Situações de quase-morte. Testemunhos de quem esteve perto do fim

Estar vivo é maravilhoso, um status que se dá como garantido, pelo menos até a morte resolver bater à porta. É verdade que aquilo que não nos mata torna-nos mais fortes, mas também mais gratos? Estes testemunhos dizem que sim.

Foto: Maria Orlova / Pexels
03 de maio de 2022 às 20:09 Pureza Fleming

É comum dizer-se que ‘a morte pode estar mesmo ao virar da esquina’. É uma expressão tão corriqueira que quase perde o seu sentido: tal como uma palavra que, quando repetida vezes demais deixa de ter lógica, também uma expressão pode ficar vazia de conteúdo se expressa ao desbarato. Porque a verdade é que ninguém se dirige à morte com tal ligeireza. Certo também é que no decorrer dos últimos anos — talvez devido à pandemia de covid-19 e consequente pânico causado — o tema ‘morte’ tenha sacudido as suas poeiras e sido tirado à força do baú da juventude, acabando por se tornar ‘tema de atualidade’. Assiste-se, com efeito, a um esforço crescente da promoção de conversas em torno da morte. Por exemplo, os Death Cafe, lançados pela primeira vez na Suíça em 2004, espalharam-se pelo mundo.

Um Death Cafe, tal como o próprio nome indicia, é um café onde pessoas, muitas vezes estranhas entre si, se reúnem para comer bolo, beber chá e discutir a morte. O objetivo é 'aumentar a consciência da morte ao mesmo tempo que ajuda as pessoas a aproveitar ao máximo suas vidas (finitas)’. Na prática a realidade não funciona bem assim. De acordo com um estudo realizado em 2019 por cientistas da Universidade de Bar Ilan, em Israel, o cérebro tem um mecanismo de defesa que nos protege do medo existencial da morte. Segundo os investigadores, citados no jornal britânico The Guardian, o cérebro faz o possível para nos impedir de pensar na morte. Aliás, o cérebro tem mesmo um mecanismo que nos tenta aliviar deste tipo de pensamento, categorizando a morte como uma situação infeliz associada a outras pessoas, como algo que "só acontece aos outros". "O nosso cérebro não aceita que pensemos na morte associada a nós", explicou ao The Guardian Yair Dor-Ziderman, responsável pelo estudo da Universidade de Bar Ilan. Por vezes até mesmo quando a morte nos bate à porta nós nos esgueiramos dela. Instinto de sobrevivência? Talvez.

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Foi mais ou menos o caso de Maria do Carmo, 50 anos, que depois de uma pneumonia "normal" acabou por se ver deitada numa das camas da Unidade dos Cuidados Intensivos de um Hospital da cadeia Cuf, com um pé na vida e outro na morte. "Em agosto de 2021 tive uma pneumonia aparentemente normal. Passei três semanas no hospital e voltei para casa no início de setembro — recuperei lindamente e estava bem. Mas retiraram-me a cortisona muito rápido e fui parar ao hospital novamente em outubro, de onde já só saí na semana de 12 de janeiro. Era um tipo de pneumonia muito raro chamado pneumonia intersticial idiopática. Há muitos poucos casos diagnosticados e o diagnóstico não é fácil pois exige uma técnica muito invasiva que é a broncoscopia. Como o tratamento é sempre o mesmo os médicos optam por não fazer esse diagnóstico já que o risco não justifica o benefício. Fiquei com a capacidade respiratória a níveis muito baixos, tomei grandes doses de cortisona e passei um mês e meio nos cuidados intensivos". Maria conta à Máxima que enquanto esteve nos Cuidados Intensivos nunca achou que ia morrer, mas que percebeu que a "‘coisa’ era complicada". Explica que são muitos poucos os casos em que se sobrevive num cenários destes. E que, em sobrevivendo, ou se tem de fazer um transplante pulmonar — o que significa que se fica com uma esperança de vida pequenina; e/ou se fica dependente de oxigénio. "Era este o prognóstico que me faziam. Se eu me safasse…".

