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Eduardo Sá: "Devíamos reabilitar as cartas de amor como património da Humanidade"
Quarenta minutos a falar sobre o amor com o psicólogo Eduardo Sá e o resultado são frases que toda a gente devia guardar para sempre. Recordamos a entrevista ao psicólogo à Máxima, em 2017.
Eduardo Sá
Foto: D.R.13 de fevereiro de 2024 às 07:00Rita Silva Avelar
A nostalgia do entardecer de uma sexta-feira em Lisboa e um título como Quem nunca morreu de amor, o novo livro de Eduardo Sá, prometem duas coisas: um ótimo timing e a deixa certa para entrar no consultório do psicólogo Eduardo Sá e falar sobre o amor. Psicólogo clínico, psicanalista e professor na Universidade de Coimbra e do ISPA, Eduardo Sá é também autor de artigos e livros científicos (especialmente no âmbito da saúde familiar e da educação parental). Em Quem nunca morreu de amor avisa, logo de início: "Cuidado com o que se procura num livro de amor. Porque arriscamo-nos a encontrar, no espelho das páginas, a nossa própria história, as relações que tivemos, os homens ou as mulheres que amámos (e que ainda hoje nos visitam, quando à noite se aninham nos lençóis da memória)." Nós arriscámos (falar com ele).
Qual é o impacto da ausência do amor na infância na vida amorosa do futuro?
A forma como somos amados é a matriz para nos relacionarmos com o amor e não duvido de que, quando os pais se envolvem e se amam, dão o melhor de si, naquele momento - sendo que muitas vezes nem sempre o melhor deles corresponde aquilo que um filho necessita quando se trata de pôr legendas no coração, fazer essa tradução simultânea e depois operacionalizar isso em gestos amorosos. Às vezes não é muito claro para os filhos, à medida que crescem, perceber de que forma é que os pais se amam ou recordar qual foi a última vez que eles trocaram um abraço só porque sim. A maneira como sentimos os nossos pais a amarem-se e a relacionarem-se com o amor é profundamente matricial para nós, porque nos dá coordenadas e nos eleva a fasquia e as expectativas – e porque é a escola das escolas em relação ao amor. Sim, a maneira como somos amados pelos nossos pais condiciona aquilo que esperamos e que entendemos ter obrigação de exigir, ou às vezes a maneira como nos resignamos diante do amor ou das formas mais frágeis de sermos amados.
Namorar hoje e namorar há 50 anos são realidades completamente diferentes. Em que é que o ‘amor digital’ que vivemos hoje difere do amor de antigamente? E o que é que se perdeu pelo meio?
Parece-me que nós temos os mesmos vícios de avaliação que as gerações que estavam atrás de nós. Quando olhavam para a anterior também achavam que era jurássica. Hoje temos um conjunto de adereços que nos ajudam a comunicar, mas que nem por isso nos ajudam muitas vezes a ser mais comunicativos. Vivemos num mundo estranho, quase paradoxal, porque o vivemos como se fosse a sociedade da comunicação, mas às vezes parece ajudar-nos a estarmos cada vez mais virados para nós próprios e alimenta quase um estado de algum autismo, digamos. Este autismo não é um bom parceiro quando se trata de entrar numa relação amorosa. No entanto, não acho que a era digital tenha trazido tantas transformações no amor, antes pelo contrário.
Tomaria eu que ficássemos à espera de uma carta. Uma carta, há 50 anos, traduzia de uma forma muito mais clara e cristalina o estado de uma relação e aquilo que a outra pessoa representava para nós do que se calhar 10 mil sms com meia dúzia de carateres. Devíamos reabilitar as cartas de amor como património da Humanidade e não me choca que de uma forma divertida e provocatória se possa admitir que qualquer relação em que as pessoas não troquem cartas de amor ainda falta muito para ser uma relação amorosa. O amor é aquilo que temos de mais intemporal, continuamos a amar da mesma forma, a precisar de ler os olhos das pessoas, de ler o coração delas, de conversar às vezes de uma forma encriptada (esquisita, mesmo) à espera que a outra pessoa nos dê sinais de que nos conhece por dentro, que nos torna mais simples e vai desatando os nós do nosso coração.
Como é que se distingue a paixão do amor? E quais são os sintomas de um e de outro?
