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As lutas e as lições de Sinéad O’Connor

Controversa, mulher de causas, voz dourada. Recordamos o momento em que a artista, de quem agora nos despedimos, tomou uma decisão sem volta - rasgar a imagem do Papa em direto para 50 milhões de pessoas em nome dos abusos sexuais que sofreu em criança -, e a coragem que teve para enfrentar uma multidão furiosa em Madison Square, 13 dias mais tarde.

Foto: Reuters
27 de julho de 2023 Diogo Xavier

Ah, vocês acham que rasgar uma foto do Papa, ao vivo e em direto, num programa de grande audiência da televisão americana é um ato de grande coragem e dignidade, a raiar o sobre-humano? Então, experimentem imaginar a mesma protagonista - jovem, frágil, sozinha - a enfrentar uma multidão enraivecida em pleno palco do Madison Square Garden, em Nova Iorque, a tentar cantar e não conseguir, tão altos eram os assobios do público, tão simiescos e bárbaros eram os apupos da audiência.

Sinéad O’Connor será recordada por muitos momentos, muitos gestos, muitas canções e muitas letras, até mesmo por muitas lutas - a sua vida foi, desde o início, uma luta travada contra as suas próprias circunstâncias, profundamente marcadas pelo abuso sexual de que foi vítima ainda em criança. Mas há um momento - uma luta, um gesto, uma letra - que será incontornável e definitivo não apenas na sua carreira, mas na sua existência e na maneira como passou pelo mundo, numa viagem tão turbulenta quanto digna, tão fugaz quanto guerreira. 

Sinéad
Sinéad "rasgou a imagem do Papa, em direito, para uma audiência de mais de 50 milhões de pessoas". Foto: Getty Images

Tudo começou com uma fotografia de uma criança faminta. A 3 de outubro de 1992, Sinéad O’Connor era convidada musical do programa Saturday Night Live. Entre as exigências de última hora da artista, houve uma que comoveu toda a produção: queria ter direito a um segundo número musical, o que lhe foi obviamente concedido; queria que esse momento fosse filmado com uma só câmara, em close-up, para que no final da atuação surgisse na imagem, em grande plano em milhões de lares norte-americanos, a fotografia de uma criança faminta. Quem poderia negar-lhe tal pedido? A canção, cantada a capella, seria War, um original de Bob Marley que versa acerca das desigualdades e da imoralidade de um sistema que não trata a todos por igual e que não consagra à humanidade, por inteiro, os mesmos Direitos Humanos.

Durante o ensaio, a interpretação de Sinéad, segundo relatos da equipa de produção do programa, terá sido arrepiante e comovente. A voz da artista irlandesa, juntamente com a sua figura simultaneamente frágil e resistente, declamando palavras de força e de luta, atingiu uma intensidade sem par. Horas mais tarde, durante o direto, tudo se repetia: uma Sinéad O’Connor sozinha e aparentemente vulnerável entoava War, "Until the philosophy / Which holds one race superior / And another inferior / Is finally and permanently / Discredited and abandoned /Everywhere is war". No final do número, porém, em vez da foto de uma criança faminta, Sinéad segurava nas mãos uma foto do Papa João Paulo II. A câmara fixa, em close-up, não tinha como escapar-lhe: e foi assim que a cantora rasgou a imagem do Papa, em direito, para uma audiência de mais de 50 milhões de pessoas.

Em Rememberings: Scenes From My Complicated Life, o livro de memórias que lançou em 2021, Sinéad O’Connor recorda o momento após a atuação do seguinte modo: "Total silêncio atordoado na na plateia. E quando voltei para os camarins, não havia literalmente nenhum ser humano à vista. Todas as portas estavam fechadas. Toda a gente tinha desaparecido. Incluindo o meu próprio agente, que se fechou no quarto durante três dias e desligou o telefone." Nos dias seguintes, as reações - destrutivas, negativas, ignorantes - chegaram de todos os quadrantes, de Frank Sinatra (que lhe chamou "miúda estúpida" e que acrescentou que, "se ela fosse um homem", gostava de "kick her ass" - assim mesmo, pleno de fleuma e de má-criação) a Madonna (sim, a mesma que respondeu ao mesmo Papa - com a sua graça - que, se queria vê-la, que fizesse como os comuns mortais: pagasse bilhete).

E foi neste contexto, e debaixo desta chuva de fogo moralista que, 13 dias depois da atuação no Saturday Night Live, e sendo mais uma numa longa lista de convidados musicais, gente muito relevante da cena musical da altura, que Sinéad O’Connor subiu ao palco do Madison Square Garden para um concerto de celebração dos 30 anos de carreira de Bob Dylan. Antes de avançarmos, paremos 10 segundos para refletir acerca do que significa este moralismo: as pessoas insurgiram-se infinitamente mais contra alguém que rasgou uma foto do Papa, num gesto que pretendeu - há mais de 30 anos! - denunciar abusos sexuais de crianças às mãos de elementos da Igreja Católica, do que contra aqueles que eram precisamente acusados desses abusos. Mais: a protagonista dessa denúncia foi, ela própria, abusada em criança. Mais: esses abusos foram confirmados ao longo das três décadas que se seguiram. Mais: se fosse hoje, é muito provável que a multidão reagisse exatamente da mesma maneira, apesar de todas as provas e denúncias.

Quando Kris Kristofferson, o anfitrião do concerto de homenagem a Bob Dylan, apresentou Sinéad O’Connor, fê-lo num misto de cuidados e elogios antes de anunciar o nome da artista. Durante meio segundo, talvez, o público, ainda embalado pela apresentação sentida que o músico fizera, quase parecia aplaudir Sinéad, mas rapidamente o tom mudou, e os aplausos deram lugar a assobios e apupos. A cantora, digna, de aparência sempre franzina, uma aparência que escondia uma fibra rara, aguardou que o ruído animalesco vindo da plateia se fosse reduzindo, esperou, em vão, que a audiência lhe desse espaço e tempo para cantar o que tinha no programa - não importa agora que canção de Dylan seria. Kristofferson entrou então em palco e disse-lhe ao ouvido - é audível na gravação - "don’t let the basterds put you down", "não deixes que os sacanas te mandem abaixo". E ela não deixou. Não arredou pé. Não desistiu.

A banda tentou arrancar com a música uma vez e parou logo a seguir. Tentou uma segunda vez e, após, talvez dois compassos, foi a própria Sinéad quem os mandou parar e ficar quietos. E foi então que Sinéad O’Connor mandou subir o volume da voz e decidiu cantar, sozinha, a capella, a canção de um outro Bob: Marley. De novo, o público foi confrontado com as palavras de War, às quais acrescentou uma estrofe em que menciona, direta e inequivocamente, os abusos sexuais de crianças - só para o caso de a audiência enfurecida não ter percebido imediatamente a mensagem. 

"Sinéad O’Connor será recordada por muitos momentos, muitos gestos, muitas canções e muitas letras, até mesmo por muitas lutas". Foto: Reuters

Ela fez-lhes frente. Sozinha, munida apenas de uma voz tão bela e delicada quanto lutadora e digna, enfrentou uma multidão ignorante e a espumar de falso moralismo. No fim, Kris Kristofferson abraçou-a, tentando reconfortá-la, mostrando-lhe o seu apoio, e seguramente a sua admiração. E então Sinéad O’Connor quebrou, desfez-se em lágrimas. Porque uma pessoa, por mais forte que seja, por mais fibra que tenha, não consegue resistir a tudo, não consegue aguentar sempre. Chega-se a um ponto em que os basterds do mundo acabam por take you down. Foi o que aconteceu com a doce e guerreira Sinéad.

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