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Histórias de Amor Moderno: “O Padre Daniel mostrava por mim uma dedicação extrema”

“Por alguma razão que não sei identificar, senti que o Padre Daniel tentava explicar com a razão aquilo que o seu coração contrariava.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: RTP
30 de março de 2024 às 12:29 Máxima

"Perdoa-me, Pai, porque eu pequei", é assim que começo sempre a minha oração, todas as manhãs, todas as tardes e todas as noites. Dantes eu dizia, como todos vocês dizem, "perdoai-me, Senhor", mas precisava de me sentir mais perto d’Ele, mais próxima, mais familiar, para que o meu pedido fosse mais sincero e profundo e para que o Seu perdão fosse possível: "perdoa-me, Pai, porque eu pequei". É que eu pequei muito mais do que vocês todos.

Eu era uma menina comum, sem nada que me diferenciasse especialmente das outras da minha idade. Era até um pouco gordinha, mas nada que me transformasse em alvo de chacota e motivo de risada. Quando chegou a puberdade e o corpo se começou a desenvolver - quantas vezes o corpo das raparigas não começa por se desenvolver nos sítios onde não devia, nem sempre estamos preparadas para a evolução repentina daquilo que é tão natural em nós, mas que tantos olhares desperta nos outros -, as minhas feições tornaram-se menos harmoniosas e ganhei algum peso. As moças da minha idade começaram a cativar os corações dos rapazes. Já eu nada tinha que lhes interessasse.

Na altura, eu andava na catequese e ia à missa, naturalmente, e como todas as raparigas e rapazes da minha idade. E era na igreja que eu encontrava conforto. Não me refiro apenas ao aconchego por estar próxima do Senhor e de Lhe sentir a proximidade na casa de Deus. Falo de uma sensação mais concreta, a de ser notada com bondade e com atenção, a de ser ouvida, atendida e, muitas vezes, elogiada. Por ser comportada, por ser digna, por ser boa no coração, por respeitar os outros, por saber os salmos e ter na ponta da língua a palavra do Senhor.

O Padre Daniel era quem mais me acompanhava e mostrava por mim uma dedicação extrema. Queria saber como corriam as coisas na escola, se tinha em casa tudo aquilo de que precisava, se os meus pais me acarinhavam e seguiam como era suposto, se as pessoas se comportavam comigo com gentileza, com educação, com boa-fé. Aos poucos, desenvolveu-se entre nós uma verdadeira amizade, sendo que eu sentia pelo Padre Daniel um fascínio especial, que nenhum outro colega ou rapaz da escola conseguira despertar em mim. O Padre Daniel era jovem e era charmoso, bem-falante, tinha uma voz muito bonita - não era demasiado grave, o que lhe acrescentava qualquer coisa de juvenil, mas o seu tom era baixo o suficiente para lhe sentir a vibração ao mesmo tempo que a ouvia. Era muito tranquilizante.

Eu era muito nova, tinha os meus 14 anos, quando confessei ao Padre Daniel os meus sentimentos que, por essa altura, e alimentados pelas hormonas fosforescentes que se acendiam no oceano de novas sensações que eu ia experimentando, se haviam transformado em paixão. Uma paixão inexorável.

Numa comunidade pequena, onde o padre da paróquia é sempre tido como exemplo, como voz soberana, às vezes como ídolo, não é assim tão extraordinário que as raparigas desenvolvam por ele paixonetas, especialmente se for jovem e bem-parecido, como era o caso. Só que eu era ainda pouco mais que uma criança e aquilo que nasceu e foi crescendo em mim não foi só uma paixoneta: foi muito mais do que isso. Foi uma paixão avassaladora que, como acontecia comigo aos poucos, foi engordando, ficando cada vez maior.

O Padre Daniel defletiu a conversa da primeira vez que lhe confessei os meus sentimentos, e eu não insisti. Mas, mais tarde, voltei ao assunto e, dessa vez, ele disse-me com a sua serenidade constante que esses pensamentos eram normais, mas que não passavam de ilusões, porque, embora partilhássemos a fé e o amor a Deus, e nos encontrássemos sob o teto daquela igreja com uma regularidade praticamente diária, vivíamos em mundos diferentes: eu, no secular, ele no religioso. Obedecíamos a regras diferentes, as minhas eram civis, as dele eclesiásticas. Não éramos compatíveis.

