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Elizabeth Strout: "Enquanto artistas temos de encontrar formas de expressar o que está a acontecer [no mundo]."

Há muito que as personagens de Elizabeth Strout transpuseram as páginas dos seus livros, rumo a um imaginário partilhado de intimidade e fragilidade, solidão e pertença. "Conta-me tudo", a sua mais recente obra, é uma espécie de epílogo. Mas, como na vida, fica tudo em aberto.

Foto: Leonardo Cendamo
19 de fevereiro de 2025 às 07:00 Rita Lúcio Martins

Primeiro Lucy Barton, depois Olive Kitteridge, agora as duas, juntas no mesmo livro. Pelo meio ficaram vários outros títulos, num total de oito, em que Elizabeth Strout regressa à sua terra natal, o Estado norte-americano do Maine, para desenhar uma teia de relações numa pequena comunidade repleta de entrelaçamentos, e com alguns silêncios à mistura. A atmosfera vívida dos livros tornou-se numa marca distintiva da obra da escritora de 69 anos que, em 2009, foi distinguida com o Pulitzer Prize - precisamente com o romance Olive Kitteridge, que viria a ser adaptado numa minissérie protagonizada por Frances McDormand. Também a carismática Lucy Barton ganhou vida num palco da Broadway, onde foi interpretada pela atriz Laura Linney. Personagens complexas, cheias de nuances e de camadas, nas quais persiste sempre uma certa fragilidade, que acaba por interpelar a vulnerabilidade de quem as lê. Será este o segredo sucesso? "Pelo menos é isso que desejo, quando as tento passar da minha cabeça para a cabeça de quem lê!", confessou-nos a escritora, de passagem por Lisboa para promover Conta-me Tudo (Alfaguara), o livro com que tenciona rematar esta série de sequelas, encerrando um ciclo que lhe trouxe não só sucesso, mas também um certo refinamento naquele que é o seu grande compromisso: a escrita. "No fundo, tudo se resume à verdade da personagem. Ao longo dos anos, fui-me apercebendo que é assim que tem de ser. Tenho de escrever uma frase que seja verdadeira".

Foto: DR

Começo já por perguntar: sabia que a Lucy Barton e a Olive Kitteridge iam acabar por se conhecer?

Sabia que isso ia acontecer a partir do momento em que comecei a escrever este livro, mas não posso dizer que o tenha planeado. Na verdade, nunca planeei escrever estas sequelas, ou como lhes queira chamar. Mas, de repente, percebi que elas estavam a viver na mesma cidade e que, a certa altura, tinham de se juntar. Foi assim que começou.

A determinada altura do livro, Lucy Barton afirma que "há poucas pessoas a quem nos sentimos ligados". Por outro lado, os seus livros partem um pouco da premissa de que todos temos algo em comum. Não será algo contraditório?

Tem razão. Eu penso muito sobre se, no fundo, somos todos mais parecidos do que diferentes, e penso que a maioria das pessoas sim, encaixa nessa ideia. Mas a verdade é que as diferenças que nos separam são muito significativas. E isso é interessante. Eu concordo com a Lucy [a personagem] quando ela diz que só podemos conhecer alguém em certa medida, nunca totalmente. E está bem assim, é suficiente, ajuda-nos a percorrer um caminho. Não é propriamente algo trágico. É o que é. Tiramos das relações e das pessoas aquilo que é possível e os outros fazem o mesmo connosco. Não diria que é algo triste, para mim acaba por ser interessante. A razão pela qual me tornei escritora foi porque, quando era muito jovem, apercebi-me de que nunca poderia entrar na cabeça de outra pessoa. Ninguém pode. E quando comecei a ler, dei por mim a identificar pensamentos que também já tinha tido e apercebi-me que os livros eram a única forma de entrar na cabeça de outra pessoa e isso foi muito apaixonante. Tem a ver com esse processo de descoberta, de encontrarmos partes de nós dentro de outras pessoas, mas também ter uma ideia mais abrangente sobre aquilo que os outros podem ser, na medida em que descobrimos traços que nada têm que ver connosco.

Um dos aspetos que atravessa o livro é o da fragilidade das relações, a possibilidade de tudo mudar num instante, com uma palavra mal interpretada. Como é que essa ideia surgiu?

