Histórias de Amor Moderno: “Vinha de uma experiência altamente traumática. Uma relação abusiva que me deixou marcas”
“O maior gesto de amor foi uma conversa racional e calculista que o meu ex-namorado teve comigo”“Vinha de uma experiência anterior altamente traumática. Uma relação abusiva, psicologicamente devastadora, que me deixou marcas.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Quando eu era pequena, acreditava que o coração era o órgão onde se processava o amor. Depois, à medida que fui crescendo e que as paixões me foram acontecendo, desenvolvi uma tese a partir da minha própria experiência: é, afinal, no estômago que o amor ocorre, porque é lá, no começo da barriga, que acontecem os processos de sentir medo e ansiedade, alegria e falta de apetite, tristeza e, eventualmente, fome quando tudo acaba. (Fico com uma fome terrível e isto não é piada.)
A maturidade fez-me rever a tese, sem perder de vista a ideia nem abdicar da crença de que associar o coração ao amor é uma grande infantilidade. Quando muito, palpita um bocadinho mais se nos apaixonamos, mas qualquer reação de entusiasmo produz o mesmo efeito, se quisermos ser rigorosos. Compreendo que, por uma questão estética, fique mais bonito o desenho do coração vermelho associado a um sentimento que tanto nos move, enquanto pessoas e enquanto universo, mas até esse desenho é uma versão infantilizada do músculo robusto e concreto que serve para nos bombear o sangue.
Mas dizia eu que, na minha última revisão desta matéria, me ocorreu a possibilidade de andarmos todos positivamente enganados desde o princípio dos tempos. Qual é afinal o órgão do amor? A resposta esteve sempre mesmo por cima do nosso nariz: é o cérebro. O verdadeiro amor, aquele que se constroi e se sustém, aquele que tem fundações e futuro muito para além das sensações efémeras que nos fazem arrepiar estremecer, esse amor só é possível dentro do cérebro. O amor também é lógica e é razão.
O maior gesto de amor que me aconteceu na vida foi uma conversa racional e calculista que o meu agora ex-namorado teve comigo. E se pensam que não podemos sentir-nos amadas por ter alguém que se preocupa racionalmente connosco, saibam que estão enganados. Se os atos impulsivos que resultam do desejo e da paixão conseguem incendiar-nos por dentro e arrebitar-nos por fora, os gestos atenciosos são capazes de nos fazer sentir importantes e respeitadas. Não é coisa pouca. O sentimento de ter importância é muito mais raro do que possa pensar-se. Ser-se importante não significa ter-se um estatuto social de relevo ou um lugar de superioridade que outros cobiçam. O sentimento de importância surge da constatação de que alguém quer, realmente, saber de nós. E nada mais.
Conheci o César durante um trabalho. Fomos destacados, os dois, para uma reportagem televisiva, daquelas sobre tradições e gastronomia em que nos enviam para um qualquer desterro que mal aparece no mapa, e de onde tratamos de desenterrar tudo o que possa ser informação remotamente relevante para encher chouriços. Neste caso, era literalmente encher chouriços, pois tratava-se de umas festas de fumeiro numa terriola qualquer para os lados de Penamacor. E mesmo Penamacor precisou de ser assinalada no mapa - perto de Castelo Branco, a fazer fronteira com Espanha.
O tema da feira foi aproveitado pelo César para revelar o seu espírito infantil-masculino, que compõe, por sinal, o estereótipo clássico do operador de câmara - o que faz de mim, obviamente e por exclusão de partes, a repórter no local, de microfone na mão, a entrevistar pessoas -: inoportuno, inconveniente, desbocado e atiradiço. Mas o César tem jeito, é um rapaz inteligente e que sabe ter graça de verdade. As suas piadas, de certa forma indelicadas e no limiar do mau-gosto, eram salvas pelo toque subtil, de um marotismo falsamente ingénuo, que acabou por não só fazer-me rir, mas também derreter por dentro.
Quando eu e o César fizemos esse trabalho, eu não estava ainda bem. Vinha de uma experiência anterior altamente traumática. Uma relação abusiva, psicologicamente devastadora, que me deixou marcas. Depois do fim dessa relação, como se não bastasse, a besta com quem namorei decidiu perseguir-me. Fazia-me esperas, tornou-se stalker nas redes sociais, usavas nomes diferentes, perfis falsos. Chegou ameaçar-me de forma violenta. Era assim que queria que eu voltasse para ele. Só depois de eu fazer queixa dele é que me deixou em paz. Nunca mais disse nada desde há um ano e meio. Vamos ver se vai manter-se à distância.
Claro que, depois de uma relação dessas, mais do que conturbada, completamente caótica e sempre no limiar da violência (nunca chegou a bater-me, no sentido mais literal, mas agarrava-me os pulsos com força, insultava-me baixinho ao ouvido, cheio de raiva, mesmo que estivéssemos em lugares públicos, dava-me beliscões que chegaram a deixar-me nódoas negras nos braços e nas pernas se eu calhava dizer ou fazer alguma coisa que o desagradasse ou contrariasse), eu queria tudo menos estar com um homem. Estive entre a solidão recatada e a fuga ao meu ex-namorado anterior durante quase dois anos. Pode não parecer muito tempo, mas não é propriamente normal uma mulher de 25 ou 26 anos anular os seus instintos e abdicar de uma vida romântica e até sexual perfeitamente normal e legítima.
