Presidenciais norte-americanas. Mulheres brancas decidem a eleição

Kamala Harris fez um derradeiro apelo para angariar o voto destas mulheres, que representam mais de 30% do eleitorado e que, normalmente, apoiam o candidato republicano. Mas estas são as primeiras eleições presidenciais desde que o acesso ao aborto foi limitado e muitas não estão satisfeitas com isso.

Foto: Getty Images
05 de novembro de 2024 às 17:00 Madalena Haderer

Há uma semana, a equipa da campanha presidencial de Kamala Harris divulgou um anúncio televisivo que deixou a equipa de Donald Trump pouco satisfeita. A afável e tranquilizadora voz de Julia Roberts guia-nos através de uma secção de voto onde dois casais estão a exercer o seu direito. À partida, pela forma como se vestem e falam, são apoiantes de Trump, os maridos já votaram, mas, quando chega a vez das mulheres, elas vacilam, hesitam, Julia Roberts recorda-as que ninguém sabe o que se passa entre elas e o seu boletim de voto, podem mudar de ideias, naquele momento, e ninguém tem de saber, e podem, acima de tudo, voltar para casa com os maridos fingindo que, tal como eles, votaram em Trump porque, como em quase tudo na vida, importa mais o que se faz do que o que se diz.

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Numa campanha plena de comentários misóginos e de ataques à liberdade sexual e reprodutiva das mulheres, tanto por parte de Donald Trump, como do seu candidato a vice-presidente, J.D. Vance, a mobilização do voto feminino tem tido muita visibilidade, com frequentes protestos e manifestações nas cidades mais cosmopolitas, como Nova Iorque e São Francisco. "Se a minha vagina disparasse balas, não tinham tanta vontade de a regular" [numa alusão à relutância em restringir o direito às armas de fogo] e "Se quisesse o Governo enfiado na minha vagina ia para a cama com um Senador" são dois dos gritos de guerra mais "coloridos" que se ouvem nestes eventos. Gritos que, dependendo do meio em que se inserem e da ideologia política dos familiares mais próximos – em particular, pais e maridos – nem todas as mulheres podem proferir, mesmo que estejam de acordo com a mensagem.

Dale Partridge, um pastor cristão fundamentalista, argumentou, numa série de tweets, que "num casamento cristão, a mulher deve votar de acordo com as indicações do marido". John McEntee, um ex-conselheiro político de Trump, também usou a rede social X para fazer um trocadilho entre o voto por correio – mail only – e o voto unicamente masculino – male only – para concluir que o melhor é que a 19ª Emenda à Constituição, que deu o voto às mulheres, desapareça. Já na Fox News, Jesse Waters, comentador no programa de debate sobre a atualidade política chamado The Five, disse que uma mulher dizer ao marido que vai votar em Trump e depois votar em Kamala é o mesmo que traí-lo.

Sorry we want MALE only voting. The 19th might have to go. #JohnMcEntee #McEntee2028 pic.twitter.com/OJzXadROgo

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Com toda esta resistência, não admira que nas redes sociais, em particular no TikTok, tenha surgido uma nova tendência de acordo com a qual jovens mulheres fazem vídeos partilhando que vão cancelar os votos dos namorados, maridos ou pais, ou seja, eles votam em Donald Trump e elas, em Kamala Harris. E em todos esses posts há sempre alguém (ou vários "alguéns") a comentar que o remédio para isso não é cancelar votos, mas separação, divórcio ou cortes de relações. Com este anúncio televisivo, Kamala aponta uma terceira via mais prática e menos confrontacionista – Henry Kissinger chamar-lhe-ia realpolitik: use o boné MAGA, diga que vai votar em Trump, mas vote em Kamala.

Os dados mais recentes mostram que houve uma considerável participação feminina no voto antecipado em estados decisivos onde a votação está renhida, como é o caso da Pensilvânia, Arizona e Michigan, em particular no grupo das mulheres jovens que vão votar pela primeira vez. Mas será que as mulheres, maioritariamente do lado de Kamala, conseguirão entregar-lhe a presidência? A verdade é que, no cômputo geral, de acordo com as últimas sondagens, os candidatos estão empatados, com cerca de 49% das intenções de voto para cada lado. Por outro lado, as sondagens também monstram que 52% das mulheres estão com Harris, enquanto apenas 44% apoiam Trump. Quanto aos homens, 43% planeiam votar em Harris, enquanto 53% estão do lado do ex-presidente. 

