Em casa de Leïla Slimani. Como a escritora franco-marroquina vê o mundo a partir de Lisboa

Desde que ganhou o Prémio Goncourt com 'Canção Doce', bestseller mundial, que a sua literatura não tem parado de crescer. Há três anos começou a contar a história da sua família numa trilogia entre Marrocos e França. 'O País do Outros' passa o colonialismo a pente fino, dramas familiares, a raça ou a mestiçagem, o direito ao aborto e o desejo homossexual reprimido, entram numa equação que leva o leitor a viajar até esses tempos. 'Vejam Como Dançamos', o 2º volume, acaba de ser lançado e é um dos mais belos livros de 2022. Conversa pessoal na casa da escritora em Lisboa, onde passa parte do ano.

LEILA_filme_com_mosca.mp4
07 de dezembro de 2022 às 13:17 Tiago Manaia

Leïla abre a porta de casa agitada. Prepara-se para a conferência que dará dentro de algumas horas na Câmara Municipal de Lisboa à volta da obra de José Saramago*. Um longo vestido preto com pequenas bolas brancas desenha-lhe a silhueta magra. "Estava a maquilhar-me, ainda não acabei", diz. Ao longe ouvem-se vozes de crianças a brincar, os filhos estão de férias da escola. Há barulho na cozinha, amigos vieram visitá-la de Paris, alguém pendura quadros num corredor. A casa está viva.

As obras de Arte, na sala, estão rodeadas de livros de fotografias. Num canto, uma prateleira suporta dezenas de romances seus, a sua obra está traduzida em mais de 45 línguas, Adele é o título inglês de No Jardim do Ogre (2014). O primeiro romance surpreende de imediato, não se esperava que uma escritora marroquina elegesse a adição sexual feminina para o tema central de uma história. O tom estava lançado. Leïla avança na literatura assumindo o sonho de ser escritora, que tem desde a juventude, num percurso que finta as projeções de quem a tenta fechar em estereótipos. Quando, na faculdade, estudava Ciência Política, já a viver em Paris, um amigo ofereceu-lhe uma capa falsa de um livro em que lhe era atribuído o Prémio Goncourt, como uma premonição. Essa capa imaginária está pendurada no seu escritório, não longe do Goncourt que na vida real lhe seria atribuído, em 2016, por Canção Doce – um thriller familiar onde as personagens ganham de tal forma vida que a leitura se torna urgente, como se de um vício se tratasse.

PUB
Foto: Julien Da Costa

Conheci Leïla Slimani há um ano e meio numa entrevista para a Máxima quando fazia a promoção de O País dos Outros. O contexto era formal, a entrevista aconteceu numa sala da editora Penguin em Lisboa, Leïla falava com a imprensa em encontros individuais. Costumo brincar e dizer-lhe que estava extremamente concentrada, parecia um monge. Ainda assim, ao longo da nossa conversa, abandonámos rapidamente o "você" no trato. No final da entrevista trocámos números de telefone, ficámos amigos, nunca mais parámos de falar.

Na sua casa, sentamo-nos agora no escritório onde escreve todos os dias. Da janela vêem-se árvores, as traseiras de uma igreja e campas de um cemitério. O rio Tejo aparece ao fundo. Uma das paredes tem inúmeras fotografias coladas à mão. Há imagens de Marilyn, misturadas com retratos dos seus filhos, Tolstoi está sentado ao lado do dramaturgo Tchekhov, uma página de revista com Nicole Kidman está perto de uma fotografia da sua mãe jovem. Naquele bocado de parede está o seu mundo.

PUB

Hoje quero evocar o segundo volume da trilogia, Vejam Como Dançamos. Aïcha, a menina do primeiro livro, cresceu. Conhece um rapaz que a perturba amorosamente, e a quem todos chamam Karl Marx – estas cenas inspiram-se na vida dos pais de Leïla. Marrocos vibra também com a chegada dos anos 60, os hippies americanos querem viver em Essaouira, os aldeãos admiram-se. Há dezenas de micronarrativas que nos contam a sociedade, entre o hedonismo e a repressão, ao longo de várias décadas. A desigualdade de género surge como uma evidência.

Foto: Julien Da Costa 1 de 2
PUB
Foto: Julien Da Costa 2 de 2

Fora da ficção, Leïla não baixa os braços e continua a lutar pela legalização do aborto no seu país de origem. Com a sua associação, Moroccan Outlaws, bate-se também pelos direitos das pessoas LGBTQI+, sendo uma voz ativa na tentativa da descriminalização da homossexualidade em Marrocos.  