Quando as pessoas falam de paixão parece-me que falam de dois desejos que se conjugam no mesmo comprimento de ondas, mas a paixão não se esgota aí. A paixão é uma versão mais pequena da versão completa que é o amor (…) e as pessoas confundem muitas vezes a paixão e o desejo, achando que a paixão é uma espécie de fósforo que de repente se incendeia e se apaga como se não precisássemos de trabalhar para ela. Precisamos de tudo, de dar sinais de ser capazes de ler a pessoa com quem estamos, de ser amáveis, de ser amorosos, de ser atenciosos com os gestos de amor, porque se fizermos esse movimento todo a paixão existe, mas já não é um fósforo, ganha uma outra dimensão. Eu não distingo tanto em relação à natureza, mas sim ao modo como se expressa diferida no tempo. O amor não é um estado interminável sobretudo se imaginarmos que depois de declarado não precisamos de trabalhar para ele ainda com mais afinco do que quando estávamos a tentar conquistar aquela pessoa, e só aquela, pela primeira vez.
Como é que se sabe se é amor?
Quando somos capazes de olhar para a outra pessoa sem deixarmos de olhar para nós e, de uma forma quase desconcertante, sermos capazes de ser eu e tu ao mesmo tempo.
No livro diz que "o amor é uma coincidência feliz". Acredita em coincidências?
Não. Mas acredito nesse título. Todos os dias vamos desmazelando os gestos amorosos. Assumimos o vínculo de que aquela pessoa gosta de nós e vamos construindo uma história que acaba por ter imensos capítulos que têm tudo a ver connosco, damos aquela relação como garantida e depois temos um sem-número de compromissos. E às vezes sentimo-nos autorizados a facilitar as relações onde nos sentimos mais seguros sem nos darmos conta que ao facilitar vamos criar um comboio de pequenos mal-entendidos. Ainda assim, namoramos pouco e criámos a ideia de que depois do casamento o amor acaba, deixa de existir namoro, o que a mim me angustia profundamente. É pelo ato de namorar que nos casamos, não vale a pena confundir um ato civil como o casamento com o compromisso de nos namorarmos permanentemente. Quando nós fazemos este movimento todos os dias, de repente parece que o amor é uma coincidência feliz. É nessas alturas que parece que o universo tem um alinhamento tão adequado que parece ter sido feito para nós e é nessas alturas que nos surpreendemos com as coisas mais deliciosas. Estamos longe da pessoa que é importante para nós e de repente estamos a pensar que nos apetecia ir jantar a um restaurante qualquer e quase por magia essa pessoa envia-nos uma mensagem a convidar-nos para jantar àquele restaurante; ou quando parece que estamos a comunicar de forma telepática: estamos a pensar numa coisa e a pessoa apanha-a no ar.
Como é que essas situações se traduzem numa não-coincidência?
É que essas coincidências felizes, que o parecem só, resultam de um conhecimento íntimo, profundamente trabalhado todos os dias, não são uma obra do acaso. É importante que possamos assumir que a pessoa certa não existe, descobre-se por ensaio e erro, também à boleia dos enganos, descobre-se com dor, e são esses acontecimentos todos que depois de vividos (e trabalhados dentro de nós) criam as condições para as coincidências. Sem passarmos por aí, não há coincidências felizes.
Qual é o impacto dos sonhos na nossa vida amorosa? E vice-versa?
Fomos educados para a ideia de que o sonho é uma espécie de quarto escuro na nossa vida, e é difícil que haja quarto mais luminoso que os sonhos. Estamos sempre a produzir sonhos e fomos perigosamente educados para a ideia de que eles representam mais obstáculos do que avenidas que se abrem. Mas o grande desafio da vida não é sonharmos a dormir nem é sonharmos sozinhos, é sermos capazes de sonhar acordados um mesmo sonho com alguém na nossa vida. A capacidade de construirmos os sonhos com alguém e de os realizarmos como se fosse um argumento da história do cinema é aquilo que de mais exaltante pode acontecer na natureza humana. Se formos por ai, os sonhos abrem os caminhos em relação ao futuro e criam um sentido no amor. O amor não tem graça se se esgotar no hoje, é tão mágico que acaba por se tornar desejosamente intemporal.
Há cada vez mais pessoas que ficam no limbo entre o fim de uma relação e o início de outra? Como é que, com a psicologia, se pode explicar esta pausa prolongada que muitas vezes se resume à frase "não estou preparada/o"?
Em rigor nunca estamos preparados para uma relação, por uma razão simples: porque uma relação que venhamos a ter agora quase nunca replica nada da anterior. É em tantos aspetos tão inovadora e criadora que, de repente, quando imaginávamos ter uma experiência feita e uma sabedoria em relação a tudo o que fosse amoroso, uma nova relação encarrega-se de nos devolver a nossa humildade mais essencial e de nos demonstrar que tudo aquilo que imaginávamos saber afinal não chega para que possamos viver uma nova relação com a mesma segurança. Não estar preparado para uma nova relação é uma forma um bocadinho batoteira de dizer que se tem medo de se entregar a uma nova relação com tudo o que ela tem de imprevisto, de novo, de experiências que no revolvem e de desafios que nos reinventam. É uma forma de falar do medo sem o abordar.