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Ou seja, estamos perante aquilo que os anglo-saxónicos chamam de gender gap, ou disparidade de género. Só que, para além de uma disparidade de género, estamos também perante uma disparidade étnica. Desde 1996 que o voto das mulheres vai para o candidato democrata, mas se olharmos apenas para as mulheres brancas, isso só aconteceu uma vez, precisamente em 1996, quando 48% votou em Bill Clinton, face a 43% em Bob Dole. De resto, nas últimas décadas, as mulheres brancas têm votado sempre no candidato republicano. E as mulheres brancas constituem o maior bloco de eleitores, representando mais de 30% do valor total. Em 2016, mais mulheres brancas votaram em Donald Trump do que em Hillary Clinton e em 2020 repetiram a tendência, estando mais do lado de Trump do que de Biden – ou seja, Joe Biden ganhou, mas não graças às mulheres brancas. Em comparação, 95% das afro-americanas e 61% das hispânicas votaram no ainda presidente. Numa frase: as mulheres brancas são, há décadas, o eleitor chave do partido Republicano.

Porém, esta é a primeira eleição presidencial desde que o Supremo Tribunal dos Estados Unidos dificultou o acesso ao aborto, em junho de 2022, revertendo a decisão Roe v. Wade, que o solidificava enquanto direito, e os analistas políticos do campo democrata têm esperança que isso seja o impulso que faltava. Afinal, muitas destas mulheres brancas viram o aborto subir ao patamar de direito universal, em 1973, sabem como era a vida antes, como foi depois e como está a ser agora, para as suas filhas e netas. 

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Nos últimos dois anos, têm-se multiplicado os testemunhos e histórias de mulheres que tiveram complicações graves nas suas gravidezes, casos de vida e de morte, como gravidezes ectópicas ou situações em que o feto não era viável ou ainda casos de septicemia motivada por aborto espotâneo, em que não receberam os devidos cuidados médicos. Em muitos casos, conforme referiu Kamala Harris no debate com Trump, as mulheres ficavam no parque de estacionamento dos hospitais à espera que o seu caso fosse suficientemente grave para que os médicos pudessem tratá-las sem recearem ir para a cadeia.

Por outro lado, para estas mulheres brancas, conservadoras e evangélias, a economia e a inflação são temas mais importantes que os direitos sexuais e reprodutivos – na prática, porque têm dinheiro suficiente para poderem atravessar a fronteira nacional ou estadual para irem fazer um aborto, caso seja necessário. 

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Ainda assim, as sondagens mais recentes mostravam que as mulheres brancas mais jovens põem o direito ao aborto no topo das suas preocupações – afinal, são elas quem mais tem a perder se esse direito for ainda mais limitado do que já é – e nem todas podem contar com o apoio financeiro e moral da família ou dos parceiros – razão pela qual estão a mover-se para o lado democrata. Para além disso, convém não esquecer que estamos a falar de mulheres da Geração Z, que cresceram com os movimentos #MeToo e Black Lives Matter, que assistiram à ascensão do Trumpismo, e que têm Taylor Swiftuma mulher com gatos e sem prole – e Miley Cyrus e outras mulheres liberais e progressistas como modelos – de referir, porém, que se as opiniões de cantores e estrelas de cinema fossem assim tão importante nas eleições, ganhavam sempre os Democratas.

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Estamos a poucas horas de descobrir para que lado pende o voto das mulheres brancas e se foi, de facto, essencial para a eleição do próximo – ou da próxima – presidente. Isso, claro, se for possível fazer esse anúncio logo durante a madrugada – as últimas urnas fecham às 4h de Portugal. Se a vitória de um ou de outro candidato não for evidente e com grande margem – e não é expectável –, o mais provável é que o candidato republicano exija recontagens e comece a urdir novas alegações de roubo e fraude eleitoral. 

Para esta noite de eleições, a Máxima recomenda ânimo, nervos de aço e chá de tília.

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