O tempo das mulheres estica?

Saber gerir o tempo era uma questão de organização. Hoje é uma questão de bem-estar. O século XXI trouxe as maravilhas da tecnologia e também a exaustão da flexibilidade. Gerir o tempo tornou-se uma arte que se aprende e um caminho para alcançar a qualidade de vida que se recomenda. Mas há um elemento que não mudou: a exigência que se impõe às mulheres.

25 de outubro de 2019 às 07:00 Carolina Carvalho

Laura Vanderkam é casada, tem quatro filhos pequenos, vive nos arredores de Filadélfia, nos EUA, e trabalha em casa. O seu trabalho é escrever. Publicou livros sobre gestão do tempo e produtividade, assinou artigos para revistas e jornais de prestígio, teve um podcast, tornou-se uma guru do tema e até deu uma TED Talk sobre como controlar o tempo livre, à qual deu início afirmando que, à partida, as pessoas assumem que ela é pontual, mas estão erradas porque Laura até já chegou atrasada a um discurso sobre gestão do tempo. A autora confessa que gostava de culpar os filhos (levante a mão quem nunca o fez…), mas a verdade é que a culpa nem sempre é deles. A gestão do tempo é um tema na ordem do dia e mais que nunca. Talvez devesse ser considerado uma epidemia porque, embora não seja uma doença, pode conduzir a uma série de problemas e afeta, especialmente, as mulheres. Está cientificamente provado e abordaremos isto adiante. Para já, comecemos por identificar que assunto é este que até os especialistas como Laura Vanderkam têm dificuldade em dominar. Perguntámos a uma especialista. Maria da Glória Ribeiro é head-hunter, perita em liderança e gestão de carreiras e fundadora e managing partner da multinacional de executive search Amrop, em Portugal. É também autora do livro Eu Sou o Meu Maior Projecto (editado pela Manuscrito, em 2016) e explicou à Máxima que "genericamente a gestão do tempo é a arte de organizar a vida de forma a controlá-la e ser o dono da mesma". E acrescenta: "Uma boa gestão do tempo implica uma correta organização pessoal e uma constante monitorização das tarefas e do tempo necessário a cada uma delas. E para isso temos de nos conhecer melhor porque gerir o tempo implica sabermos quais os nossos objetivos e prioridades. Saber o que queremos no futuro e o que devemos fazer, hoje, para o alcançar." Uma boa gestão do tempo é fundamental para o sucesso, tanto na vida profissional como na vida pessoal. Numa época em que temos formas cada vez mais rápidas de resolver assuntos e de aceder aos pequenos prazeres da vida, porque é que vivemos com a pressão de termos cada vez menos tempo e com uma constante sensação de cansaço?

Máquinas de lavar que se podem pôr a funcionar à distância, programas de televisão gravados que permitem saltar os intervalos, compras online para evitar idas a lojas e filas intermináveis não são soluções, mas sim ilusões. Para organizar bem o tempo de nada vale carregar a carteira, diariamente, com uma linda e pesada agenda ou agendar inúmeros alertas no telemóvel, pois também é necessário saber fazer as escolhas certas. Quando arranjar mais tempo é uma escolha que temos de fazer a resposta é, normalmente, que não o temos. Mas perante um imprevisto ou uma situação imperdível, o tempo estica, miraculosamente. O segredo estará, então, em definir prioridades? Michelle Obama dizia numa entrevista, no início de 2018, que quando tratava da sua agenda de primeira-dama, no início de cada ano, antes de qualquer reunião ou conferência eram marcados todos os acontecimentos pessoais, como as férias, os treinos ou as idas a eventos desportivos. O tempo que sobrava era para o trabalho e, mesmo assim, disse a própria, era bastante. Em entrevista à Máxima, Conceição Nobre, psicóloga da Ph+ Desenvolvimento de Potencial Humano, explica que "a gestão do tempo depende menos da quantidade de tarefas que temos de cumprir e muito mais daquilo que priorizamos no nosso quotidiano". Refere a importância de saber distinguir o que é importante do que é urgente porque "uma boa gestão de tempo implica que ganhemos consciência e priorizemos o que é importante em detrimento do que até possa ser urgente, mas que verdadeiramente terá pouca importância a médio ou longo prazo". Priorizar não implica desvalorizar, mas se a gestão do tempo não for bem conseguida, na altura de fazer escolhas as vidas profissional e pessoal podem entrar em conflito. É verdade que uma vida pessoal saudável é um bom condutor para uma vida profissional de sucesso, mas é necessário que cada pessoa aprenda a equilibrar os diferentes papéis que desempenha na vida. Explica a psicóloga: "O trabalho tem, hoje, uma presença muito forte nas nossas vidas e facilmente dizemos que a família é muito mais importante do que o trabalho, mas, se não tivermos trabalho, que vida em família teremos? É difícil que a vida profissional não interfira na família e que esta não influencie o nosso quotidiano laboral." E ilustra com os seguintes exemplos: "Que concentração teremos no nosso trabalho quando, na noite anterior, o nosso companheiro ou companheira desabafou estar apaixonado(a) por outra pessoa? Como poderemos estar focados na conversa à hora do jantar quando um dos nossos maiores clientes anunciou que iria prescindir dos nossos serviços a favor de outra empresa, nossa concorrente?" Para cada situação devem ser definidas prioridades segundo os objetivos a alcançar e para as mulheres a tarefa ainda é mais exigente do que para os homens.