A relação entre o Bob e a Lucy surgiu no livro Lucy à Beira-Mar. Foi logo nessa altura que me apercebi de que eles podiam ser bons amigos, por isso decidi dar esse passo, mas, à medida que a relação deles se foi intensificando [ao ponto de se apaixonarem sem nunca o terem confessado um ao outro], dei por mim a pensar ‘e agora? O que é que faço com estes dois?’. Fiquei preocupada, sinceramente. Mas percebi que a solução era manter-me fiel a quem eles eram.

O processo parece exigir uma certa flexibilidade da sua parte. Também é assim, nas suas relações pessoais?

Acho que sou tão crítica como qualquer outra pessoa, mas, quando estou a escrever, quando sou só eu e a página, não julgo as minhas personagens. E é essa é uma das razões pelas quais adoro escrever.

Outra das ideias que perpassa o livro é a de que nunca chegamos a conhecer alguém por inteiro... será isso a solidão?

Não sei... é uma ligação interessante. Penso que a solidão sobre a qual escrevo tem mais que ver com o facto de toda a gente ter alguma coisa na cabeça sobre a qual nunca falou com ninguém. Pode nem ser nada de especial, mas acredito que a maioria das pessoas terá sempre qualquer coisa de que não fala com ninguém, nem sequer com os amigos mais próximos. Penso que isso, em determinados momentos, nos faz sentir sós, mas depois passa. Um destes dias estava a ler um livro do [psiquiatra e psicoterapeuta] Carl Jung em que ele dizia que a solidão não vem do facto de não estarmos com pessoas, mas sim de estarmos com elas e não sermos capazes de dizer aquilo que queríamos dizer. Achei muito interessante e muito verdadeiro. Aquela parte de nós que não consegue dizer aquilo que queria... isso sim pode trazer-nos alguma solidão, mas isso vai e vem.

Foto: DR

O que é que nos impede de falar?

Não sei, talvez o medo que temos de ser julgados pelos outros ou simplesmente não termos sequer a habilidade de alinhar as palavras dentro da nossa cabeça, quase como, se tentássemos falar, soubéssemos que seria uma formulação errada... Também há a possibilidade de as pessoas não estarem interessadas em ouvir o que temos para dizer, o que é igualmente terrível.

Uma das personagens do livro refere-se às ondas suaves de tristeza, que, a tempos, o atravessam. Envelhecer é aprender a surfar essas ondas?

Pois... creio que as pessoas que são honestas com elas próprias sabem que, ao longo da vida, atravessam várias ondas suaves de tristeza, quando não são mesmo ondas severas. Muitas pessoas não são honestas com elas, não querem reconhecer estes momentos, e seguem em frente, mas eu escrevo para quem se quer confrontar com esses momentos. Porque a vida é triste, mas também é maravilhosa.

O mundo divide-se um bocadinho entre aquelas pessoas que consideram que o ser humano é intrinsecamente bom e as que pensam exatamente ao contrário. Onde é que se posiciona?

Isso tem mudado bastante na minha cabeça. Durante a maior parte da minha vida teria dito que a maioria das pessoas é intrinsecamente boa, mas à medida que vejo o mundo e o meu país [EUA] mudarem, dou por mim a perguntar-me onde é essas pessoas estiveram durante toda a minha vida? Há pessoas mesmo más por aí. Por isso acho que, atualmente, teria de alterar a minha resposta.

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Mudou muito, ao longo do tempo?

Acho que me fui tornando melhor pessoa à medida que fui envelhecendo. Acho que, além de me ter tornado mais simpática, fui ficando mais tolerante... aliás, antes disse que posso ser tão crítica como toda a gente, mas a verdade é que acho que fui compreendendo melhor os outros. Por outro lado, e tendo em conta aquilo que me rodeia neste momento no meu país, dou por mim a pensar que não sabia que as pessoas podiam ser tão horríveis. Não me tinha dado conta de que existiam pessoas como o Elon Musk, pessoas com o poder que ele tem. É assustador. Não sabemos de onde vêm, mas sabemos que estão a esventrar o país. Eu pensava que estávamos a progredir enquanto sociedade e, de repente, voltamos à Idade Média.

Qual é a importância dos escritores, dos artistas, dos intelectuais em tempos como estes?

Temos de registar o que está a passar. Enquanto artistas temos de encontrar formas de expressar o que está a acontecer. Naturalmente isto vai afetar o meu trabalho, porque eu escrevo sobre a contemporaneidade.

