Dating em Lisboa. “Denunciei o meu vizinho por ruído e descobri que era um belo francês”

Foto: IMDB / 'The Choice'
03 de dezembro de 2024 às 20:08 Maria Pestana

Decidi que a minha vida amorosa precisava de uma pausa. Não uma pausa estratégica, para recarregar energias e voltar ao mercado como quem troca de camisa, mas de um ponto final. Uma decisão convicta: chega de dates, chega de tentativas frustradas, chega de esperanças vãs, chega de forçar algo que não acontece. O que para os fins desta crónica poderia ser trágico. Talvez fosse mais um ponto e vírgula, uma vez que comigo nunca se sabe. Às vezes, dobro uma esquina e mudo de ideias. Mas depois percebi que existia todo um movimento boy sober e que as mulheres se estavam conscientemente a tornar celibatárias como forma de se colocarem em primeiro lugar, depois de anos e anos em encontros e relações supérfluas. Afinal, não estava sozinha neste sentimento de exaustão e, de alguma forma, isso deu-me conforto.  

Não cortei o cabelo, como qualquer mulher numa destas fases de "agora-vou-mudar-de-vida-e-focar-me-em-mim", mas passei mais tempo a ler, recomecei a cozinhar receitas antigas e aprendi algumas novas. Comecei a nadar, algo que não fazia desde criança. Encontrei uma piscina pública perto de minha casa, comprei um fato de banho de marca desportiva, óculos, chinelos, roupão, o kit completo e lá fui eu dar umas braçadas. Ainda recomecei a fazer yoga de manhã e meditação à noite.  

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Durante algumas semanas vivi numa bolha quente de paz e harmonia, repleta de hashtags pirosos como #grata e #plena. Até um novo vizinho se mudar para o quarteirão e decidir dar uma festa com música aos altos berros. Aí deu-se um adeus gratidão, adeus plenitude, estou pronta para ir à luta. Era sexta-feira, em vez de sair, preparei um chá de menta. Acendi uma vela de canela e montei a árvore de Natal. Pendurei a coroa na porta e espalhei o resto dos enfeites pela sala. Depois, li algumas páginas de um livro e ouvi música baixinho. Apercebi-me do barulho lá fora a partir das oito horas, mas não dei logo importância. Ainda era cedo e estava suportável. No entanto, as horas foram passando e o barulho aumentando. Fui ao meu quarto, espreitei pela janela. O som estava tão alto que os vidros tremiam. Vi-os no quintal, colunas na rua, set de DJ. Falavam numa língua estrangeira, misturavam sotaques. Riam, cantavam, dançavam. "Estrangeiros de um raio", pensei irritada e cansada de sentir que invadiram Lisboa para cuspir em tudo o que é nosso, tudo o que é autêntico e o que faz desta cidade bonita, tornando-o numa montra de multinacionais consumistas e restaurantes premium e gourmet com conceitos disto e daquilo.  

Bateram as dez horas, depois as onze, até chegarmos à meia-noite. Estranhei que mais nenhum vizinho se tivesse irritado ainda. Questionei-me se estariam todos fora ou, tristemente, se já não teria vizinhos portugueses que se importassem. Nesse momento, transformei-me numa velha marreta, pesquisei a morada da rua, contei os prédios até descobrir o número da porta e sem meias medidas telefonei para a polícia. "Boa noite, Sr. Agente. Queria fazer uma queixa por ruído". Coloquei o telemóvel em altifalante. "Consegue ouvir, Sr. Agente?", disse eu. "Quantas pessoas são? Parecem muitas!", perguntou. "Umas 30", disse eu, "e não falam português, é melhor enviar alguém que saiba falar inglês". Desliguei e fui espreitar à janela sorridente. "Esperem aí que já vos estrago a festa". Não me orgulho, mas foi a primeira vez que denunciei um vizinho e as primeiras vezes têm sempre algo de excitante. Costumam ter algo de desastroso também, mas já lá vamos.   

