Manuel Vilas, escritor. "Quando morre um pai ou uma mãe, a vida que nós vivemos a seu lado morre também"
Em entrevista à Máxima e de passagem por Lisboa, o escritor espanhol fala-nos sobre a intemporalidade do amor, a paixão pela escrita e as metáforas dos seus livros.
Foto: DR24 de junho de 2022 às 15:46 Rita Silva Avelar
Tornou-se escritor tardiamente, e na casa dos 50 lançou aquele que até à data é o seu grande sucesso, Em Tudo Havia Beleza, de 2018, no original Ordesa, antecessor de E, de repente, a alegria, editado no ano seguinte. É um auto-retrato nu de um homem que encontra a solidão. Uma confissão e um grito de dor. Um ensaio sobre a morte e sobre estar-se vivo. Acima de tudo, um livro sobre a tragédia e a glória do tempo, e da sua inevitabilidade. É um livro que nos põe em perspectiva: leva-nos a viajar ao presente, ao passado e ao futuro. De passagem por Lisboa, aos 59 anos, Manuel Vilas apresenta agora Os Beijos, editado pela Alfaguara, onde também volta a temas como o amor e a solidão, o idealismo e a imprevisibilidade da vida, num romance passado durante a pandemia, entre Salvador e Montserrat, dois estranhos que se apaixonam de maneira improvável durante o confinamento.
A voz de escritor demora a encontrar-se? O que é que o fez tornar-se escritor?
Os inícios da vida de escritor são sempre relacionados com a adolescência, e geralmente com os livros que lemos. No meu caso, houve uma situação peculiar. Adorava rock n’roll, vivia numa aldeia pequena, estávamos a viver o franquismo e os discos de vinil de rock n’ roll – como The Rolling Stones, The Beatles ou Bob Dylan – eram como um bálsamo. Lia livros e escutava todos estes discos, Lou Reed, Elvis Presley, David Bowie… E via, sobretudo, que ali havia força vital. Liberdade. Era uma maneira interessante de viver: claro que aspirava a ser uma estrela como eles, só que não tinha talento. Comecei, assim, a escrever.
Era um romântico. Lia muita poesia francesa. Adorava a vida do poeta francês Rimbaud, uma vida plena de mistérios, de aventura, de viagens, era o romantismo.
Tinha alguém na família ligado à área?
Não. Fui o primeiro. Não tinha nenhum estímulo, o meu pai não estudou, a minha família veio da classe média baixa. No final dos anos 80, já Franco estava morto, começava a democracia, o país estava a mudar, chegava a televisão, notava-se muito desejo de liberdade, de viver de outra maneira, e isso também me influenciou. Tornou-se mais sensível para tentar ser escritor.
Não direi que terá sido um só momento. Comecei com a poesia, publiquei uma novela, foram pequenos momentos. Recebi um prémio [com Em Tudo Havia Beleza, ganhou o Prémio Femina Étranger], o que ajudou. Foram pequenos momentos.
Ordesa, esse livro merecedor do prémio, tem um tom muito confessional e cru. É uma espécie de autobiografia com laivos poéticos? Que método adota, para escrever?
Com Em Tudo Havia Beleza foi a partir da vida dos meus pais. Foi recordar a minha vida familiar, tudo o que vivi. Como uma catarse. Em Os Beijos, é mais um romance de ficção, foi diferente. Em Tudo Havia Beleza é autobiográfico, sim.
Como foi lidar com o boom que foi o lançamento esse livro?
Um escritor procura sempre chegar ao coração dos leitores. Muitos leitores viram Em Tudo Havia Beleza a sua própria história familiar. Viajei muito, é um livro que me mudou a vida. E as pessoas dizem-me o mesmo, que o livro lhes mudou a vida. É um livro que ajudou muita gente a repensar a sua relação com os pais. Para mim, ajudar pessoas é uma satisfação, através da escrita.
O que desencadeou começar a escrever este livro foi a morte da minha mãe. Vi que a minha família estava a desaparecer, e depois da morta da minha mãe, dei-me conta que precisava de reconstruir a história da minha família. Com a morte dela, dei-me que conta que sobrava nada para recordar. Era eu o último. E que quando eu morresse, esta família não existiria, precisei que garantir que essa memória não desapareceria.