Segundo um outro estudo, publicado na National Library of Medicine, "quando as pessoas são confrontadas com a mortalidade, como no caso de uma doença grave ou por via de uma ‘experiência de quase morte’, o antigo mecanismo de ‘enfrentamento’ das metas extrínsecas desfaz-se. Através de esforços para reconstruir a sua estratégia de ‘enfrentamento’, as pessoas reavaliam os seus objetivos orientados para questões como o status, alterando-os para "objetivos mais intrínsecos", tais como crescimento pessoal, insights e relacionamentos interpessoais positivos. Tal acaba por levar a uma vida com mais significado, mais positiva e melhor", concluiu. O que nos mostram os filmes é real: estarmos perto da morte faz-nos equacionar a vida — quem somos, o que é que estamos aqui a fazer, quais os nossos sonhos e medos. Maria revela à Máxima que, durante a sua 'estada' na Unidade dos Cuidados Intensivos, manteve um diário. Um espaço onde escrevia acerca dos seus maiores sonhos e dos seus grandes medos e que essa prática a auxiliou muito na "arrumação de ideias". "Houve um sentido qualquer que me fez pensar nos meus medos e nos meus sonhos. Foi muito importante para me focar. Fiz um balanço da minha vida, daquilo que era importante e do que não era". Relembra também como assistiu ao filme da sua vida passar-lhe diante dos olhos: "Quando fui internada, pela segunda vez, piorei muito mesmo durante o primeiro mês. E, nessa altura, fiz uma viagem em 3D à minha infância, à minha vida. Visitei memórias que nem sabia que tinha, cheiros, sensações, pessoas. Andei pela quinta onde passava férias, em setembro, na minha infância, uma quinta dos meus avós. Lembrei-me de coisas que eu nem sabia que tinha dentro de mim. Parecia que era espetadora da minha vida, que estava num plano superior em que conseguia ver passado e presente, andar para trás e para a frente. Foi muito importante e muito bom, porque parecia que eu nunca tinha tido tempo para fazer isso, estar num estado entre cá e lá, numa espécie de meditação que me permitiu andar a planar, a viajar, a voar e a saborear novamente as minhas memórias. Senti muito a presença daqueles que já cá não estão: de uma tia minha, do meu pai, avós… Senti que estava tudo a torcer por mim. Não era definitivamente a minha hora".

"Todos os dias eu dizia ‘podem-me tirar tudo, mas não me tiram a minha vontade de viver’"

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Ao longo da nossa conversa Maria vai repetindo o quão certa estava que não iria morrer — ainda que tivesse plena consciência de que estava a piorar. "Eu acho que nunca acreditei — ou quis acreditar — que os meus dias na Terra estivessem por um fio. Acho que quis viver imenso o presente e agarrar-me a tudo aquilo que eu tinha. Por outro lado, tenho a sorte de ser uma pessoa muito positiva e de ser grata. Tentei saborear muito aquilo que tinha e o que aquela situação me estava a trazer, porque tive demonstrações de amor muito grandes. Todos os dias eu dizia ‘podem-me tirar tudo, mas não me tiram a minha vontade; querer viver bem e feliz em cada dia; ser forte, digna, simples, bondosa, irradiar amor, paz e alegria’. E senti, muitas vezes, uma grande paz e uma grande serenidade. Acho que tinha a ver com ter muita gente a rezar por mim, ter muitas manifestações de amor. E sentir, sobretudo, uma grande paz, uma grande entrega, fé. E uma grande protecção". Para Maria, tentar dar o melhor de si, todos os dias, era o que a mantinha forte. "E como eu estava completamente dependente — o que é para mim uma situação absolutamente inédita porque eu sou muito combativa e activa — eu dizia muitas vezes que tinha de tentar aprender e perceber como é que conseguiria ser guerreira naquela situação — a antítese de tudo aquilo que eu era, de como era e de como sempre tinha vivido".

Entregar, confiar e aceitar

Num dos trechos do seu diário, que Maria partilhou com a Máxima, lê-se "Lição de hoje: confia e entrega. Vão cuidar de ti. Não te preocupes que o Universo vai tratar bem de ti. Há um enxame de desconhecidos que quer tratar de ti. Acordei menos cansada, mas ainda exausta". É daquelas situações que, só quem passa por elas sabe, mas de certa maneira o que nos tem mostrado o mundo é que nas horas extremas a tendência é confiar. Como se não restasse mais nada senão colocar à mercê do mundo os planos que este tem para nós. Um pouco como reza a Oração da Serenidade de Grupos de Ajuda como os Alcoólicos Anónimos ou os Narcóticos Anónimos: "Concedei-me, Senhor, a serenidade necessária para aceitar as coisas que não posso modificar, coragem para modificar aquelas que eu posso e sabedoria para distinguir umas das outras". Maria escolheu entregar e dar o melhor de si. Evidentemente que, uma vez que não há super-heróis, com os devidos medos e ressalvas: "Os meus filhos e o meu marido foram a minha grande preocupação. Mas sobretudo os meus filhos. Talvez fosse aquilo que perturbasse mais a minha paz, pensar no impacto que aquilo poderia estar a ter na vida deles. Mas ao mesmo tempo foram tão queridos, tão presentes, tão maduros e verdadeiros… Foi um privilégio perceber que a nossa família era tão unida e forte. E perceber, com uma certa tranquilidade, que eu não era insubstituível e que eles saberiam viver sem mim, porque eu senti isso". No final das contas, Maria acaba por expôr que o Natal passado no Hospital, com os filhos e o marido, foi o mais feliz da sua vida: "Foi muito bonito e muito bom, com tudo aquilo que precisávamos. Tive uma grande amiga minha que me mandou a ceia de Natal dela. E tive manifestações de pessoa fantásticas".