PUB

O meu iPhone está pronto a gravar a nossa conversa, Leïla pergunta se o meti em "modo avião" para não sermos incomodados. Digo-lhe que me fez a mesma pergunta quando a entrevistei a primeira vez, ri-se e acrescenta, "vês, há coisas que não mudam."

A tua trilogia O País dos Outros começou a ser publicada durante a pandemia, em 2020, tu não pudeste voltar a Marrocos por causa das restrições da covid-19. Demoraste a apresentar o livro lá, o que aconteceu no teu regresso?

Era para ter ido logo na semana em que houve o confinamento, estava impaciente. Foi uma enorme deceção quando tudo foi anulado, este livro foi perseguido por muitas deceções. Mas as pessoas compraram-no, e as vendas foram ainda mais incríveis quando saiu em bolso. Nessa altura fui a Marrocos e senti uma mudança de comportamento. Como não tenho redes sociais não podia perceber. Os meus amigos diziam-me, "as pessoas olham para ti de outra forma desde que o escreveste". Era como se eu tivesse provado que aceitava o meu lado marroquino, não sei. Parecia ter feito um trabalho no qual as pessoas se reconheciam, sobretudo a minha geração que não sabia grande coisa sobre a colonização, que não fez muitas perguntas aos avós ou talvez tenham tido sempre as mesmas respostas. De repente, instalou-se um respeito à volta do meu trabalho, foi comovente. As pessoas vinham ter comigo de forma muito carinhosa, na rua os jovens queriam ser fotografados ao meu lado. É um livro que fala com eles, num país onde as pessoas não leem muito e onde os livros são muito caros. Mas quis guardar uma espécie de elegância, não fazer demais, não falar muito na imprensa. Quero que o livro pertença aos seus leitores, não quero que seja um tema de debate.

PUB

Ao longo deste ano ouvi-te falar em várias conferências, na Gulbenkian ou no São Luiz. Evocavas vários momentos da tua adolescência em Marrocos, contavas que sempre que te proibiam de fazer algo era quase como se te dessem uma certeza de revolta. Pergunto-me se isso não é também um motor na tua energia enquanto criadora?

Quando era adolescente era mesmo muito rebelde. E não estava formatada para a obediência. Obedecer não me interessava. Queria desobedecer e sentia-me sempre atraída pelo que era proibido e tudo o que era perigoso. Paradoxalmente eu era muito medrosa. Mas com o tempo tenho observado que as pessoas medrosas avançam muitas vezes na direção de coisas muito perigosas. Tinha também esta coisa estranha (e da qual às vezes tenho vergonha), eu tinha a certeza que estava protegida. Tinha a certeza que nunca me iria acontecer nada de mal, como diz a Blanche na peça Um Elétrico chamado Desejo (1947): "Podemos sempre ter confiança na bondade dos desconhecidos". Eu confiava nos acontecimentos. Não obedecia, não queria ser conformista. Depois isso muda com a idade, vejo isso agora aos 40 anos, com filhos. Ficas mais conformista. Isso é um risco para o artista, o coração não se pode aburguesar, é preciso guardar juventude na alma.

Foto: Julien Da Costa

Na televisão francesa, no programa La Grande Librarie, dizias querer assumir os teus medos. Não queres negar a incerteza e a fragilidade que sentes?

Sim. E isso é algo que é preciso transmitir aos jovens. Vivemos uma época em que são infligidos muitos medos à juventude, não podemos dizer aos jovens para não ter medo. É óbvio que temos de ter medo – é um medo existencial. Será que vamos sobreviver? O que vai acontecer ao planeta? Temos medo dos populismos que fazem recuar leis que nos davam liberdades. A questão não é se temos razão para ter medo. A questão é mais... Como devemos viver com esse medo?

(o filho Émile interrompe a entrevista, a porta do escritório está aberta, diz que lhe veio só dar um beijo)

PUB

Será que é um medo que nos paralisa? Um medo que nos faz ficar em casa a ver Netflix e a fumar charros? Assim ficamos a viver numa sociedade de sedação, em que o objetivo é o de nos adormecer.

Ou, ao contrário, será que conseguimos ultrapassar esse medo e viver com ele e, apesar de tudo, agir? O medo faz parte da minha vida, tentei sempre que não me paralisasse. É preciso ter estratégias, maneiras de contornar o medo.

Sinto que há esperança no teu ativismo. Quando apresentavas Vejam Como Dançamos em Lisboa, a tua forma de abordar a resistência contra líderes autoritários (como Bolsonaro ou Erdogan) comoveu as pessoas presentes, arrancou-lhes aplausos. Podemos dizer que os portugueses resistiram muitas vezes em silêncio...