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Conceição Nobre refere três estudos que nos ajudam a analisar esta questão desde uma perspetiva global até ao que acontece, atualmente, em Portugal. Um estudo da investigadora Kristen Shockley, da Universidade norte-americana da Geórgia, realizado em 2017, conclui que tanto as mulheres como os homens sentem um conflito na relação trabalho/família, contrariando a ideia generalizada que aponta este problema como maioritariamente feminino. "Pode ser mais aceite socialmente e expectável que as mulheres verbalizem este conflito, mas os homens sentem exatamente o mesmo tipo de conflito no que toca ao tempo dedicado à família e ao trabalho", conclui a psicóloga. O trabalho que esta questão dá à consciência parece ser igual para homens e para mulheres. Mas na prática, o trabalho que as tarefas domésticas dão continua a recair muito mais sobre as mulheres do que sobre os homens. O relatório A Quantum Leap for Gender Equality: For a Better Future of Work for All, publicado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT, na versão internacional International Labour Organization, ilo.org), em março deste ano, prova que esta ainda é a realidade atual. Tendo por base uma amostra global, este estudo mostra que as mulheres empregadas dedicam, em média, quase quatro horas e meia do seu dia ao trabalho doméstico e aos cuidados familiares, enquanto o tempo despendido pelos homens nas mesmas tarefas é de uma hora e 23 minutos. Segundo este relatório, 21,7% das mulheres dedicam-se a tempo inteiro ao trabalho doméstico e à família (sem qualquer remuneração), enquanto a percentagem dos homens nas mesmas condições fica em 1,5%. Para um retrato mais preciso da realidade portuguesa, a Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) publicou, em fevereiro deste ano, o estudo As mulheres em Portugal, hoje: quem são, o que pensam e como se sentem e uma das conclusões mais alarmantes é o facto de cerca de 71% das mulheres inquiridas dizerem sentir-se sempre ou quase sempre cansadas. Nos resultados apresentados pode ler-se que as mulheres ativas no mercado de trabalho e as que não têm trabalho remunerado passam quase a mesma percentagem de tempo que estão em casa dedicadas a cuidar do lar ou da família (57% e 52%, respetivamente), as mulheres têm a seu cargo mais do triplo das tarefas domésticas em relação aos homens e apenas 15% das inquiridas tem apoio remunerado na realização destas mesmas tarefas. No estudo da FFMS, as mulheres portuguesas dispõem, em média, de pouco mais de quatro horas por dia para si, divididas entre um pouco menos de duas horas e meia em casa e pouco mais de uma hora e meia fora de casa. É preciso perceber o que este tempo inclui: em casa, a higiene pessoal, ver televisão, ouvir música, ler, entre outras atividades, e, fora de casa, ir ao cabeleireiro, ir ao cinema, praticar desporto e encontrar-se com amigas. Shonda Rhimes, autora de séries de televisão de sucesso como Anatomia de Grey, Clínica Privada ou Scandal, conta que a sua rotina diária começa às cinco horas e meia da manhã para ter uma hora e meia só para si antes de os três filhos acordarem às sete horas, que tanto usa para escrever como para olhar simplesmente pela janela. A empresária Ivanka Trump, filha do presidente americano, segue os mesmos horários. Levanta-se à mesma hora (que Shonda) para uma rotina que inclui meditar, fazer exercício, tomar duche, maquilhar-se, vestir-se e ler jornais antes de os filhos se levantarem uma hora e meia depois. A importância de ter tempo pessoal é enorme e estes números refletem a dificuldade das mulheres em encontrarem espaço no dia a dia para se dedicarem apenas a si próprias. Se até mulheres altamente bem-sucedidas se apoiam numa gestão de tempo rigorosa para garantirem o seu espaço nas apertadas agendas, quanto mais quem tem apoios limitados e um excesso de afazeres para garantir o seu bem-estar e o de outras pessoas?