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"Aquilo que não era importante não merecia mais a minha preocupação"

Num dos episódios da série O Sexo e a Cidade, pouco tempo depois da fabulosa Samantha recuperar de um caso de cancro de mama, Charlotte e Miranda perguntam-lhe, a propósito de uma situação de exposição pública ‘à la’ Samantha: "Mas tu não estás incomodada [com a tal situação]?". Ao que a loira responde: "Por favor. Depois do grande C [cancro] não nos enervamos com insignificâncias". Da ficção para a vida real, a ideia mantém-se. Depois de se passar ao lado dos portões da morte, outras coisas em vida perdem relevância. Maria confirma a teoria: "Passei a relativizar muito mais as coisas. A achar que aquilo que não era importante não merecia a minha preocupação ou foco. Foi muito libertador tudo isto, porque percebi que controlamos muito pouca coisa. Temos de ter esse enfoque ‘aquilo que eu controlo, controlo; o que eu não controlo, deixar fluir’. Tornei-me ainda mais positiva e muito grata a tudo aquilo que tenho — família, amigos, àquilo que sinto a ter recuperado desta forma fantástica e a sobretudo privilegiar os meus sonhos. E a ter urgência em concretizá-los. Não achar que há o tempo todo do mundo, porque de um momento para o outro tudo pode evaporar-se".

E o que é que passa a ser importante? Um sem números de coisas, a começar pelas mais insignificantes. Maria recorda que quando saiu dos cuidados intensivos para ir para o quarto chovia copiosamente — "toda a gente dizia ‘que pena, está a chover’ — porque nos cuidados intensivos não se percebe se é dia se é de noite — e eu lembro-me de estar maravilhada a olhar para o Tejo, de estar péssimo tempo e de eu achar aquilo lindo. De achar um privilégio". E ainda: "Trazerem-me um café quando eu ainda estava nos cuidados intensivos era fabuloso; ir finalmente para um quarto e ter uma vista; depois, estar no quarto sozinha e não ter de ouvir o barulho dos cuidados intensivos — era absolutamente fantástico. O meu marido levou-me uma máquina de café Nespresso — não imagina o gozo que me dava beber aqueles cafés, o gozo que me dava ouvir música, o gozo que me dava ler…".

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A nem sempre valorizada humildade

"Hoje foi um dia de altos e baixos. Irritei-me por três vezes. Fiquei triste comigo. Devia ser mais controlada. Acabou por ter o seu lado bom. Cairmos em nós. Humildade", pode-se ler ainda no seu diário. E elucida-me: "O que não nos mata torna-nos mais fortes, desde que tenhamos capacidade, vontade e humildade para aprender e para nos pôr em causa. É fantástico estar vivo, um dom e uma graça. Algo que temos de aproveitar e agradecer. Hoje vivo muito mais no agora e um dia de cada vez". Conclui a afirmar que muitas vezes olha para este processo e parece que se passou noutra vida ou com outra pessoa. A tal dificuldade intrínseca ao ser humano em se relacionar com a morte — até nos relacionarmos, mas no final é como se nunca por lá tivéssemos andado. Porque não se andou, apenas se passou perto dela. E passar rasteiro a ela, assegura Maria, pode ser mais fácil do que parece: "Sei que nós achamos que não estamos preparados [para lidar com a ideia da morte], mas quando nós gostamos de viver e temos razões para viver, as dificuldade aparecem e nós, sem sabermos como, paulatinamente, com foco e metodicamente, podemos dar a volta a tudo.

Todos damos, se assim quisermos", remata. No filme A Vida em um Ano (2020) Isabelle, personagem interpretada pela supermodelo Cara Delevingne, sofre de um cancro em estado terminal. E escreve uma nota que tanto serve a ficção como a vida real: "Toda a gente acha que estar a morrer nos ensina algo sobre a vida, mas estão errados. A única forma de aprender sobre a vida é vivendo-a. E eu aprendi que todos os momentos são especiais. Às vezes são complicados, outras vezes são lindos, assustadores, ou completamente estranhos. Mas são todos especiais. Dêem-lhes valor. Viver não é fácil. Mas se conseguirem ultrapassar os vossos medos e esquecer as expectativas dos outros, a recompensa é a vossa vida".

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