PUB

Bem, a revolução ainda está próxima das pessoas, é como se vocês fossem um país com uma democracia relativamente jovem. E numa jovem democracia há vontade de olhar para a frente.

O otimismo é uma forma de dever para quem é ativista, senão estás a dar lugar ao teu adversário. É dizer-lhe: "tens razão, tu é que vais ganhar e eu não acredito no meu combate." Não faz sentido, os pessimistas são pessoas que já abandonaram.

Foto: Julien Da Costa

No livro Vejam Como Dançamos há uma cena que parece saída de um filme de Pedro Almodóvar. O momento em que Mathilde e Selma leem uma carta de Selim, estão ansiosas por ter notícias dele e acabam por fumar um charro juntas. (Leïla começa a rir-se). Há humor e uma partilha entre essas mulheres, como num filme de Almodóvar, certo?

Fico contente, adoro-o. Ele será sempre uma inspiração. No cinema que ele fez, mostrou mulheres que nunca se viam no cinema antes dele o fazer.

Eram mulheres que eu via todos os dias em Marrocos, mulheres que falavam alto e eram fortes e ao mesmo tempo estavam à beira do abismo. Mulheres que eram completamente loucas e ao mesmo tempo extremamente pragmáticas. Todas essas mulheres cheias de contradições, que metiam batom e saltos altos de cores vivas, e que passavam horas no cabeleireiro. Eu vivia nesse mundo com as minhas tias, a minha mãe ou as minhas irmãs. Com a minha mãe passava tardes no salão de beleza, ouvia como as mulheres falavam entre elas. Essas memórias são geniais.

PUB

E o Pedro Almodóvar decidiu entrar em diálogo contigo depois de ter lido o teu ensaio O Perfume das Flores à Noite (2021). Ele escreveu uma crónica em que te fez perguntas, evocou o vosso processo artístico. Tu dizes, n’O Perfume das Flores à Noite, que devemos aceitar o nosso destino seja ele bom ou mau, ele diz que a ideia o perturba. Como te fez sentir essa carta que te escreveu?

(Suspira) Foi completamente irreal. É o género de coisas que te acontecem na vida e tu perguntas: "como posso estar a viver isto?". São momentos em que me ponho a pensar em mim como miúda. Alguma vez eu, em miúda, teria imaginado que uma coisa destas me pudesse acontecer? É a miúda em mim que vive esses momentos. Sobre isso do destino: claro que eu sempre fui uma mulher que defendeu a liberdade de arbítrio e que podemos construir a nossa vida e que somos mestres do nosso destino. Ao mesmo tempo, também é importante saber renunciar e eu mostro isso nas minhas personagens. A incapacidade de renunciar é das coisas que torna as pessoas mais infelizes. É falso pensar que podemos ter e fazer tudo. Há alturas na nossa vida em que temos de escolher.

Às vezes as pessoas fazem uma escolha sem desistir completamente do que as habitava e continuam a viver no arrependimento. Isso é algo que torna as pessoas infelizes. No primeiro volume d’O País dos Outros, Mathilde vai para França depois de ter estado em Marrocos e a certa altura questiona se deve voltar. Quando volta, sabe que renunciou a uma certa liberdade, mas sabe que vai viver a sua vida plenamente. É preciso saber fazer escolhas. Não há liberdade sem escolhas, e não há escolhas sem renunciar. Escolher é renunciar, e isso faz parte da liberdade. As pessoas ficam chocadas quando digo isto, tomam a renúncia como algo de negativo. Há muitas mulheres que me dizem que esta ideia as libertou. Temos de saber renunciar, não podemos alcançar tudo numa vida. Mas bom, se há coisas que queremos mesmo alcançar, temos de nos entregar a elas por completo.

Foto: Julien Da Costa

No livro há um momento em que a Mathilde está a cozinhar e fica parada a olhar para a água a aquecer, pensa nos milhares de horas da sua vida em que fez a mesma coisa, como se tivesse condenada àquela tarefa… Isso fez-me pensar nas mulheres em Portugal, que durante gerações cozinhavam, eram sempre elas que o faziam.

Há pessoas que me disseram que estava a exagerar, que cozinhar é algo de agradável e que as mulheres transmitiram muita coisa através da cozinha.

Foi quase como se eu dissesse que aquele trabalho era em vão. Não gosto deste tipo de discurso. A cozinha é incrível quando não somos obrigadas a fazê-la sempre. E detesto as insinuações nas quais se diz que as mulheres não têm poder, só que dentro de casa são elas quem controla tudo. Isso não quer dizer nada, continua a ser o patriarcado [a mandar] no verdadeiro sentido do termo.

