Histórias de Amor Moderno: “Acho que nunca antes me tinham feito sorrir com o corpo todo. Mas ele fez”

“Se ele me vai buscar e depois levar a casa, é possível que o caminho sofra um desvio.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: White Lotus
06 de janeiro de 2024 às 20:55 Maria Olívia Sebastião

Uma das frases que mais gosto de ouvir é "fizemos upgrade à sua reserva". Eu sei que soa a superficialidade, a coisa frívola, mas levo a peito quando alguém tem a amabilidade de mostrar consideração por mim atribuindo-me bens e serviços de uma categoria superior àquela que eu reservei e pela qual me dispus a pagar. Num mundo de transações e investimentos, de lucros e dividendos, sabe bem perceber que, de vez em quando, alguém, algures, tem a gentileza de ir além dos números de faturação para satisfazer o bem-estar de outra pessoa.

O Artur diz-me que não é nada disso, que tudo se resume a marketing, que só nos fazem upgrades porque somos bons clientes, que, pagando o que pagamos as vezes que pagamos, é quase uma manobra de bom-senso que nos façam upgrade - e que até devia ser mais frequente!, diz ele. Mas o Artur é um chato. Amo-o, desejo-o, derreto-me por ele, encanto-me, deleito-me, tudo isso e ainda mais, mas é um chato, um pragmático. Um cínico. O mais adorável dos cínicos.

PUB

Da última vez que aconteceu chegarmos ao balcão de uma receção e sermos recebidos pela boa-nova da subida de nível foi pouco antes do Natal, num hotel muito moderno e sumptuoso nos arredores de Évora. "Dona Clara?" e eu logo "sim, sim", e pus o meu melhor sorriso. "Bem-vinda de volta, aliás, bem-vindos. Fizemos upgrade à vossa reserva", disse o funcionário - não sei se lhes devemos chamar funcionários ou empregados ou colaboradores, mas era uma pessoa, um indivíduo que trabalha lá no hotel (média estatura, a puxar para o baixote, não sendo magro sem, ao mesmo tempo, ser gordo, com os primeiros sinais de calvície, um homem certamente prestes a entrar nos seus quarentas - muito simpático, de resto, um amor). Fiquei tão contente. O Artur fez um sorriso amarelo e quase revirou os olhos. Quando entrámos na suíte - não seria a maior das suítes, mas tinha vista sobre a planície e um terraço muito generoso, com mesa e cadeira, uma chaise longue junta a uma das paredes, acesso direto à piscina exterior: que mais se pode pedir? -, disse-me "Clara, Clarinha… não podes mostrar tanto entusiasmo com estas coisas. Nós somos clientes habituais, por amor de Deus!"

E é verdade. É, mais do que a verdade, a nossa essência. Porque a minha história com o Artur é feita destas coisas, destes caprichos. Conhecemo-nos, há uns anos, numa viagem de trabalho. Eu não trabalho com ele, cada um seguia a sua viagem. Foi tudo uma grande coincidência. A empresa para quem trabalho era parte interessada num projeto público que era supervisionado pela empresa do Artur. Quando digo "do Artur", não é figurativo: a empresa é mesmo dele. Pode-se dizer que é uma pessoa bem instalada na vida. Adiante. Houve um encontro entre partes que implicou uma viagem e a estadia num hotel de luxo em Trás-os-Montes. Por ordem do divino ou do acaso caótico, dei por mim na mesma sala que o Artur. Achei-o bonito. Mais velho que eu um bom pedaço, ainda assim airoso, fresco, vivaço. Não dei, na altura, atenção a nenhuma destas minhas apreciações - guardei para dentro como se fossem pensamentos não pensados, daquelas ideias que nos vêm à cabeça, mas que não consideramos, deixamos seguir, como se disséssemos sim sim sim, está bem.

Nessa noite - ou, em bom rigor, na noite após esse primeiro encontro numa sala de conferências -, jantámos juntos: eu, o Artur e mais cerca de uma dezena de representantes das empresas envolvidas no projeto, além de um alto-representante do Estado Português e mais uma dúzia de assessores seus, que estas pessoas que representam muito alto o Estado precisam de companhia como as noivas da nobreza do século XVIII precisavam de damas de honor.  Por acaso ou por sorte, calhou ficar ao lado do Artur. E calhou melhor ainda falamos entre os dois acerca de coisas que nada tinham a ver com o que nos levava ali. Falámos de férias e de animais domésticos, de literatura e de temperos, das músicas da adolescência, das marcas favoritas de street wear e do perfume que eu usava (era o Blanche, de Byredo, que ainda hoje uso). Senti-me cintilar de cada vez que o olhava e ele me olhava de volta, quase de lado - conversar discretamente e lado a lado numa mesa com vinte pessoas, não é tarefa fácil.

PUB

No dia seguinte, pela manhã, bem cedo, decidi descer até ao spa do hotel, um spa muito bem conseguido, com jacuzzis dentro e fora de portas (era inverno, fazia frio, mas aquela água a mais de 30 graus a borbulhar debaixo de mim foi um verdadeiro elixir de jovialidade), banho turco, piscina quente, piscina fria, banho de gelo, enfim, tinha tudo o que uma pessoa pode desejar. No meio da névoa do banho truco - uma névoa densa e espessa e pesada - percebi que havia alguém na sala, uma sala anormalmente longa e espaçosa para um espaço deste tipo. Percebi pouco depois que era o Artur. Começámos a conversar naturalmente e acerca de coisas normais. Fizemos o circuito juntos. Convidou-me para o pequeno-almoço no quarto. Aceitei.

Eu não era comprometida. O Artur tinha uma situação por resolver. De qualquer forma, quando chegámos ao quarto não me atirei imediatamente nos seus braços: primeiro, fiquei espantada por se tratar de uns aposentos substancialmente melhores do que os meus. Confrontei-o, "porque é que você tem um quarto destes e eu só tenho um quarto superior?" Respondeu-me com doçura, mas ao mesmo tempo de maneira pronta e seca, "Clara, Clarinha… estamos num quarto de hotel. Não me trates por você." Acho que nunca antes me tinham feito sorrir com o corpo todo. Mas ele fez.

Eu e o Artur não vivemos juntos. Temos esta nossa situação - ele detesta que lhe chame "relação", pelo que evito chamar-lhe assim - já vai para três anos. E, nesses três anos, poucas foram as vezes que passámos a noite juntos na casa de um ou na casa de outro. Durante a semana, enquanto conservamos as rotinas de trabalho e a disciplina dos horários, somos uma espécie de namorados à distância. Às vezes, almoçamos juntos; nos dias mais folgados, vamos jantar e à saída dos restaurantes abraçamo-nos e beijamo-nos. Quando vamos em carros separados, acaba aí a nossa noite; se ele me vai buscar e depois levar a casa, é possível que o caminho sofra um desvio - não seria a primeira vez que ficávamos a namorar um bom bocado num lugar sossegado. 

PUB

Os nossos retiros amorosos acontecem religiosamente aos fins de semana e, desde que nos conhecemos, que cumprimos o ritual: saímos à sexta-feira, voltamos segunda de manhã. Pelo meio, vamos experimentando hotéis: um de cada vez, um fim de semana aqui, outro a norte, outro ao sul, no interior, no litoral, às vezes no estrangeiro. Nunca conheci a família dele e ele nunca conheceu a minha. Se eu sou feliz assim? É possível. Num hotel de cinco estrelas, com spa, só deixamos a infelicidade vir ao de cima se não a soubermos afogar. Especialmente, se nos fizerem upgrade.

* Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

* Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

leia também
PUB
PUB