A povoação onde fizemos, eu e o César, a tal reportagem chama-se Aranhas. Como disse, era a festa do fumeiro. Havia todo um manancial de piadas inconvenientes e idiotas à disposição do César - e acredito que ele tenha usado todo o material de que dispunha e que a circunstância lhe proporcionava, das teias de aranha às mais variadas designações de enchidos. Com o desenrolar da festa e o aproximar do fim da emissão, bebemos um copo de vinho e experimentámos um petisco. Quando o trabalho chegou ao fim, decidimos que, já que ali estávamos, talvez o mais inteligente fosse ficar por lá, desfrutar da festa. Ficaríamos num alojamento na zona, a produção haveria de pagar, sem problemas.
Foi uma noite de boa memória para mim. Diverti-me como há muito não me divertia. E senti-me ouvida e observada pelo César, mas de uma maneira boa, uma maneira agradável, que me fazia sentir especial. Por entre as suas piadas e a sua aparente loucura, revelava-se um rapaz atento e até delicado. E o meu estômago, maltratado e solitário há anos, não demorou a sentir arrepios e ansiedades, apertos e solavancos. Lá fomos nós.
Eu e o César estivemos juntos durante quase três anos. No entanto, na prática, passámos juntos pouco mais do que um ano. O restante, namorávamos à distância e víamo-nos uma ou duas vezes a cada trimestre. Ele vinha a Portugal durante curtas temporadas - às vezes, uma semana, uma semana e meia, outras vezes apenas quatro dias - e depois regressava para o Médio Oriente, onde tinha o seu trabalho e era muitíssimo bem pago.
O César, que era um cameraman freelancer, foi chamado para acompanhar uma prova qualquer (não sei se foi Fórmula 1, se foi um rali daqueles no deserto, alguma coisa do género) pouco depois de termos começado a namorar. O trabalho correu bem, ofereceram-lhe uma avença e ele aceitou. Eles pagam realmente bem. Com tudo a continuar a correr bem e com a concentração crescente de eventos desportivos internacionais na região, entre Arábia Saudita, Qatar, e Emirados Árabaes Unidos, ofereceram-lhe um contrato fixo, de longo prazo.
Da última vez que veio a Portugal, o César ainda não tinha aceitado esse contrato. Não quis fazê-lo sem falar comigo primeiro. Só que, quando falou, não foi para me consultar. Foi para me dizer que era absolutamente irrecusável. Mostrou-me números. Era, de facto. E depois acrescentou “não quero que esperes por mim”. Fiquei confusa, não percebi o que ele queria dizer com isso. Então ele insistiu. Tinha pensado muito sobre o assunto e, na verdade, estava a roubar-me ainda mais anos da minha juventude, supostamente os melhores anos da minha vida, fazendo com que eu ficasse à espera dele. Ainda por cima, sabia-se lá se voltaria. Talvez voltasse, provavelmente sim, mas e se houvesse novo contrato a seguir a este? E se fosse ainda mais chorudo?
Perguntou-me, só para se certificar, se eu queria ir com ele, mas sabendo perfeitamente a resposta, claro, porque já tínhamos falado varias vezes do assunto: não, nunca enquanto nesses países onde as mulheres eram vistas como cidadãos de segunda e com direitos condicionados. Além disso, tenho a minha própria carreira e trabalhei demasiado para a ter, não ia agora deitar tudo abaixo, desistir, só para ter um marido rico e viver num país cuja cultura eu deploro.
“Pronto”, disse ele. “É por isso mesmo que acredito que devemos seguir as nossas vidas. O maior gesto de amor que podemos fazer um pelo outro é não impedir a felicidade e o bem-estar um do outro.” Saber largar é também uma demonstração de amor. Não é isso que se diz?
Lá em baixo, no meu estômago, uma tristeza forte começou a comprimir-me e a desfazer-me. Mas cá em cima, na minha cabeça, instalou-se uma inesperada sensação de leveza, de liberdade, como se tivesse um comprimido milagroso para a angústia. E senti um imenso amor pelo César, verdadeiro, profundo, feito de respeito e de paixão. Conversámos muito, esclarecemos tudo e acabámos mesmo ali. Com um sorriso triste e um olhar apaixonado de um para o outro. Sei que ele será mais feliz se não tiver o pensamento em mim, se não me tiver como preocupação nem fonte de ansiedade e de angústia. E eu serei certamente mais feliz sem projeções nem ilusões, só vivendo a minha vida sossegada e concreta, concentrada em mim, no meu trabalho, no meu quotidiano daqui. Eu sei bem viver só e desfrutar da solidão. Prefiro viver assim a ter de lidar com falsas expectativas ou até coisas ainda piores.
*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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