Por alguma razão que não sei identificar, senti que o Padre Daniel tentava explicar com a razão aquilo que o seu coração contrariava. Senti que ele gostava verdadeiramente de mim, embora eu ainda fosse muito nova. Talvez as pessoas não conheçam a força que tem a paixão de uma jovem mulher. Ou talvez a subestimem, ainda que a conheçam. Tinha eu pouco mais de 16 anos, as minhas rotinas na igreja mantinham-se, sempre fui não apenas devota como profundamente presente. E a minha paixão pelo Padre Daniel nunca parou de crescer. Então houve um dia em que pus de lado a modéstia e, a sós com ele, decidi revelar mais do que uma mulher deve, principalmente a um padre. Pecámos. Dizem que a carne é fraca, e talvez seja mesmo. Não pensámos, fomos em frente. Pela primeira vez na vida, senti que o meu corpo robusto era apreciado, e ao mesmo tempo ia-me sentindo invadida, ocupada. Possuída. E amada.

Depois dessa primeira vez, os nossos encontros carnais repetiram-se. Misturávamos arrependimento com desejo, e depois mais arrependimento, e de novo o desejo. Era um ciclo infinito, uma espiral em que tentávamos, sem jeito nem sucesso, equilibrar o que nos mandavam os ensinamentos e o que sentiam os nossos corações. Num momento, éramos tementes e obedientes, no seguinte éramos bichos selvagens consumidos pela tentação.

A nossa relação foi-se tornando perigosa, foi gerando desconfianças. Os meus pais faziam-me perguntas. As minhas amigas olhavam-me com instinto inquisidor. Eu e o Daniel sentíamos desconforto. Falávamos daquilo que podíamos fazer, do que não podíamos. Já nem equacionávamos o que devíamos ou não, porque essa barreira fora superada muito tempo antes, muitas noites e muitos recantos secretos atrás.

"Eu deixo esta vida e caso-me contigo", disse-me o Daniel, enquanto me segurava as mãos e me olhava nos olhos. E eu guardei o que ele disse, como se engolisse uma verdade nova, e deixei que o meu coração a digerisse. Poucos dias mais tarde, perguntei-lhe: "Lembras-te do que me disseste?" E ele disse que sim. Acrescentou que não mudava uma palavra e que o seu desejo se mantinha intacto: se eu aceitasse casar-me com ele, deixava o sacerdócio e construíamos uma família. Era a única forma de contrição possível, a única maneira de expiarmos os nossos graves pecados.

Nessa noite não dormi. Durante horas, às voltas na cama, pensei e revi todos os momentos que passámos juntos. Pensei também em todas as formas de amor e pensei no maior de todos os amores. Pesei a minha vida, a vida do Daniel, a minha família, a comunidade. Auscultei a minha paixão, os meus desejos e aquilo que sentia da maneira mais profunda. E então decidi falar com os meus pais, primeiro que tudo. Na manhã seguinte, pedi-lhes para conversarmos e dei ao pedido o tom sério, severo e solene que este tipo de solicitação deve ter. Contei-lhes tudo o que tinha acontecido. Foram ouvindo. Não falaram enquanto eu falei. A minha mãe chorava em silêncio, sem soluços, deixando apenas as lágrimas descerem-lhe pelo rosto. O meu pai ouvia, cabisbaixo. "O que pretendes fazer?", perguntou-me quando, por fim, eu não tinha mais o que dizer. "Pretendo redimir-me", disse-lhe. E ele anuiu, compreensivo.

Fui então falar com o Daniel e abri-lhe o meu coração. Disse-lhe que seria incapaz de destruir a sua vida e a sua vocação. Que aquilo que aconteceu entre nós foi apenas humano, e que nenhum dos dois tinha verdadeira culpa pela sua fraqueza - se Deus nos fez assim foi para nos testar. E nós falhámos, mas é sempre possível procurar a redenção. Só que eu queria procurá-la de outra forma. Não queria arrastá-lo comigo, como se isso fosse inevitável. Eu trilharia o meu próprio caminho aceitando todas as consequências. "O que destruímos jamais poderá ser consertado", respondeu-me, com lágrimas nos olhos. "Não posso continuar a ser padre", disse. Mas eu já não lhe respondi. Abracei-o e despedi-me. Chorávamos os dois.

Os caminhos do Senhor são insondáveis, por vezes sinuosos. Mas, se prestarmos atenção, percebemos que todos, de uma maneira ou de outra, nos levam até Ele. Decidi tornar-me freira. Decidi carregar comigo a culpa pelo que fiz e pela minha fraqueza, devotando-me a Deus, mostrando-Lhe diariamente que a minha paixão por Ele é a maior de todas e que o amor terreno e carnal que Ele me permitiu sentir, e que tão feliz me fez durante algum tempo, é incomparável àquele que sinto por Ele, meu Pai. E todos os dias Lhe peço perdão, de manhã, à tarde e à noite. E todos os dias assim farei até que, em toda a Sua bondade, decida levar-me para junto d’Ele.

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