Tatiana Salem Levy: "[O assédio] é uma violência que marca a vida, que não descola."

Uma menina de dez anos sente-se constrangida quando o padrasto a desenha na piscina, onde toma banhos de sol sem a parte de cima do biquíni. A cena, nas primeiras páginas de Melhor Não Contar, é um prenúncio do que está para vir: anos depois, a protagonista será vítima de assédio desse mesmo padrasto.

Foto: Getty Images
30 de janeiro de 2025 às 17:25 Joana Moreira

Tatiana Salem Levy (Lisboa, 1979) nunca relatou os assédios à mãe — a escritora e jornalista Helena Salem, a primeira mulher brasileira correspondente de guerra, que morreu em 1999. Sempre que pensou em fazê-lo, o que ouviu foi "Melhor Não Contar", título do novo livro em que aborda os abusos sofridos na adolescência. "Em sussurro já foi até aqui. Agora vai gritar bem alto", pode ler-se.

Melhor Não Contar, que chegou às livrarias em outubro [do ano passado], é um retrato íntimo que vira denúncia coletiva. Não há mulher que não tenha passado por uma experiência de assédio, reitera a autora. Em entrevista à Máxima, Salem Levy fala sobre a denúncia "estrutural" que almeja com a obra, mas também sobre a relação com a mãe, a possibilidade da escrita como cura e o desejo de "transformar aquilo que é muito pessoal em literatura".

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Melhor não contar foi o que foi ouvindo daqueles com quem partilhou a sua história. Quando é que percebeu que, na verdade, o melhor era contar?

Esse livro tem essa contradição e também nasce de uma impossibilidade: a de contar para a minha mãe, para quem hesitei se contava ou não. Num certo sentido, não contei e não posso contar para a minha mãe. Quando escrevo muitos anos depois, já com uma outra perspetiva, literária, é também como se estivesse contando para ela. Mesmo que não possa ouvir, tem o gesto do contar, a atitude do contar. É um título que realmente funciona porque tem essa ambiguidade, tem muitas camadas. A primeira, mais óbvia, é a do que todas nós mulheres ouvimos ao longo da vida em relação a muitas coisas. Mas tem essa contradição também, porque quando digo "melhor não contar", estou contando.

Também nos convida a perguntar a quem aconselha "melhor não contar" se a questão não é antes "melhor não ouvir"...

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Com certeza. O "melhor não contar" sempre tem que ver com a receção da história. Melhor não contar porque ninguém quer ouvir essa história.

Falava do gesto de contar. A dada altura no livro diz: "Escrever ou escrever-se dói mais do que contar." Porquê?

É uma coisa de mergulhar mais fundo, de se fazer muitas perguntas. A escrita pressupõe esse questionamento. Não é simplesmente contar como já tinha contado para várias pessoas ao longo da vida. Escrever é sair do lugar cómodo também. Questionar minha mãe de uma forma que nunca tinha questionado, me questionar de forma que nunca tinha questionado, ou mesmo questionar essa estrutura que permite que esse tipo de coisa aconteça até hoje em todos os cantos do planeta. Dói mais porque incomoda mais, porque pressupõe esse questionamento. Não é simplesmente contar um segredo. A escrita também tem a questão do questionamento e da exposição. Vai para um público de pessoas que não conheço. É uma exposição muito maior do que contar no privado, no íntimo. É fazer público o privado. É tornar político o pessoal.

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"Talvez a única forma de parar de sentir o que ela sente seja escrevendo o que ela sente. Haverá outra possibilidade de fazer com que a cena deixe de me perseguir?", diz ao princípio do livro. Mas, depois, li numa entrevista que rejeita a escrita como cura.

Não é uma rejeição completa, é só um questionamento.

Escrever permitiu-lhe deixar de sentir algumas coisas?

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Talvez só consiga dizer isso daqui a uns anos. Mas, ao contrário do que imaginava, [escrever] teve um poder de transformação, não só do evento do assédio em si, mas dessa relação simbiótica com a minha mãe. Antes de ser sobre assédio, o livro é sobre uma relação entre mãe e filha, entre uma mãe e uma filha que escrevem. É sobre o próprio processo de escrita. É sobre o que é escrever sendo mulher, sendo filha de uma mulher que também escrevia. Talvez nunca tenha pensado tão pouco na minha mãe quanto depois de publicar esse livro. Claro que tem essa pergunta sobre se o luto acaba ou não. O fim do luto é também o não fim do luto. É um pouco a constatação de que tem algo que nunca acaba, uma dor que nunca acaba. Aprende-se a conviver com isso. Tem algo de intransponível também. É mais uma possibilidade de convivência, mesmo com o morto, com aquele fantasma.

Quando escrevi esse livro, estava num momento muito diferente do que quando escrevi A Chave de Casa, o meu primeiro livro, em que tinha perdido a minha mãe havia sete anos. A morte, o luto, estavam muito mais presentes. As pessoas perguntavam se achava que ter escrito sobre isso tinha feito curar essa dor. Dizia que não porque achava que não. Foi só uma forma de colocar para fora, de elaborar, de trabalhar. Num certo sentido, todos estamos sempre criando narrativas para aquilo que nos acontece. Não são só os escritores, a gente tenta sempre dar um sentido para as coisas que acontecem. Dessa vez, foi um momento em que a memória da minha mãe retornou com força para mim.

