Kalaf Epalanga: “A literatura é como tudo na vida, é estilo. Tudo na vida é estilo”
E estilo é coisa que não falta a Kalaf. Conversámos com o músico e escritor sobre Também os Brancos Sabem Dançar, o seu terceiro livro.
15 de dezembro de 2017 às 12:28 Rita Silva Avelar
Não nos ocorre um sítio tão poeticamente bonito para uma conversa literária, ao fim de tarde e a meio da semana, como a Galeria Zé dos Bois, no Bairro Alto, em Lisboa. É comum ver por aqui passar, sentar e conversar as pessoas que não têm definição segmentada nem possível - artistas, criativos, pessoas sem caixas. Foi por isso que convidámos Kalaf Epalanga, músico, escritor, poeta, cronista (pois, lá está, a tal definição), a subir ao segundo piso do espaço para uma conversa sobre o livro que acaba de apresentar como "um romance musical". Mas Também os Brancos Sabem Dançar é bem mais do que isso. Podemos pensá-lo (e interpretá-lo) como um título de viagens, um diário e guia musical das últimas décadas, uma pequena biografia da emergência do kizomba e do kuduro, um retrato político (que pode ser afiado para uns, ligeiro para outros) – tudo isso numa mesma leitura de 371 páginas. Mas vamos à conversa, a que está fora dessas páginas, e que nos revelou mais sobre o autor - na primeira pessoa.
Chamou a este terceiro livro um romance musical. Tem o ritmo Kalaf?
Eu nem sei dançar! Por isso acho que tem um ritmo melhor do que o meu. O livro assume essa postura documental, de quase ensaio, do contar uma história, a biografia do género kuduro, e ao contá-la percebi que não daria para falar deste estilo sem incluir a kizomba, por exemplo. Nos anos 90, as discotecas de kizomba eram o lugar onde se podia ouviar kuduro, e hoje pode-se ir ao MusicBox ouvir a Príncipe a tocar kuduro a noite inteira, pode-se ir ao Lux ouvir as noites da Enchufada, onde há bastante kuduro. Sendo a kizomba essa grande bandeira cultural que unifica várias culturas e países, de Portugal a Cabo Verde e Angola, eu senti que tinha de a trazer para a conversa, e homenageá-la.
Chegou a Portugal com 17 anos. Escrever era um sonho que trazia na mala, tal como a música?
Escrever era mais natural do que fazer música. Eu só comecei a vislumbrar uma vida no mundo da música em Portugal e mesmo assim não como cantor nem performer, mas sim ao escrever letras, e senti que podia dar algo de mim, ter uma voz. Uma vez estávamos em estúdio, alguém me viu, e eu passei para o outro lado do vidro para explicar e corrigir parte da letra on the spot, e alguém me ouviu falar ao passar. Essa pessoa ouviu o meu tom de voz e a forma como eu estava a explicar os versos e disse: "Eu não preciso que sejas bom cantor, basta falares o que escreves em cima das canções." No dia seguinte apareci com o meu livro de poemas, musiquei-os todos. Na altura vivia em Almada e quando saltei para Lisboa encontrei uma personagem (que até está no livro), um DJ que entregou a minha demo para uma editora (aquela coisa clássica!) e a editora ligou-me a dizer que tinham gostado muito e fomos gravar. Acabei com um contrato discográfico, depois corri para Almada ter com os meus amigos e disse: "Bora editar." Mas não deu certo. Ainda assim, como estava tão envolvido com aquela possibilidade e como sou curioso, quis virar essa carta, e descobrir o que tipo de disco seria comigo a dizer poemas. Depois comecei a envolver-me com o pessoal da eletrónica, do jazz, e pronto, comecei a ser o poeta que falava atrás das canções dos outros.
Quais eram os seus planos – o que é que o fez vir para Portugal?
A vida. Estudar… Naquela altura Angola estava muito instável. As perspetivas de um jovem encontrar espaço para sonhar, criar e ser estavam limitadas. O país estava em guerra. Nem foi escolha minha, os meus pais decidiram, não tinha voz na matéria. Eu não tinha era intenção de ficar, estudar aqui não era muito atraente para mim, não me agradava a ideia de ser minoria, de ser estatística, queria ser útil e imaginava o meu país como o sítio para o ser.
Eu sempre vivi num país em guerra, mas estranhamente havia uma liberdade infantil que eu preservo com muito carinho hoje, e é para mim a minha grande fonte de inspiração. É uma coragem, uma certeza de que realmente tudo nos é possível, não me sentia limitado ou condicionado. Nos anos 80 vim a Portugal e senti que era tão ágil e tão sagaz como todas as crianças com que me cruzei, até senti que tinha uma destreza, uma malandragem muito própria de quem cresce de uma forma selvagem como os miúdos em Angola. Éramos espontâneos, a espontaneidade era aguçada e crescer em África tem isso. Existem regras, mas parecia que o tempo tinha outro ritmo, outra cadência: quando estávamos no nosso mundo não havia limites.
