Dividir para reinar. O que levará este Governo a uma ação tão furiosa contra os direitos das mulheres?

Porque é que o Governo insiste em revogar, rever e condicionar direitos que as mulheres têm ou tinham até há pouco tempo? Estranhamente, num momento em que o País se depara com tantos e tão graves problemas, o executivo parece mais preocupado em acossar metade da população.

Governo sob escrutínio por ações contra direitos das mulheres em Portugal Foto: "The Handmaid's Tale"
29 de julho de 2025 às 12:55 Diego Armés

Hoje são os atestados médicos obrigatórios para a amamentação, ontem foi a subtração da licença pelo luto gestacional (e todas as trapalhadas e desculpas esfarrapadas que se seguiram). Há uns tempos, voltou ao espaço público, sem que ninguém pudesse prever, o debate sobre a um direito que está consagrado na lei há quase 20 anos - e com resultados muito positivos a todos os níveis. Questiono-me, e acredito que a questão surja na cabeça de muitos, sobre o que levará este Governo a uma ação tão furiosa quanto profícua contra os direitos das mulheres.

Não se entende este apontar constante, fazendo dos direitos das mulheres um alvo preferencial, como se para este executivo retirá-los fosse prioritário, até urgente. Porquê? Num momento especialmente periclitante para Portugal, que vão muito para lá das perceções - e que são problemas bem mais reais do que aquelas -, com um Sistema Nacional de Saúde cada vez mais degradado e à beira do colapso, com uma profunda crise na oferta de habitação acessível nos centros urbanos e suburbanos, com uma carência de mão de obra legal - gostaria de sublinhar o “legal” - em várias indústrias de base, fundamentais à economia do País, o atual Governo opta por começar a resolver os assuntos da seguinte forma: retirando às mulheres o que elas tinham como seguro, os direitos básicos.

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Bem sei que vivemos um estranho momento de retrocesso no entendimento da definição de feminismo. Distorções sucessivas e mal intencionadas levaram a que para muitos jovens homens (e outros menos jovens) o termo tenha ganhado uma conotação negativa, quase ameaçadora. Os maus-tratos a que o feminismo tem vindo a ser sujeito resultaram numa consequência perigosa: o mundo é hoje muito mais misógino do que era há 10, há 15 ou há 20 anos. Em vez de avançarmos, regredimos.

No entanto, a explicação da misoginia contemporânea parece-me curta e até ingénua para justificar as ações do Governo liderado por Luís Montenegro. A minha suspeita é de que as suas motivações - por mais que a misoginia lhes seja, na essência, subjacente - sejam muito mais cínicas, mais calculistas, mais frias. Diria, mais maquiavélicas, no sentido de estratégico, intencional.

Eu não li muito sobre totalitarismo e a implementação de regimes autoritários, sou um leigo nessa matéria. Mas não é preciso ser-se um génio da sociologia nem um académico das ciências políticas para perceber que estão criadas as condições para a tempestade perfeita: a ascensão da extrema-direita e dos movimentos populistas, o crescimento do sentimento nacionalista e o desabrochar de um inexplicável saudosismo pelo Antigo Regime, em Portugal, e pelas ideologias mais extremistas e musculadas, um pouco por todo o mundo ocidental, fazem temer o pior - e a curto prazo.

O que é que isto tem a ver com a subtração de direitos adquiridos das mulheres? Tudo. Como disse, sou um leigo na matéria, mas sei perfeitamente que a tática de dividir para reinar funciona tão bem hoje como tem funcionado ao longo da história, desde há milénios. E não há melhor nem mais eficiente divisão do que partir a sociedade a meio: apartar os homens das mulheres. Tirar às mulheres direitos anteriormente reconhecidos é uma maneira de as isolar.

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Pensem comigo: os direitos “dos homens” são direitos universais. O que afeta um homem, afeta qualquer cidadão, mulheres incluídas. Enquanto indivíduos não-discriminados, os homens não carecem de qualquer tipo de proteção especial para o que quer que seja. Tudo no mundo e nos sistemas vigentes está concebido de um ponto de partida e de um ponto de vista masculino, pelo que não há necessidade de criar qualquer tipo de exceção para proteger, acautelar ou beneficiar o sexo masculino. Nascer homem é nascer no padrão.

Mas com as mulheres não se passa o mesmo. É muito fácil discriminar as mulheres, enfraquecer-lhes a posição. Há condições e características femininas que, sem o abrigo de uma legislação que as defenda, deixam vulnerável todo o género feminino. Exemplos: a menstruação (e todos os problemas a ela associados), a gravidez, o aborto (seja interrupção voluntária ou espontânea), , a amamentação. Todas estas condições e fenómenos são exclusivos da mulher. Mexer nos direitos que lhes consagram proteção não tem qualquer implicação direta com os direitos e a vivência dos homens - pode ter indiretamente, no âmbito familiar, das relações, etc., mas não tem interferência na vida essencial, chamemos-lhe assim, dos homens.

Subtrair estes direitos, alterá-los, revogá-los ou mesmo condicioná-los serve para isolar a mulher. Como disse antes, para apartá-la do homem. É enfraquecê-la sem que isso afete de forma direta a outra metade da população - da sociedade, da comunidade. E o homem, por mais solidário que seja, por mais empatia que sinta, nunca sofrerá na pele com a retirada dos direitos. E isso trará desunião, descompasso, falta de sintonia entre homens e mulheres.

No futuro - um futuro que antevejo assustadoramente próximo -, quando a subtração de direitos afetar a todos, homens e mulheres, já o espírito de comunidade se terá esfumado, já a união se terá desfeito, metade para cada lado.

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É por isso que importa agora, hoje mesmo, que os homens se unam às mulheres para que se acabe, de uma vez por todas, com este retrocesso civilizacional, com esta retirada constante - e, temo eu, inexorável - dos direitos femininos. Temos de estar juntos. Se a palavra “feminismo” vos assustar, então não usem, pensem simplesmente no seguinte: é de direitos humanos que se trata. E precisamos todos uns dos outros, temos de nos proteger uns aos outros. Temos de estar juntos agora, antes que seja tarde demais.

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