A ideia não é ter poder na cozinha. O objetivo é ter poder no exterior, no espaço público, fazer o que queremos. Mostrar o corpo como queremos, e ter a vida sexual que queremos. Poder abrir uma conta no banco, etc. Eu queria mostrar que a cozinha não é um lugar de poder, é preciso parar de mentir em relação a isso.

PUB

E há também esse sentimento de repetição em que não se constrói nada. São feitas refeições, levanta-se a mesa, os pratos são limpos e tudo recomeça, eternamente. Com muito pouca gratidão. E é sempre preciso pensar nos outros, o que querem comer? A Mathilde está sempre a pensar no desejo dos outros, não no seu. É esgotante. Queria mostrar o sofrimento silencioso das mulheres que fizeram coisas toda a vida e em troca receberam muito pouca gratidão.

O cabelo das personagens neste livro é quase central na narrativa, parece ser uma questão também importante na tua vida.

Absolutamente.

Há uma cena em que a protagonista Aïcha estica o cabelo ondulado ao voltar de França.

PUB

Sim, os cabelos são importantes e penso que hoje, no momento que vivemos, e sabendo de onde venho, talvez as pessoas percebam porque são tão importantes. Primeiro eu sou filha de pessoas que foram hippies, o meu pai tinha os cabelos crespos (mostra fotografias do seu pai coladas na sua parede de inspiração) e uma barba comprida, a minha mãe a mesma coisa. Vi com os meus pais o musical Hair do Milos Forman, em que se diz que o cabelo é uma forma de revolta contra o mundo dos adultos – não queremos cortar os cabelos para continuar a ser crianças. É também uma revolta do género, o rapaz pode parecer-se com uma rapariga e vice-versa. O cabelo é algo muito normativo. Nas sociedades muçulmanas é suposto escondê-los, ganham assim um potencial erótico que não têm nas sociedades ocidentais. Por último, é a questão étnica. Os meus cabelos (ao quais se chamam afro) durante muito tempo foram considerados feios. Aliás, os hippies começam a usar os cabelos encaracolados porque era a época do black is beautiful e da Angela Davis. Quando eu era adolescente lembro-me de me perguntarem, "vais sair assim? Os teus cabelos são tão feios".

O livro é atravessado por essa questão porque penso que foi importante na época e ao mesmo tempo queria mostrar como continua a ser uma questão atual. Para poder passar despercebida e ser considerada bonita, a Aïcha é obrigada a esticar o cabelo, logo há um sofrimento físico.

Quando penso numa personagem como a Marilyn Monroe, que é muito importante no meu trabalho, lembro-me que se submetia ao sofrimento para ter o cabelo daquela cor. Descoloravam-lhe o cabelo e tinha couro cabeludo queimado. Para as mulheres, os cabelos podem estar ligados a uma espécie de sofrimento porque temos de os esconder, alisar, alourar. No meu livro há também os cabelos da criada, que têm piolhos. O cabelo sujo que podemos associar a uma feiticeira. É verdade, os cabelos atravessam o meu livro.

Foto: Julien Da Costa

Queria falar das tuas conexões literárias. Em maio, estiveste em Nova Iorque com Salman Rushdie num congresso nas Nações Unidas. O Rushdie diz a seguinte frase: "a literatura não pode desarmadilhar uma bomba, mas os escritores podem sempre nomear as mentiras e desmantelar a verdade." (Depois de publicar Os Versículos Satânicos, em 1989, o escritor viu ser-lhe lançado, pelo fundador da República Islâmica do Irão, uma "fatwa" ou um decreto religioso que pedia a sua morte. Em agosto deste ano foi esfaqueado.) No teu dia a dia, a literatura liga-te a escritores espalhados pelo mundo. Funciona como uma miragem de esperança num mundo que se está a desfazer?

Sim, o Congresso de Escritores que ele organizou em Nova Iorque este ano foi feito a partir de um modelo de Congresso de Escritores de 1939, na altura teve a participação do Thomas Mann ou da Pearl Buck. Foi um pouco antes da Segunda Guerra Mundial, agora sabemos que esse congresso não impediu a guerra de acontecer, e sabemos que este, em maio, não podia impedir a guerra na Ucrânia. Mas havia esta ideia de que os escritores tinham algo a dizer sobre a desordem do mundo atual num momento em que nos sentimos invadidos – atacados pela mentira e manipulados por uma língua formatada pela propaganda. Uma linguagem que se tornou quase de guerra.