Fiquei à espera, na esperança de que o barulho finalmente terminasse e eu pudesse ir dormir sem ouvir hits de pop comercial e pessoas a gritar "uhhh uhhh". Meia hora, a quarenta minutos mais tarde, terminou, de facto, e eu dei-me por satisfeita. Por essa mesma altura, tocaram à campainha e o que eu não sabia acerca destas denúncias de vizinhos é que não são, de todo, anónimas. Abri a porta, de pijama, cabelo entrançado e óculos tartaruga. Ao lado de dois agentes da polícia estava um rapaz aloirado, de olhos azuis, com uma sweater verde-escura, jeans claros e umas socas castanhas. Tinha o cabelo desgrenhado e um sorriso tão simpático que aposto que a polícia nem o multou. "Foi a senhora que nos ligou, não foi? Bom, já reportámos a situação. O Sr. Lucien está aqui para se desculpar", disse um dos agentes. "Désolé", afirmou enquanto levava uma mão ao peito. Depois sorriu novamente e acrescentou "c'était mon anniversaire!". Completamente envergonhada, senti as bochechas ruborizarem. Recorri ao meu péssimo francês para responder "pas de problème!", olhei para os polícias e acrescentei "desde que não se volte a repetir". Dei uma gargalhada e pensei que queria fugir. "Bon anniversaire! Bonsoir". Eles foram embora e eu fiquei a pensar que o Sr. Lucien cheirava bem para caraças. A beleza tem um impacto surreal em nós. Fosse ele gordo e feio e eu ter-me-ia sentido uma heroína. Assim, a vitória teve um gosto estranho. Quando finalmente deitei a cabeça na almofada para dormir não se ouvia um som lá fora, mas a imagem de Lucien ecoava-me na mente com a mesma precisão que a batida das colunas.   

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No domingo, cheguei a casa e tinha um ramo de margaridas cor-de-rosa no tapete de entrada e um bilhete escrito no verso de um panfleto. "Pardon! Que puis-je faire pour compenser? Lucien" e deixava o número de Whatsapp em baixo. Não consegui pensar em nada de decente que pudesse fazer para me compensar, mas na minha mente existiam uma série de outras coisas que me poderia fazer. Posto isto, não o contactei. Decidi deixar acalmar o desejo, manter a Maria impulsiva controlada, enjaulada na sua nova premissa de sossego. Estava tudo a correr conforme o planeado, não seria um francês de olhos azuis a desencaminhar-me. Meti as flores numa jarra com água. Deixei o bilhete ao abandono na mesa do corredor.  A vida seguiu. Os tempos passaram-se, mas o bairro é uma ervilha. E, um dia, estava eu na mercearia a comprar cenouras quando o Lulien chegou, animado, cumprimentou o dono da loja com toda a amabilidade. Sorriu para mim. Perguntou se tinha visto as flores. Respondi-lhe em inglês: "I did, sorry. I didn't get to thank you, but it wasn't necessary". Convidou-me para um café, recusei, fiel à minha decisão de evitar encontros, mas ele insistiu e o Sr. Hélder do outro lado da caixa acenava com a cabeça, como se me dissesse: "Vá, vá menina! Olhe que ainda lhe sai a sorte grande!". Não era um date, disse para mim mesma. Era apenas um café com um vizinho. 

Naquele café, descobri que o Lucien se tinha mudado para cá para trabalhar num projeto de arquitetura sustentável. Falava com paixão sobre o trabalho, a mudança para Lisboa e confessava que nem sentia saudades de Paris. E eu, que tinha jurado que não queria mais saber de romances, comecei a duvidar da minha decisão. Não era só a beleza dele, embora isso fosse inegável. Era a maneira genuína com que me fazia perguntas que me cativava, num jeito meio infantil, como se realmente quisesse saber o que eu pensava sobre todas as coisas e mais alguma. Essa é a forma correta de chegar ao coração de uma geminiana, deixar-me falar, alimentar a minha paixão pelo mundo das ideias. Ainda não sei o que somos, o Lucien e eu, mas ele convidou-me para jantar e eu aceitei. Talvez nem cheguemos a ser nada, afinal, ele está só de passagem por esta Lisboa. O que sei é que sempre que decidimos que não queremos mais uma coisa, a vida encontra uma forma de nos provar o contrário.   

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