Quando morre um pai ou uma mãe, a vida que vivemos com eles, a vida que nós vivemos ao seu lado, os dias passados com eles, morrem também. O que é a infância? És tu, com o teu pai e com a tua mãe. Se eles não estão, tu não tens infância. Eles levam-na. Quando um pai morre, parte de nós morre também.
Foto: DR
Esse sentimento está bem impresso nesse livro. Em Os Beijos, abordou a solidão e o amor sem idade. É um tabu?
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Há uma discriminação associada à idade, sim. Parece que as pessoas mais velhas perdem o direito a namorar. Eu queria, em Os Beijos, reivindicar que o amor ocorre em qualquer momento, seja aos 40 ou aos 60. Socialmente, às vezes, o amor na idade madura está mal visto: é visto como ridículo e patético. Penso que não há idade para o amor, e o romance defende essa idade.
Temos poder de escolha, nesse momento de paixão?
Creio que os seres humanos escolhem, sim. Se alguém te beija, podes recusar ou aceitar. O título – Os Beijos - expressa essa ideia. Uma história de amor começa com um beijo. Historicamente, a mulher decide se aceita ou não o amor. Mas os tempos mudaram, os códigos amorosos antigos já não se impõem.
Numa entrevista disseram-me, uma vez, que nunca se ama da mesma forma, nem com as mesmas intensidades. Essa intensidade espelha-se nestas duas personagens que se apaixonam – foi difícil imprimi-la neste romance?
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São duas personagens, Salvador e Montserrat, que têm visões diferentes da vida. Quis criar personagens distintas. Um é idealista, Salvador, outra é uma mulher que viveu um grande amor, divórcio e perda. O que os une é o desejo por viver uma história de amor. Desejam-no num momento triste, durante a pandemia. Queria dizer ao leitor, também, que a meio de uma catástrofe, de uma tragédia coletiva, a única forma de voltar a sentir emoção pela vida era através do amor. Tenho a certeza que na Ucrânia, em Kiev [na altura da explosão da guerra] havia um homem e uma mulher que se apaixonaram no primeiro dia da guerra. Assim como quando no filme Casablanca, Ingrid Bergman escuta que os nazis estão a entrar no país e diz, a Humphrey Bogart: "O mundo está a desmoronar-se, e nós dois estamos apaixonados."
Dizem-nos que o mundo vai acabar, e há algo que começa… Porquê a referência a Dom Quixote, neste livro?
Porque representa um ideal, uma utopia. Quando há um momento de tristeza universal, como foi o vírus, e recordar uma personagem tão humorística e idealista ao mesmo tempo, como Dom Quixote, pareceu-me uma forma de recuperar a alegria. A obsessão de Dom Quixote é impor a justiça. Essa justiça está ao serviço de um amor, que é o motor das aventuras de Dom Quixote. Salvador, o protagonista de Os Beijos, vê em Dom Quixote um modelo.
Onde escreve? E de onde veio esta história?
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Imaginei Os Beijos porque o sítio onde vivo fica perto da serra de Madrid, onde se passa este romance.
Voltando à ideia solidão, quis contrariar a ideia de que é possível ser-se feliz sozinho?
Creio que o ser humano não é feliz estando sozinho. Precisamos de algo mais. Mas é verdade que nestes momentos – pandémicos - há pessoas que se vêm numa situação de solidão. Há uma diferença entre a solidão eleita e a solidão imposta. É uma desgraça, a segunda.
Está a trabalhar em algum novo romance?
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Sim, neste momento.
Sente a pressão literária para escrever?
Nunca senti. Eu preciso de escrever, os meus editores nunca me pressionaram porque eu já trabalho muito.
Cruza-se com muitas histórias por contar? São os momentos mundanos, a verdadeira inspiração?
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Tudo é muito misterioso. Qualquer coisa me serve, uma conversa, uma palavra ouvida num café ou num bar, que de repente nos ilumina. Um escritor está sempre a observar e a fixar tudo. Todos os elementos podem ser decisivos para escrever um romance. Sinto-me um analista, a minha capacidade de observação é gigantesca. Ao ver chegar este café [aponta para a chávena], que pedi com açúcar, automaticamente pensei em como era a vida desta editora - observei que estas pessoas tomam café sem açúcar. Este detalhe reflete uma maneira de estar no mundo destas pessoas. A partir disto já podemos reconstruir a vida delas. A vida que acontece à nossa volta está sempre a ser fotografada por nós. Eu amo a vida, é maravilhosa, é um grande espectáculo. Por isso, penso a minha literatura como uma arma para defender a vida.