peito. É possível que, afinal de contas, nos dias que correm aquele comportamento tivesse algum sucesso.

Todavia, o que mais me intrigava era a reação de Sara, exigindo de mim, talvez, que me impusesse, que me entregasse a essa disputa de machos ainda por civilizar, em defesa de sabe-se lá o quê, mas não creio que fosse da sua honra, que essa permaneceu intacta. Eu acredito no cavalheirismo, mas também tenho a convicção de que reduzi-lo a essa regra de fazer peito por dá cá aquela palha tem muito mais de estúpido do que de nobre. Há maneiras bem mais distintas, inteligentes e vantajosas de mostrar superioridade sobre quem nos afronta. Desiludiu-me aquela sua afirmação, "dantes, os homens eram mais valentes" - e não foi por me ter, de modo algum, melindrado ou inferiorizado. Foi porque me pareceu pouco inteligente, pouco sensível. Pouco lógica.

Nessa madrugada, mesmo tendo aterrado tardíssimo na cama - lá fora, a aurora já despertava - era incapaz de dormir. Possivelmente, pensei demasiado. Talvez o assunto não fosse de tamanha importância. Talvez aquilo que eu bebi me tivesse causado uma estranha insónia. Na minha cabeça, passava em loop a frase "dantes, os homens eram mais valentes". Havia nela várias coisas profundamente incómodas. O saudosismo, a noção distorcida de valentia, a generalização. A injustiça. A inutilidade.

Dias mais tarde, Sara tentou telefonar-me, mas não atendi. Não sei o que poderá querer dizer-me, mas seja o que for, também não saberei o que responder-lhe. Deixou-me depois uma mensagem, "gostava de falar contigo", dizia. Mas eu não sei se gostava de falar com ela.

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