A psicóloga Conceição Nobre alerta que a sobrecarga de tarefas leva a um sentimento de exaustão que faz com que as mulheres não desfrutem das várias esferas da sua vida e pode levar a consequências mais profundas. "Por vezes, as mulheres agem com a noção de que têm de fazer tudo a bem da família. Esta crença, que gera uma série de pensamentos automáticos e emoções que levam as mulheres a realizar muito mais para além dos seus limites, não podia ser pior para a família. O cansaço, a exaustão, deixa-nos pouco disponíveis para o outro, seja ele o parceiro, os filhos ou ambos." E acrescenta que é preciso investir numa solução que começa por ser as próprias mulheres a desfazer o preconceito de terem de fazer tudo e começarem a pedir ajuda e delegar. A mulher tem um papel educativo e formativo com a respetiva família e não deve acumular todas as tarefas porque os restantes membros da família não as fazem corretamente ou protestam por terem de as fazer. "É preciso confiar na nossa capacidade de promover mudanças e na capacidade dos outros para mudar... A mudança custa e demora tempo, mas pode ser muito compensadora para as mulheres, para os seu parceiros e parceiras, para os filhos, para a família, para a sociedade."

É verdade que muitas pessoas têm dificuldade em gerir o tempo e as diferentes dimensões da vida e isso acaba por conduzir ao insucesso profissional e pessoal. Contudo, é uma questão que, cada vez mais, se procura melhorar e este é um dos grandes temas do coaching. António Ruivo é formador na área de Estratégia, Marketing e Desenvolvimento de novos Mercados (quer offline, quer online), Análise e Otimização de Processos, Conceção de Sistemas de Gestão de Desempenho, Gestão de Equipas e Gestão do Tempo e é o responsável pela formação Gestão do Tempo - Fatores Críticos de Sucesso, na Associação Nacional de Jovens Empresários (ANJE), no Porto, e explica-nos a importância de saber gerir o tempo e em que é que as mulheres fazem a diferença nesta área. Confessa que, regra geral, as mulheres em contexto de trabalho são mais organizadas. Nos seus cursos, os participantes realizam uma análise SWOT (Strengths, Weaknesses, Opportunities, Threats) e quase todos os participantes homens têm como principais dificuldades a organização pessoal e a gestão do tempo, enquanto apenas cerca de 50% das participantes revelam as mesmas dificuldades. "Talvez seja pelo facto de a maioria delas estarem habituadas a um maior foco e disciplina, inerentes às suas atividades de gestão da casa e da família, já que, por norma, as mulheres trabalham mais do que os homens. E isso, de algum modo, dá-lhes uma agilidade e uma flexibilidade mental maior que facilita também o foco e a gestão de prioridades na sua atividade profissional diária." E acrescenta: "Na cabeça de uma mulher há sempre coisas para fazer. É por isso que para elas é inconcebível que um homem possa sentar-se diante da televisão e não pensar nas coisas que há para fazer numa casa." Nas mulheres a pressão já é natural (e cultural). O padrão social que põe a mulher ao leme da família até pode estar a mudar lentamente, mas por enquanto ainda está enraizado na sociedade e as obrigações e as defesas com que se cresce tornam-se, eventualmente, um registo automático difícil de desligar, mas que até pode ter as suas vantagens. Ou seja, como explica o formador: "As mulheres adaptam-se melhor quando confrontadas com desafios profissionais relevantes, fazendo uso de três coisas que a maior parte delas sabe utilizar muito bem em casa: a persuasão, isto é, usando a lógica e a razão para ajudar os seus familiares (filhos e marido) a entender o que eles precisam de fazer; a capacidade de influenciar os outros; e a capacidade de inspirar os outros a ser e a fazer o seu melhor."

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António Ruivo começou a dar esta formação em 2010 e explica que as pessoas procuram ajuda para saírem das rotinas e para encontrarem soluções num cenário de cada vez mais exigência e, simultaneamente, de cada vez menos rendimento do tempo. Tem como alunos quadros superiores, gestores comerciais e de marketing, gerentes de PME, gerentes bancários, chefes de produção fabril ou comerciais de várias áreas, a quem expõe exemplos da vida real nas empresas, análise de alguns vídeos temáticos, bem como coloca atividades individuais e em equipa. Conta que muitas pessoas são surpreendidas pela expressão "orçamento do tempo", principalmente quando percebem que não é difícil ganhar 30 minutos por dia e que isso traduz-se em quase 14 dias num espaço de 11 meses. É possível aprender a gerir o tempo e é uma competência que se pode e que se deve ensinar às crianças desde cedo. Não obstante, para ganhar tempo também é preciso investir tempo e energia, explica António Ruivo, adiantando: "Custa muito ao princípio. É como emagrecer, pois exige foco e muita disciplina, e, por isso, tanta gente desiste." Esclarece, ainda: "Independentemente de se ser homem ou mulher, a gestão do tempo reduz-se à gestão da nossa energia durante as 24 horas do dia. Ou seja, o que é importante é a gestão que cada um faz do seu Eu." Porque saber gerir bem o tempo, reconheçamos, é saber gerir a qualidade de vida.

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