
Estas são semanas negras em Portugal para as mulheres - mas só porque há um fator chamado revelação. Nada disto será novo. Nos últimos dias, há pelo menos três casos que deviam ter mergulhado o País numa revolta profunda, num estado de manifestação permanente, até a Justiça portuguesa ter de ceder, e quem está em posições de poder de decisão começar, finalmente, a perceber a urgência da proteção das mulheres vítimas de violência, independentemente da forma que esta assuma. E seja a que custo for: o da reforma humana na Justiça, o da reformulação urgente da lei, o das medidas policiais mais severas com agressores sexuais.
Com o caso do professor Boaventura de Sousa Santos, que veio ter tempo de antena para tentar virar o jogo e dizer que a vítima afinal foi ele, quando assediou dezenas de mulheres durante o exercício da sua profissão; com o caso do grupo de rapazes adolescentes que violou – paramos, finalmente, de dizer alegadamente quando há provas de imagem? – uma rapariga e se filmou a fazê-lo perante milhares de pessoas que assistiram sem denunciar; com o professor que foi acusado de mais de três mil casos, confessando todos, do assédio ao abuso sexual infantil. Nestes casos, que tiveram lugar numa escola, querem fazer-nos acreditar que ninguém percebeu ao longo dos anos? Por que razão ninguém denunciou?

É preciso dizer várias coisas gerais sobre o momento frágil que atravessamos, e algumas particulares, ainda também à luz do espanto generalizado das pessoas com o fenómeno Incels, apresentado na série Adolescence. Falhámos. Falhámos na educação dos rapazes, mas também na educação para a empatia e para a compreensão do barómetro entre o bem e o mal. A impassividade dos pais, dos colegas, dos professores, da sociedade, perante crimes hediondos como estes, em que as mulheres são claramente o target, e a normalização da violência em todas as suas formas para com a mulher, estão profundamente enraizados no sistema machista que vigora e que é o real problema e a real ameaça que existe atualmente. Como vemos pelos dados mais recentes dos relatórios da violência em Portugal, seja da APAV ou da PSP, um dos tipos de violência que mais cresce é a que acontece dentro das nossas casas: a doméstica. Todas as suas extensões e tentáculos têm sempre o mesmo alvo, que são as mulheres. Não sejamos hipócritas: quantas e quantos assistiram, ou viveram na pele, assédio sexual ao longo da vida?
Lembro-me rapidamente de dois, pessoais, muito traumatizantes, que hoje me impedem de agir na rua com alguma naturalidade em determinados contextos sociais. O primeiro aconteceu a um sábado à saída do trabalho, depois de almoço, quando entrei no meu carro e um homem nos seus 30 anos aproveitou esse momento para esticar uma mão para dentro do carro, numa questão de segundos, e de apalpar onde pôde. Deixei tudo para trás, o carro aberto, carteira espalhada em cima dos bancos, e corri atrás dele, gritando por ajuda; talvez a memória mais dura tenha sido ver que havia um polícia no cimo das escadas, à porta de um supermercado, a escassos metros de mim, que nunca me veio auxiliar nem nunca desligou a sua chamada telefónica enquanto me via em pânico a pedir-lhe ajuda. Consegui apanhar o rapaz, apertar-lhe o pescoço e gritar-lhe que nunca mais fizesse aquilo a ninguém, mas o ideal teria sido que alguém parasse para me ajudar e chamasse a polícia. Não aconteceu, embora tivessem passado por mim duas senhoras a quem também tentei pedir auxílio, mas que me olharam com desconfiança. A minha cara ainda espelhava a raiva. Depois, seguiram-se horas de repulsa.
Noutra situação, durante o período dos Santos Populares de Lisboa, ao atravessar uma multidão – e mais precisamente ao passar ao lado de um grupo de rapazes na casa dos 20 anos, todos com aspeto dos chamados "betos" – fui apalpada por um deles no meio das pernas, gritei até não conseguir mais. Numa questão de segundos, raparigas do mesmo grupo vieram ameaçar-me com palavras como "sai daqui, puta" e mandar-me embora, como se fosse eu a causadora da situação que se tinha instalado em segundos. Ainda consegui fotografar o rapaz que me atacou, - nunca mais esquecerei o olhar dele de impunidade -protegido pelos seus pares, e vai-me ficar para sempre marcada a incessante repetição das palavras que me saiam da boca sem me conseguir calar: "ele meteu-me as mãos, ele meteu-me as mãos". Só consegui parar quando alguém me parou, mais à frente e já à saída do local, para me tentar conciliar com o que me tinha acontecido, dizendo "a culpa não é tua, a culpa não é tua", enquanto me agarrava nas mãos e olhava com pena. Era um rapaz e percebeu tudo o que se tinha passado, porque o grupo já era habitué daquele arraial, e há várias noites que faziam aquilo a quem passasse.

Nunca mais consegui estar em multidões, nem em concertos com menos de dois metros de distância de outros. Começo a suar, em pânico, a olhar para todo o lado, completamente alheada do momento, sem conseguir estar. Em nenhuma das situações que descrevi, a "sociedade" me protegeu. Há um pacto silencioso e malicioso nestas novas gerações que agrava aquilo que já acontece há anos. Os pais de adolescentes homens carregam agora sim, o peso maior de os educar bem. Era bom, agora, que deixassem as hipocrisias de lado, a adolescência sempre enfrentou desafios, o acesso aos telefones e às redes sociais pode estar nas nossas mãos e podemos até conseguir moderá-los, pelo menos até certa idade, reforçando a tal educação para a empatia.
Foi também nisso que pensei no dia em que fiz a consulta para saber o sexo da criança que terei dentro de semanas. Chorei muito ao lembrar-me destes dois episódios que são apenas os dois mais graves em vários que vivi. Não queria ter uma menina. Será um menino – e agora o peito aperta ainda mais, porque tenho a certeza que não poderei vacilar na sua educação e terei sempre de reforçar precisamente a importância de respeitar as mulheres acima de todas as coisas. Li, numa das muitas crónicas que se escreveram esta semana sobre o tema, que devemos incutir e integrar as raparigas em táticas de proteção física. Uma posição que só serve para acentuar a culpa estranha que já sentimos quando somos assediadas ou abusadas. A culpa é nossa? Nós é que temos de nos defender? Ou o sistema é que tem de mudar? Num mundo ideal, todos devemos aprender artes marciais e saber defender-nos, claro, mas isso é a solução de longo prazo ou a rápida, que nos vai incutir ainda mais medo? Estão a querer dizer-nos que nós, mulheres, somos o problema?
É preciso sair de toda e qualquer bolha de privilégio para se conseguir visualizar o problema maior. E é preciso sairmos todos e todas à rua, a 5 de abril, às 15h, em frente à Assembleia da República, para exigir mais uma vez que possamos ser deixadas em paz para viver as nossas vidas.

Histórias de Amor Moderno: “Não é fácil lidar com o fim de uma coisa que acreditamos ser para a vida toda”
“Nem eu consigo entender como é que andámos naquilo tanto tempo, naquele impasse, um vai-não-vai, estamos juntos mas não somos nada um ao outro, gosto de ti mas não tanto assim.” Todas semanas, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.