Opinião

As coisas bonitas que a Sara Tavares me disse

Uma reflexão - e uma declaração de amor - de Airton Cesar Monteiro, admirador de Sara Tavares, que nos deixou aos 45 anos a 19 de novembro de 2023.

Foto: Arquivo CM
20 de novembro de 2023 Airton Cesar Monteiro

As estrelas morrem? As estrelas morrem e ontem foi o dia de uma das mais brilhantes que conheci. Conheci-a como conheço todas as estrelas no céu — à distância. Infelizmente, não tive oportunidade de privar com a Sara Tavares; a Sara dos amigos e dos familiares. Nem por isso deixo de sentir que a perdi ontem. N’Xinti. Senti que nos conheciamos a cada vez que ouvia as suas canções, naquela voz doce e nas letras reconfortantes. Como se se dirigisse a mim pessoalmente, recorri à Sara muitas vezes em busca de afeto e senti-a sempre. N’Xinti-l.

Quando se apresentou ao mundo na Chuva de Estrelas, em 93, eu ainda não era nascido. Nem em 94, quando venceu o Festival RTP da Canção e alcançou um 8º lugar da Eurovisão, ou quando editou o primeiro disco em 96. Mesmo quando lançou Mi Ma Bo, em 99, ainda estava em Cabo Verde, onde Sara também tem as suas origens. Não me lembro exatamente de quando a ouvi cantar pela primeira vez, mas lembro-me de a minha mãe falar desta pessoa, que só me aparecia na televisão, como se fosse um parente — uma sobrinha afastada por quem tem um carinho especial. Cresci com esta sensação de ela ser alguém que me carregou no colo, em minha própria casa, mas de quem não tenho memória. Agora, sei efetivamente que a Sara me carregou no colo com a sua música sempre que lhe pedi auxílio.

As redes sociais encheram-se ontem de homenagens sentidas e partilhas do que ela deixou. Mensagens privadas com quem criou intimidade, canções partilhadas com todos nós, e entrevistas com quem, mais de perto, teve o privilégio de saciar a sua curiosidade sobre este ser luminoso. Um dos excertos que está massivamente a ser partilhado é de uma entrevista com Daniel Oliveira, no [programa televisivo] Alta Definição, em que fala sobre a facilidade que tem em pronunciar a palavra amor; "a melhor palavra de se dizer". Falar com naturalidade sobre esse sentimento é inspirador vindo de alguém com origens semelhantes. Entre imigrantes cabo verdianos, ou os seus descendentes, são mais habituais os atos de amor não verbais. De certa forma, as composições da Sara ajudaram a definir as palavras de afirmação na minha linguagem de amor predileta, seja em português ou em crioulo. Mesmo que ela própria tenha tido o seu Problema de Expressão. Haverá serenata mais bonita para dedicar a um grande amor do que Fundi Ku Mi?

Na mesma entrevista a Sara diz que, por ter vivido tudo tão intensamente, não tem saudades de nenhum momento, só da sua avó. Também tenho saudades da minha avó, Sara. São as memórias dela, memórias reais, que me fazem lembrar que já fui criança. Quando partilhei a triste notícia da tua partida com a minha mãe, a resposta foi "maldita doença". Maldita doença que lhe tirou a mãe e a minha avó, de quem temos saudades. Maldita doença que nos tirou a Sara, de quem teremos saudades.

A luz da Sara era roots e também do Mundo — Caminhanti e Pe na strada. Disse-nos Coisas Bonitas bem alto sussurradas ao ouvido. Tão alto que agora ecoam noutras constelações e a acompanham nessa viagem eterna de exploração do Cosmos.

*Airton Cesar Monteiro é imigrante cabo-verdiano, licenciado em Relações Internacionais (não praticante) e convicto agitador social. Dedicado a escrever sobre mudanças sociais, cultura e o que mais lhe apetecer.
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