No fundo, o que é que as pessoas querem dizer com isso?
Que estão disponíveis para amar, se não se enganarem, se não errarem, e sobretudo se não doer. Há muitas pessoas que não se envolvem numa relação porque não gostam de sofrer (mas quem é que quer sofrer?) como se no fundo uma nova relação fosse acima de tudo sinónimo de sofrimento e não tanto de um portão imenso que se pode abrir no sentido de nos poder devolver o melhor de nós. Não estar preparado é só mesmo uma forma de dizer "tenho medo" de uma maneira esquisita porque é mais simples assumir o medo (…) é como se estivessem à espera de reunir os requisitos indispensáveis para que finalmente possam viver um amor, e os requisitos indispensáveis só se reúnem quando o vivemos, não quando nos preparamos previamente para ele. É quase como querer preparar o dia seguinte de véspera – não faz sentido.
Depois de uma rutura é possível pensar numa amizade, ou não existe ponto de retorno a partir do momento em que já existiu uma intimidade maior com a outra pessoa?
É muito difícil, quando se ama profundamente, que essa pessoa passe a ser só amiga. Não quer dizer que tenhamos com ela uma relação hostil, mas a verdade é que não temos certamente a relação que temos com um amigo. Às vezes essa pessoa fica numa espécie de ‘terra de ninguém’, temos tanta dificuldade em categorizá-la: não é amigo, não é seguramente um melhor amigo, já foi um grande amor. Não acho que seja possível fazermos essa transição assim, por isso tudo. Uma relação amorosa significa despojarmo-nos, fecharmos os olhos e sentirmos que a outra pessoa olha por nós, e quando chegamos à conclusão de que um amor de certa forma morreu é como se essa pessoa nos tivesse deixado cair (contra a sua vontade, até) e como se de repente nos tivesse magoado no mais íntimo de nós e dececionado, ao ponto de não ser possível voltar atrás ao patamar em que podíamos ser só amigos e nada mais. Se tivermos a gratidão de reconhecer que essa pessoa nos ajudou em tantos aspetos do nosso crescimento não vamos seguramente ter com ela uma relação de hostilidade ou até de ódio.
Um estudo recente relaciona a ‘síndrome de coração partido’, que tem o nome científico de doença de Takotsubo, com a dor real de quem está a viver o luto de alguém que ama. Qual é o primeiro passo para a cura do amor?
Amar. Não há outro. A síndrome de coração partido é dos exemplos mais deliciosos de como o nosso corpo tagarela 24 horas por dia com a nossa cabeça, por mais que continuemos a vê-los como elementos à parte. Há pessoas que morrem de dor e tristeza em função de um amor que morreu, e morrem mesmo. Há pessoas que construíram relações tão mágicas e inimitáveis que quando o seu parceiro efetivamente morre, elas sentem que não têm motivo nenhum para viver e morrem quase de seguida. Portanto, a dor pode matar sim, e a dor amorosa também. Era muito importante que tivéssemos a noção de que o amor deve ser manuseado com cuidado não porque seja explosivo mas porque quando vivido com seriedade dá vida e quando vivido de uma forma atabalhoada mata.
O livro Quem nunca morreu de amor, de Eduardo Sá, já está à venda nas livrarias portuguesas por um preço de €16 (Leya). O autor é atualmente diretor da Clínica Bebés & Crescidos e do Babylab – Laboratório de Psicologia do Bebé da Universidade de Coimbra. Entre os seus outros livros, estão as obras Queremos Melhores Pais, Hoje Não Vou à Escola, Um Estranho no Coração (o seu primeiro romance)e Querida Mãe.
Há quem ache essencial receber palavras de apreço que se traduzem em elogios ou em receber frequentemente mensagens com juras de amor e ainda há quem, acima de todas estas coisas, prefira receber presentes, de forma regular, seja um ramo de flores, um postal ou uma carteira.
O mundo parece apaixonado pela aplicação de encontros que está a revolucionar o namoro. Fazer a corte hoje pode ser tão simples como escolher pessoas num ecrã de telemóvel, marcar um encontro e ver o que acontece. Esta nova era estará a matar o romance ou será esta apenas uma versão mais moderna das suas múltiplas faces?
No seu novo romance, 'Nada no Amor é por acaso', editado pela Lua de Papel, o consagrado psicólogo narra duas histórias de amor que nos convidam a rever as nossas próprias vivências, num diálogo de reflexão constante.
Há amor e uma premonição de racismo nas ruas de Lisboa filmadas por Leonor. “Baan” é o primeiro filme de ficção da realizadora portuguesa, belo e estranho, existe como um poema cinematográfico de várias leituras. Entrevista.