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Graças aos diários dela.

Sim, muito por conta da leitura dos diários. Quando a ideia do livro surgiu, nem ia falar sobre isso [o assédio]. Era um livro que queria escrever, um ensaio autobiográfico sobre a questão dos diários da minha mãe, a minha relação com eles. Era um livro sobre escrita. No fundo, acho que é um livro sobre escrita, só que se tornou um romance sobre escrita [risos] Foram aparecendo cenas. Comecei a escrever sobre o diário e daquilo que o diário coloca, que é escrever para não ser lido, aquela coisa de fechar com cadeado. Comecei a pensar na questão do segredo, do silêncio. Comecei a pensar nesse segredo que existia entre nós, e aí a cena da piscina começou a se impor, a pedir para ser escrita. 

Foi um ano e meio de um mergulho de volta dessa questão do assédio, mas, sobretudo, da minha relação com a minha mãe. Fui colocando essa pergunta ao longo do livro, que é uma pergunta que não sei responder e que não tenho interesse em responder. Na verdade, coloco ali porque colocar complexifica as coisas, no sentido de que não tem uma resposta única, porque também o próprio luto não é linear. Pode ter uns momentos em que você está super em paz, e, de repente, em algum outro momento da vida, aquela dor retorna. Por isso é que a gente fala numa cura. A rejeição não é da ideia da escrita como cura, mas talvez seja a própria ideia de cura, de que você resolve alguma coisa. A escrita ajuda a elaborar as nossas questões pessoais. Isso tanto pode ser uma escrita de diário, uma escrita pessoal, que nunca vai mostrar para ninguém, mas que ajuda a elaborar, ou pode transformar aquilo que é muito pessoal em literatura. Como escritora é isso que me interessa. É essa a diferença entre o contar e o escrever, transformar isso que aconteceu num romance, num texto literário que tem uma estrutura novelística, que tem todo um trabalho com a linguagem, uma coisa de reescrever muitas vezes. Quando escreve um diário, não reescreve o diário várias vezes, não fica pensando na estrutura do diário, o que vem antes, o que vem depois, não pensa tanto em  como você vai escrever. É uma coisa mais nesse sentido do contar, que é de colocar para fora. O escrever, no sentido de escrever literatura, é algo que parte de uma elaboração mesmo, de um trabalho que leva tempo e que requer muitas revisões, muitos fracassos, muitos sentimentos.

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Disse que o livro é sobre uma coisa e outra e há um momento no texto em que a interpelam: "Mas afinal, sobre o que é o livro?". Há uma necessidade permanente de nos justificarmos, nos explicarmos?

Na verdade, é uma demanda que se tem do escritor que não deveria existir [risos].

Daí não lhe ter perguntado sobre o que era o livro.

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Sim, estou a falar de forma geral. Não só na entrevista, mas às pessoas, os meus amigos, dizem: "Você escreve sobre o quê?", "sobre o que é o seu livro?" Não tem pior pergunta porque, na verdade, reduzir o livro a uma trama é matar o livro. Mas tem sempre essa demanda nas entrevistas, nas perguntas dos amigos, nos festivais literários, na própria contracapa. Tem de apelar para ver se o leitor chega perto. Esse, realmente, é um livro sobre muitas coisas. É um livro sacola no sentido em que vai colocando um monte de coisas ali dentro.

Disse que este não era um livro de "denúncia" nascido do legado dos relatos de movimentos como o Cuéntame ou o MeToo. Disse também que este não era um livro "nem para condenar, nem para perdoar ninguém". Porque foi importante fazer esse distanciamento e frisar que este não é um livro de denúncia? Porque, na verdade, ele denuncia...

É verdade. Até vou corrigir o que falei. Ele é um livro de denúncia, sem dúvida ele denuncia uma estrutura. O que quis dizer é que não é um livro de apontar o dedo a fulano, a uma pessoa em particular. É uma denúncia mais estrutural do que pessoal. Acaba por ser uma denúncia, porque, a partir da minha história, sei que estou contando a história de muitas mulheres, ou quase todas as mulheres. Era um desejo de não o reduzir àquela ideia de literatura engajada. Isso é um romance. E o romance não existe com o objetivo de denunciar. Ele acaba por denunciar. Essa é a diferença. Preciso de escrever essa história, escrevo essa história e, uma vez pronta, ela acaba sendo um romance que denuncia algo. 

"Helena" e "Tatiana" são identificadas pelos nomes reais, mas os homens do livro não são identificados. O "padrasto" é assim descrito, o namorado também é nomeado apenas como "G". Essa escolha é motivada também por isso?

Sim, tem que  ver com não reduzir a coisa a uma pessoa específica, mesmo sabendo que é uma história específica. Um desejo meu era o de que a discussão em torno do livro não fosse uma discussão sobre aquele homem ou aquele outro homem. Que não girasse em torno de quem fez o assédio.