Fala várias vezes do seu avô materno e já referiu que uma das coisas que dele herdou foi um diário. A capacidade de pôr as emoções em palavras foi algo que herdou dele?
Não, não dele - quer dizer, acabamos sempre por colher de toda a gente. A minha maior influência, no que toca ao criar e expressar, foi o meu irmão. É dois anos mais velho que eu e é pintor, e eu não me lembro do mundo sem ele. Não conheço a vida sem a presença daquela pessoa. Nunca tivemos grandes brinquedos, mas o que nunca faltou em casa foi lápis e papel. Eu desenhava também, mas nada que se compare. Se compararmos os nossos estilos, era como Picasso e Velázquez (se visses entenderias essa diferença!). Eu aprendi a ler antes de ir para a escola porque o meu irmão estava cansado de me traduzir os filmes e eu vi-me obrigado a aprender. Não queria perder os filmes, nem as legendas. A minha relação com a escrita vem daí, ao ver o meu irmão desenhar e criar as suas próprias histórias e querer fazer igual. Ajudou-me ter uma biblioteca ao meu dispor, tanto a do meu pai como a do meu avô. Podiam não ser os livros que lia na altura, mas depois que vim a pegar, a ler, e até a roubar de lá.
Quais são as suas referências na literatura poética e nos romances?
Eu não consumo assim tantos poetas, mas gosto de Manoel de Barros, Paulo Leminski, e.e cummings, Jack Kerouac, Matsuo Basho, de referências (na poesia) são esses. De romancistas, o dominicano Junot Díaz, Chimamanda Adichie, Teju Cole, Zadie Smith, muito da literatura africana contemporânea, e depois José Eduardo Agualusa, claro. Consulto crónicas de uma forma quase obsessiva.
Sim, tem uma relação próxima com a crónica. Qual é o encanto de se ser cronista?
Primeiro porque nos obriga a pensar o agora, a colocar-nos no presente, e acho que é uma das maiores lições quando se quer aprender a escrever, a ser escritor, a crónica é um bom exercício e um bom ponto de partida. Os cronistas brasileiros são para mim uma grande inspiração: Machado de Assis, Nelson Rodrigues, Carlos Drummond de Andrade, Ruy Castro são cronistas por excelência, ou como Miguel Esteves Cardoso, António Lobo Antunes, Ricardo Araújo Pereira. A literatura é como tudo na vida, é estilo. Tudo na vida é estilo. Eu respeito muito o estilo de um autor, as ideias todos podemos colocá-las no papel, mas ter um estilo… é tudo. Essa assinatura é algo que eu acho lindíssimo na literatura, é o que define um escritor.
Em 2003 fez dois discos de spoken word. Depois fundou a Enchufada com o artista Branko e seguiram-se várias colaborações e projetos originais. Qual foi o seu projeto musical preferido, até hoje?
A Enchufada nasceu como um laboratório de ideias. O primeiro disco da Enchufada não teve o apoio de nenhuma editora, publicámos nós e editamos nós, mais tarde é que depois teve uma distribuição pela Sony, depois pela Universal. Quando eu tive realmente orgulho no que estávamos a fazer foi quando inventámos, com os Buraka Som Sistema, o zuck bass, fizemos duas compilações (We Call It zouk bass Vol. 1. eWe Call It zouk bass Vol 2.) mais do que uma editora, mais do que a casa dos Buraka, estávamos a construir um movimento, há uma estética, um estilo, uma ideia por detrás que conseguirá sobreviver mesmo se os Buraka saírem de cena.
O que é que a cultura urbana de Lisboa tem que as outras cidades não têm?
Para já, a relação com África. Não há muitos lugares parecidos com esta cidade. Já estive em Barcelona, uma cidade bonita e muito cosmopolita, mas quando estava à procura dessa música, dessa forma de estar, tudo o que encontrava era a cena latino-americana, como salsa, merengue,regaton… maravilhoso. Mas não é o mesmo feeling e não é fácil. Quando eu estou na noite africana, tudo isso está presente. Em noites latinas não há essa abrangência, não se olha para o terceiro mundo com a mesma vontade ou generosidade. Em Lisboa, se vamos a uma noite africana ouvimos o regaton, samba, kuduro, kizomba, sempre tudo na mesma noite.
Tal como outras cidades, Lisboa está na rotade Também os Brancos Sabem Dançar, a sua terceira publicação literária também é um relato autobiográfico. Qual foi o ponto de partida para começar a escrever?
Eu divido o livro em três partes. Eu respeito uma tradição ao criar histórias que entretêm as pessoas, não escrevi para revelar uma verdade que estava dentro de mim, eu achei que aquela história seria útil para a verdadeira história que queria contar. A ideia inicial era escrever a biografia do kuduro, depois decidi fazê-lo conforme o meu ponto de vista e aí entra a minha relação com o género, com as pessoas. Senti que precisava de me colocar no centro da história, ser eu o narrador, logo podia começar essa história a partir de outros episódios.