O Salman Rushdie convidou pessoas da Tailândia, dos Camarões, do Gana e da Ucrânia. Foi muito forte, deu para perceber que há muitos escritores que vivem sob uma ameaça constante. As pessoas às vezes esquecem-se de que ser escritor em alguns países é um risco gigante. Às vezes ser escritor significa meter a própria vida em perigo. Foi também uma maneira de ouvir a linguagem como uma outra forma de verdade. Falámos muito sobre isso: o que podem os escritores fazer? Muitos tinham uma visão desiludida. E no fundo não podemos nada, sobretudo no mundo atual, nós não temos muito poder, em vez de ouvir um escritor, as pessoas vão preferir ouvir alguém que tenha muitos seguidores numa rede social.

Havia uma escritora chinesa que durante anos teve de trabalhar para a propaganda, na China tinham sempre de escrever sobre o grande líder e temas políticos. Um dia a filha dela encontrou um poema sobre um pássaro e disse-lhe: "mãe, temos direito a falar só dos pássaros." Achei isso lindo. Um escritor é capaz de nos levar à poesia do mundo, à sua beleza, fusão, complexidade e diversidade.

PUB

Na conferência que vais apresentar na Câmara Municipal de Lisboa, intitulada Mais Belas Histórias do que os Tiranos dizes que "os homens satisfeitos não escrevem." Volto à ideia de esperança que sinto nos teus combates de ativista...

Penso que podemos escrever fora do ativismo. Essa insatisfação vem de algo que sentimos dentro de nós, de que a vida é mais do que ela é. Quando vivemos uma emoção muito forte, um grande amor ou algo que nos provoca uma grande excitação, percebemos que a vida continua: acordamos, levantamo-nos, comemos.

A vida é muito trivial, prosaica, muito banal. E ao mesmo tempo cada um de nós, ao ler um livro, pode sentir-se transportado por algo que se parece com uma força maior. É nessa insatisfação que começa a escrita. No querer ter uma vida que esteja à medida dos nossos sentimentos, à medida do que temos por dentro, à medida dessa intensidade e dessa voz interior que temos em nós. Podemos andar na rua e ver uma árvore com determinada luz, e isso evoca uma lembrança, e de repente a vida é muito mais que a vida. É a vida com os fantasmas do passado, os sentimentos desse dia com aquilo que nos provoca o céu ou a chuva. É a insatisfação de uma vida que poderia ser só vivida. A vida tem de ser mais do que vivida, a vida tem de ser contada.

Foto: Julien Da Costa

Para escrever o teu ensaio O Perfume das Flores à Noite, ficaste uma noite fechada num museu em Veneza. Nesse ensaio descobrimos que escreves com vontade de vingar a memória do teu pai. Aqui em Lisboa o livro foi apresentado à beira-rio, no Lux Frágil. Gostas que a literatura esteja ligada à vida?

Penso que a literatura tem de sair dos locais clássicos, que podem assustar as pessoas e sobretudo os jovens. E eu gosto da vida, gosto de ser surpreendida e por isso gosto de surpreender. O papel do escritor é um bocado esse. Os escritores têm uma vida muito disciplinada, muito monástica, devemos fazer todos os dias a mesma coisa. Permitir-me isso é um presente que me ofereço.

Foto: Julien Da Costa

Qual é a diferença dessa vida monástica que descreves e a que vives quando vais apresentar livros a conferências onde o teu trabalho é extremamente elogiado? Como geres momentos tão diferentes?

PUB

É paradoxal. Quando estou em momentos de promoção arrependo-me desses momentos mais monásticos. A não ser quando estou a escrever bem, mas às vezes é duro. Sinto falta de alguma ligeireza. Uma vez mais, sou uma mulher insatisfeita.

Ficha técnica:

Coordenação criativa: Tiago Manaia

Fotografia e realização vídeo: Julien Da Costa

PUB

DOP e edição vídeo: Pedro Rodrigues

Styling: Joyce Doret

Maquilhagem e Cabelos: Elodie Fiuza

Guitarra: Diogo Clemente

PUB

Assistente Fotografia: Fernando Marques

Assistentes de Moda: Madalena Galvão e Luana Portella 

Artwork: José Moreira

Agradecimentos: Lorosae Beach Club, Christophe Pereira

PUB

*Mais Belas Histórias que os Tiranos – nesta conferência organizada a propósito do centenário de Saramago, Leïla Slimani parte da História do Cerco de Lisboa, texto de José Saramago, para evocar os ditadores atuais e como se sentem ameaçados pela multiculturalidade. A escritora fala da sua relação com Lisboa pela primeira vez.

PUB
PUB