Acha que tem girado?

Gira também, mas bem menos do que se colocasse um nome. A minha vontade era escrever um romance, [e tinha] um desejo de não ficar colada a uma imagem específica. Sim, aquele homem fez isso, mas a verdade é que tantos homens fazem isso. Até a forma como é tudo feito com muita naturalidade é tão arraigado a uma estrutura social que os homens acham que podem, de facto, fazer isso e que está tudo OK. Assim como tem gente que não fala diretamente para mim, mas chegam comentários do tipo: "Fulano, normalmente um homem, nem achou que foi assim tão ruim." Tem sempre essa coisa de "afinal não foi nada tão grave". Os homens que acham que não é grave é porque realmente estão tão dentro dessa estrutura que acham que isso [o assédio] é banal, é normal, nada de mais. Não conseguem entender como isso marca a vida das mulheres. É uma violência que marca a vida, que não descola.

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Já na Vista Chinesa (2021, Elsinore) aborda alguns dos temas deste Melhor Não Contar, alguns deles biográficos. É possível escrever a partir de algo que não se conhece? Ou há sempre algo de nós nos livros que escrevemos?

Há sempre alguma coisa de quem escreve, nos livros. É claro que há autores que optam por trabalhar com a própria vida, ou com a vida das pessoas próximas. Outros não. O Chico Buarque escreveu um romance em Budapeste sem nunca ter ido a Budapeste. Quando se faz um romance que se passa noutra época, por exemplo, é algo que não se conhece mesmo. Mas é impossível o escritor escrever sem se colocar, de alguma forma. Está sempre se colocando, mesmo que seja em outros personagens, outras histórias. Todo o escrito tem algo daquilo de quem escreve. Só que depois existem autores que realmente optam por trabalhar explicitamente, assumidamente com esse material. Pegam um material mais pessoal, mais intimista e mais de si ou dos outros, e transformam em literatura.

Escreve: "Muito cedo coloquei na cabeça que para ser escritora eu tinha que sofrer. quanto mais triste fosse a minha vida, mais legítima seria a minha trajetória." O trabalho pessoal, o apaziguamento sobre uma série de questões faz piores escritores?

Não, mas também não acredito em apaziguamento [risos]. A vida não é linear. Quem está interessado em pensar o mundo, em refletir sobre as questões da humanidade, não tem como se sentir apaziguado. Para ficar apaziguado, tem de ir vivendo sem colocar perguntas. Nem sei conceber uma pessoa assim. Não acho que para escrever bem tenha de sofrer muito. O que coloco no livro é que é uma coisa que me constituiu. Assim como essa violência, as mortes precoces que tive, esse pensamento também me constituiu. Há momentos da vida, da infância e da adolescência, coisas que se agarram de uma forma na gente e que depois é sempre difícil conseguir largar. É um trabalho muito maior do que largar uma ideia que se teve. Por mais que não pense mais assim , há um vestígio, uma memória inconsciente disso, desse achar, desse pensamento.

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Explicou a origem do livro e porque se impôs escrever a cena da piscina e, consequentemente, abordar a questão do assédio. Porque se impôs, também, escrever sobre o aborto?

O aborto foi algo que aconteceu enquanto escrevia. Mais uma vez, acontece com o corpo da mulher, e tem toda a questão do sangramento. Começa com aquela menina que é menstruada pela primeira vez, essa questão do sangue da mulher... Primeiro, acho que precisei escrever sobre isso. Poderia não ter colocado no livro, mas aí vem a escritora que fica pensando as coisas. Achei que fazia sentido. Dialogava com o resto. Também tem que ver com marcas que ficam. Quando se vive na hora, pensa-se que as coisas não têm tanta importância e depois, com a passagem do tempo, vai-se entendendo que não é bem assim.

Quando relata a sua experiência em Portugal, entra num elevado grau de detalhe, conta o primeiro confronto com o que corre mal, mas também o conforto que encontra nas mulheres que a tratam no hospital.

Sou uma pessoa interessada em detalhes. Gosto desse olhar do pormenor. Tem um primeiro momento na saúde pública em Portugal que é um desastre, é raro chegar e as coisas acontecerem com facilidade, mas, depois quando funciona, é maravilhoso. Houve essa dificuldade inicial, mas, a partir do momento em que fui acolhida, tinha toda uma equipa de mulheres, ajuda psicológica. Acho importante falar sobre isso porque é um direito que está sempre em risco, que não existe no Brasil. E também para mostrar que há essa ideia de que, se liberar o aborto, as mulheres não vão nunca mais prevenir. Não é assim. É importante mostrar que é doloroso mesmo quando você quer.

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O livro tem uma sensação de fim. O que se escreve depois de um livro como este?

Já tenho várias ideias [risos]. O escritor está sempre escrevendo. Tem muitas histórias para serem contadas.

Artigo completo originalmente publicado na edição comemorativa do 36º aniversário da Máximanas bancas.

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