Onde é que o escreveu e como é que construiu a narrativa?
Demorou uns dois anos a escrever. Gosto de escrever em casa, tenho o espaço, o cuidado, a atenção. Eu primeiro faço um outline, descrevo as cenas todas, coloco tudo esquematizado e depois vou preenchendo os episódios e descrevendo a ação – e isso posso fazer na estrada. Mas imaginar o livro todo leva tempo, definir o que vai acontecer.
Este é um livro com várias interpretações? Gostava que as pessoas o percecionassem de formas diferentes?
O livro está cheio de nuances, pode ser entendido como uma história musical, uma homenagem ao que acontece no corredor Luanda-Lisboa, mas também pode ser uma história sobre a descoberta da idade adulta e da maturidade, pode ser um livro de viagens, pode ser um ensaio sobre a emigração e identidade, tudo isso está no livro. Dependendo das questões das pessoas de hoje, irão descobrir o que o livro lhes quer dizer. Uma coisa que faço muito é ler o mesmo livro de cinco em cinco ou de dez em dez anos, e ser surpreendido com as verdades que cada página esconde. Convém e é importante voltar aos lugares que nos são familiares, é como voltar àquela casa de infância e descobrir que afinal de contas não era assim tão grande, quando crescemos a nossa perspetiva muda.
Estou muito curioso para descobrir como vai envelhecer. Uma das coisas que me têm apontado é que o relato desta Lisboa, da sua vivência e cultura (que é comum a todos os povos dos PALOP) e a relação com a questão da raça, do racismo. Há pessoas que queriam ver mais coisas, que queriam que aprofundasse mais o tema, e até que este livro fosse um instrumento de militância. Algumas leem o livro e nem veem essas questões lá. Para mim está lá, o assunto está a gritar mais alto do que se eu tivesse escancarado tudo na cara das pessoas. Aquela pessoa não vai provavelmente descobrir aquele assunto até ele fazer parte da vida dela. Se falamos da invisibilidade dos negros, por exemplo, como uma das grandes injustiças do hoje, então quando olhamos para a mulher negra essa injustiça transforma-se numa atrocidade.
Quem é que gostava de conhecer pessoalmente?
James Baldwin, escritor americano, que eu admiro tanto nas crónicas como nos ensaios, na forma como se apresentava em público, nas suas lutas, nas suas batalhas. Provavelmente não iríamos falar daquilo que eu absorvo dele, mas sim de tudo aquilo que está para além do que eu entendo e colho da obra. Essa é a minha relação com as pessoas que eu admiro: não falar de trabalho, falar de outras coisas.
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Com quem gostaria de conversar em palco?
Com quem eu gostaria de ter uma conversa em público em cima do palco? Gostava de formar um trio com Agostinho Neto, David Zé, Jonas Savimbi. Ter uma conversa para um público com estas figuras seria um grande desafio.
E a quem faria um disco de homenagem?
Eu tentei, mas não saiu, talvez um dia volte até lá. Zé da Guiné. Merece um disco, certamente.
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Consegue citar um poema ou um verso com que se identifique?
Paulo Leminski disse: "Isto de querer ser exatamente o que a gente é ainda vai nos levar além."
Kalaf Epalanga nasceu em Benguela, Angola, em 1978, e Também os Brancos Sabem Dançar é o seu primeiro romance. Em 2008, escreveu Estórias de Amor para Meninos de Cor e em 2014 lançou O Angolano Que Comprou Lisboa (Por Metade do Preço) ? as suas duas primeiras publicações, ambas de crónicas (foi, aliás, cronista do jornal Público, do site de informação Rede Angola e da revista GQ Portugal).Na contracapa do livro, podemos ler "o músico e escritor Kalaf Epalanga, membro da banda Buraka Som Sistema, dirige-se de autocarro da cidade sueca de Gotemburgo para Oslo, a capital da Noruega, onde vai actuar nessa noite no festival OYA. Como não tem um passaporte válido para mostrar é detido por tentativa de imigração ilegal e conduzido à esquadra da polícia para interrogatório. Aflito perante a iminência de perder o concerto, interroga-se: como vou explicar a estes polícias noruegueses que, apesar do meu aspecto pouco comum por estas paragens não sou mais que um pacífico músico angolano em digressão? Conseguirei explicar-lhes quem são os Buraka Som Sistema? Falo-lhes da cena musical de Lisboa? De como nasceu o Kuduro num musseque de Luanda? Eles irão perceber?".
Também os Brancos Sabem Dançar, de Kalaf Epalanga, está à venda por €21,90 (Caminho) nas livrarias portuguesas.
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Kalaf Epalanga
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Também os Brancos Sabem Dançar, de Kalaf Epalanga,€21,90, (Caminho).