E escreve sobre o [estado do] Maine, que é quase como uma personagem.

É verdade, tem essa dimensão.

Foto: DR

O lugar tem um certo impacto nas personagens, da mesma forma que crescer nesta zona dos EUA teve um impacto na sua personalidade.

Sim, do ponto de vista da restrição, da repressão de emoções. Não é bom quando guardamos tudo para nós. O aspeto positivo da forma como fui educada foi o de me terem transmitido que o grande objetivo da vida era trabalhar afincadamente e eu sou uma trabalhadora incansável, mas o resto [a pressão constante] foi muito desgastante.

Teve alguma expressão em particular pelo facto de ser mulher? Até do ponto de vista da escrita?

Não creio. Nunca tive muito interesse no tópico do género. Eu sou uma mulher, escrevo porque sou quem sou e para mim esse é o ponto. Não vejo grande vantagem em fazer essa problematização. Eu sou uma mulher, eu escrevo. Se quero ser chamada de mulher escritora? Não, porque haveria de querer?

O que é que a faz feliz, nestes dias?

Eu sei que pode soar um bocadinho ridículo, mas gosto de passar tempo com o meu marido, gosto de conversar com ele e com as minhas amigas mais antigas, que conheço há anos. Adoro estar com elas. Uma delas é minha amiga desde os sete anos. Ela vive apenas a algumas ruas de distância e estamos juntas frequentemente. É uma bênção, dizemos frequentemente isso uma à outra, ‘é tão bom ter-te’. Conhecíamos os pais uma da outra, conheci-a muito antes de ter a minha carreira, ela fica feliz pelos meus sucessos, mas não demasiado, o que acaba por ser muito revigorante, porque é a mim que ela vê. É maravilhoso. Durante um período de vinte anos estivemos mais afastadas, estávamos ocupadas a criar os nossos filhos e a viver em estados diferentes, mas depois ela mudou-se para Nova Iorque quando eu ainda vivia lá e víamo-nos com regularidade. Agora vivemos na mesma cidade no Maine.

Continua a gostar de Nova Iorque?

Adoro! Sabe quando falava do lado repressor da minha família? Nova Iorque é o oposto disso. Toda a gente está concentrada em fazer as suas coisas, falam, dizem coisas... há pessoas por toda a parte, e eu não as via quando estava a crescer.

As pessoas são a sua matéria-prima. Mas ainda tem disponibilidade para as deixar entrar na sua vida de uma forma significativa?

É interessante. Conheci algumas pessoas novas, neste meu regresso ao Maine, mas é mais difícil. Tenho 69 anos e confesso que, pelo menos para mim, é difícil começar uma nova amizade porque não temos uma história, não estamos muito certos de quem é que aquela pessoa é. As relações precisam de tempo.

Foto: DR

E o Maine? Como foi esse regresso?

(Revira os olhos). O que é que posso dizer? Nunca tive a intenção de regressar, mas casei com um homem que é de lá, na verdade ele é um irlandês de Brooklyn, mas que vem do Maine, e adora. Então...

É difícil escapar do sítio onde nascemos e crescemos?

Pois, parece que sim (ri-se). Não posso acreditar que voltei a viver no Maine. Acho que é possível dar um grande salto do sítio de onde viemos, mas ele vai sempre continuar lá. Eu acredito sempre na possibilidade de reinvenção. O meu primeiro marido era judeu e vivia em Nova Iorque, não podia ser mais diferente de alguém do Maine. Era o oposto. Isso foi-me muito benéfico mas, por outro lado, a minha família não gostava dele e isso foi duro e triste. A família tem um efeito. Do meu ponto de vista, olhando para trás, foi ótimo ter tido essa possibilidade de estar exposta a todo um novo mundo com ele. Tornou-me na pessoa que sou hoje. Continuamos bons amigos.

Última pergunta: o que vai acontecer a todas estas personagens que têm feito companhia a tanta gente nos últimos anos?

Vou fazer uma coisa diferente, agora. Tenho de fazer essa mudança. Não sei se vou voltar a estas personagens, penso que não, mas também já disse isso antes. Nesta altura da minha vida não faço planos a longo prazo. Quero terminar o livro no qual estou a trabalhar, só isso. Não penso no que virá depois.

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