Kremlin impede famílias sem filhos de aparecerem em filmes, livros e publicidade
Uma crónica quinzenal na qual a jornalista diz coisas sobre o mundo e os que nele habitam que não pode dizer num artigo a sério – se quiser manter o trabalho.
O português é uma criatura que nunca está satisfeita. Tanto se queixa que os deputados falam, falam, e a gente não os vê a fazer nada, como desata logo a pôr defeitos quando um parlamentar mais empreendedor decide não viver apenas à conta do Estado e cria o seu próprio negócio, para as horas vagas. Isto, a propósito de Miguel Arruda, o deputado açoriano do Chega, que, desde que foi eleito, vive entre Lisboa e São Miguel. No início desta semana, à chegada ao aeroporto Humberto Delgado, tinha à sua espera agentes da PSP que o levaram a casa – finalmente uma comissão de boas-vindas ao nível do seu estatuto, terá pensado Arruda –, e procederam, em seguida, à revista do seu apartamento. Para espanto de... ninguém, encontraram três malas de viagem roubadas e outras quatro foram apreendidas na sua residência nos Açores. Ao que tudo indica, o deputado andava a palmar bagagem do tapete rolante do aeroporto desde que tomou posse.
Só que é preciso ter em conta a motivação, que esta gente da polícia espera logo o pior das pessoas. O mais provável é que o deputado estivesse distraído durante uma reunião de trabalho do Chega e não tenha percebido bem o que era suposto fazer para combater a imigração. Com a pressão de querer mostrar serviço teve, subitamente, uma ideia brilhante: fanar valises. "Volta mas é para a tua terra e vai buscar outra muda de roupa, que aqui a tua malinha já ganhou pernas, ó Abdul!", terá dito, enquanto fugia para a casa de banho com o produto do seu delito.
Às tantas, dando por si a viver apertado, numa espécie de forte feito de trolleys, Miguel Arruda foi forçado a vender o fruto das suas pilhagens politicamente motivadas, e foi assim que criou uma conta no Vinted. Conta essa que, para efeitos legais, ele agora não se lembra de ter criado. E que, por coincidência, alguém, certamente não ele, já tratou de apagar.
Para um partido que não gosta de ciganos, é curioso ver um dos seus deputados montar uma banca virtual de roupa e acessórios de moda. Mas a verdade é que o Vinted não foi a sua primeira escolha para dar caminho aos objectos desviados. Primeiro, pensou estender um pano à porta da Assembleia da República, debaixo das janelas dos gabinetes da bancada parlamentar do seu partido, porém, como isto foi uns meses antes de André Ventura ter decidido pendurar umas colchas na fachada do edifício, Arruda pensou que a iniciativa seria mal recebida.
Outra excelente ideia foi prontamente arrasada por colegas das bancadas opositoras, quando deputadas do Bloco de Esquerda e do PS se queixaram de ser assediadas por deputados do Chega, nos escuros e longos corredores da Assembleia. Percebe-se agora que tudo não passou de grande um mal-entendido e que o alegado assediador era o deputado Miguel Arruda, que abria a gabardine, sim, mas para lhes mostrar jóias e relógios que tentava vender ao melhor pagador.
Perante isto, não sobrou ao homem outra hipótese que não a plataforma digital de venda de artigos em segunda-mão, o que é perfeitamente compreensível. Preocupante é termos uma alta figura do Estado que não tem sequer inteligência para roubar sem ser apanhado – ainda por cima malas desacompanhadas. Como se não bastasse o facto de estar, repetidamente, a levar coisas de um sítio altamente vigiado, decidiu vendê-las numa plataforma, onde podia ter criado um perfil com dados pessoais falsos, por oposição a escolher o nome de utilizador miguelarruda84, que calha a ser o seu nome, sobrenome e data de nascimento. E ainda pôs como fotografia de perfil a igreja da sua freguesia. Pode haver outro Miguel Arruda, de 84 anos, por exemplo, a viver na mesma terra e que frequente a mesma igreja que o deputado do Chega? Pode. O problema é que, provavelmente, é o avô dele. Que nunca andou de avião nem tem internet, computador ou smartphone. Muito menos tem a casa atulhada de roupa – a menos que o neto lá tenha guardado alguma.
Questionado pelos jornalistas, Miguel Arruda defendeu-se com toda a clareza: "Sim. Não. Quem? Eu? Aeroporto? Não me lembro. Malas? Não. Talvez. Nunca. Vinted? Não tenho ideia. Isso são coisas da minha mulher. Apagar a conta? Quem? Eu? Qual conta? Vinted? Eu nem sei o que isso é. Imagens minhas a rapinar malas no aeroporto? Só pode ser inteligência artificial."
Esta manhã, Pedro Pinto, o líder da bancada parlamentar do Chega disse que não se responsabilizava por actos cometidos pelos deputados do seu partido contra o agora desvinculado e deputado independente Miguel Arruda. O parlamentar açoriano foi repudiado pelos ex-colegas de bancada e não é para menos. Então, este trafulha andava a despachar roupa e acessórios, produtos de beleza, joias e relógios, ao preço da uva mijona e não ofereceu nada aos colegas de partido?! Não admira que queiram explicar-lhe uma coisa ou outra sobre moral e bons costumes. Afinal, como dizia António Silva no filme a Canção de Lisboa, "ou comem todos, ou há moralidade".
A autora escreve segundo as regras do Antigo Acordo.