Apesar dos defeitos, “A Substância” merece o título de filme do momento
Com Demi Moore e Margaret Qualley como protagonistas, foi exibido durante o Festival Motelx, e chega aos cinemas a 31 de outubro.

É difícil pensar num filme mais conectado com o zeitgeist do que A Substância (2024), realizado por Coralie Fargeat e protagonizado por Demi Moore e Margaret Qualley. Afinal, trata-se da história de uma estrela de cinema – batizada com um nome pouco subtil, Elizabeth Sparkle – que é despedida no dia do seu 50º aniversário e decide injetar uma substância que promete trazer de volta todo o vigor e sex-appeal da juventude. A embalagem pode até lembrar produtos como Botox ou Ozempic, tão em voga atualmente, mas o processo não é tão simples. Da espinha dorsal de Elizabeth nasce outra mulher, cheia de colagénio: Sue. A ideia é que as duas mulheres façam um revezamento: uma semana como Elizabeth, outra semana como Sue. No entanto, Sue desrespeita as regras e as coisas começam a correr mal.


O medo do envelhecimento não é uma novidade; já foi explorado tanto na literatura, mais notoriamente n’O Retrato de Dorian Gray, escrito por Oscar Wilde em 1890, quanto nos filmes de hagsploitation (termo usado para a demonização de mulheres mais velhas nas telas), como O Crepúsculo dos Deuses (1950), de Billy Wilder, O que teria acontecido a Baby Jane? (1962), de Robert Aldrich, e A morte fica-vos tão bem (1992), de Robert Zemeckis. Assim como os seus predecessores, A Substância situa-se entre a sátira, o horror e o camp. É comum que os filmes de hagsploitation tenham um forte teor misógino, mas aqui a ideia é utilizar esse recorte que tantas vezes é problemático para fazer uma crítica feminista. A questão é: essa crítica feminista é bem-sucedida?

A Substância ganhou o prémio de melhor argumento no Festival de Cinema de Cannes, mas há falhas na narrativa. O que é que Elizabeth tem a ganhar com o uso da substância se quem se beneficia do gozo da juventude não é ela, mas sim Sue? Quando Sue está no comando, ela apresenta o seu trabalho na televisão, usufrui das benesses da fama, conhece homens interessantes e faz sexo. Mas, quando é Elizabeth, o máximo de prazer possível está na comida, e ainda assim, sozinha. Afinal, Elizabeth e Sue são realmente a mesma pessoa, como dizem as instruções do produto? Podemos, também, fazer a mesma pergunta em relação a nós: seremos a mesma pessoa que éramos há vinte anos?! E, como no filme, tampouco estamos isentos de sofrer as consequências estéticas de escolhas feitas durante a juventude (como, por exemplo não usar protetor solar).


É quase impossível não reagir de modo visceral ao terceiro ato do filme – para evitar spoilers, os detalhes aqui serão vagos. Em suma, o desrespeito às regras da substância gera envelhecimento acelerado, a ponto de a personagem assemelhar-se a um cartoon de uma velha bruxa dos contos de fada. E, mais adiante, a figura ganha uma fisicalidade cada vez mais monstruosa, a ponto de não restar mais nenhum vestígio de humanidade. O que nós, o público, deveríamos sentir ao testemunhar a velhice sendo representada como monstruosidade? O objetivo intelectual parece ser uma crítica à valorização excessiva da juventude na sociedade, mas a escolha estética é feita para produzir asco à velha/monstro.


A ideia do filme surgiu quando Coralie Fargeat completou 40 anos: "Eu só pensava: ‘A minha vida acabou. Eu não vou ser mais interessante. Ninguém mais vai olhar para mim’. Eu tive pensamentos violentíssimos que eram tão poderosos que eu pensei: ‘O momento de fazer algo a respeito é agora’", declarou a realizadora à IndieWire.

É um pensamento que, infelizmente, é comum a muitas mulheres, mas, em especial, àquelas que vivem da imagem. Demi Moore é uma escolha interessante para interpretar a protagonista, porque o seu star power é consequência, sobretudo, da sua beleza. Ao contrário das suas contemporâneas, também belíssimas, ela passou praticamente incólume pelos grandes prémios, como o Óscar. O seu corpo foi dissecado quando posou nua e grávida para a capa da Vanity Fair. O seu corpo foi dissecado quando fez 40 anos e apareceu de biquíni no filme Charlie’s Angels: Potência Máxima (2003) – e, para chamar ainda mais a atenção da imprensa para a sua idade, na altura namorava o ator Ashton Kutcher, 16 anos mais novo. E, sobretudo, o seu corpo foi dissecado nos vários filmes em que este foi explorado. Na sua biografia, Inside Out, publicada em 2019, a atriz relembra os bastidores de Proposta Indecente (1993): "De novo, eu estaria na vitrine. E só conseguia pensar no meu corpo, no meu corpo, no meu corpo."

A Substância é a grande oportunidade de Demi Moore garantir a sua primeira nomeação ao Óscar. Por um lado, a Academia Americana de Cinema adora histórias de atores que deram a volta por cima, como Brendan Fraser e Ke Huy Quan. No entanto, também prioriza filmes focados em diálogo, o que não é o caso deste.

Há uma razão para isso. Elizabeth e Sue falam pouco, porque o que importa não é a sua subjetividade, mas apenas a sua aparência. Tampouco interagem com outras personagens do sexo feminino. A única razão da sua existência é o olhar masculino que as deseja – ou deixa de desejar. O filme adere ao male gaze porque as suas personagens só existem para o male gaze (termo académico usado para denominar o olhar de desejo masculino da câmara).
Não é à toa que a cena mais pungente do filme ocorre em frente ao espelho: Elizabeth, prestes a sair para um encontro amoroso, ajusta a sua maquilhagem, sente-se insatisfeita com o resultado, adiciona mais blush, permanece insatisfeita, muda o batom, até que, num rompante de violência, destrói não só a maquilhagem, como também fere o rosto. E, sem coragem para encarar o olhar de desejo masculino, escolhe ficar em casa. Elizabeth já não tem um olhar próprio sobre si mesma, porque o seu olhar foi colonizado pelo olhar masculino. É a encenação perfeita da definição tão certeira feita por Margaret Atwood no seu livro The Robber Bride (1993): "Você é uma mulher com um homem dentro a observar uma mulher. Você é sua própria voyeur."
