"As estradas são para ir", ou a biografia poética (e visual) de Márcia
Será um livro de poemas, uma coletânea de ilustrações, ou um conjunto de crónicas? “As estradas são para ir” é isso tudo, embebido na composição aguçada, agridoce e contemplativa de Márcia.
Foto: Nash Does Work03 de novembro de 2020 às 08:48 Rita Silva Avelar
As páginas de "As estradas são para ir" são de uma leitura tão fluída e condutora, que é possível que numa noite o devoremos. É que Márcia escreve de forma tão escorreita quanto compõe. No final, apercebemo-nos que este é um livro para se regressar quantas vezes quisermos, porque se não é a poesia que nos resgata, tantas vezes, de lugares sombrios e nos leva para lugares de luz, não sabemos o que será.
Este é o primeiro livro de Márcia, que não o classifica de maneira alguma. A compositora e artista de 38 anos e a voz de Insatisfação ou Deixa-me ir decidiu que compilaria poesia, crónicas e ilustrações - tudo da sua autoria, claro - num único objeto. Esta aventura literária nasce de um período em que a autora não pôde cantar devido a uma lesão nas cordas vocais, mas também a "salvou" da quarentena que todos vivemos, porque lhe permitiu evadir-se para outros lugares através de traços pintados, de esquemas rimáticos, ou de reflexões de cariz mais pessoal que são quase cartas abertas às suas personagens.
Além de a ouvirmos, podemos agora lê-la, se bem que o livro também nos remete para as suas sonoras composições. Editado pela Planeta, "As estradas são para ir" é, em última instância, um auto-retrato corajoso, sublime e, claro está, poético.
É curioso que este livro nasce de uma situação pessoal, a perda da voz, mas viaja até ao passado, e nas entrelinhas conseguimos ouvir várias Márcias, ou seja, várias fases da sua vida. Sentiu que era essa viagem que queria fazer com As estradas são para ir?
É engraçado que este livro nasceu de uma fase má, que foi o problema que tive nas cordas vocais, mas nasceu também de outro período mau que foi a quarentena, que todos nós tivemos que passar. O que me mostra que talvez eu esteja a tentar exemplificar - com os caminhos que eu escolhi - as estradas que se podem percorrer nesta alturas. Ou seja, as saídas possíveis dos caminhos difíceis.
Tenho a ideia que acredita profundamente nisto: a escrita cura-nos e faz-nos renascer. É verdade?
Sim, acredito profundamente nisso e na cura do entendimento. Como refiro na nota de autor, aquele que nos ouve é um precioso lugar. Eu acredito que aquele nos entende está a fazer muito por nós, e que aquele que nos ouve como ouvinte também quando nós cantamos, está a completar um ciclo. Eu faço uma canção para desabafar, assim como se tu tiveres uma conversa com uma amiga, estás a desabafar e ela está a ouvir. E perceberem-se uma à outra faz com que não te sintas tão sozinha. É por isso que eu acredito nessa cura do entendimento. E acho que a escrita ajuda-me muito a pôr as coisas em perspectiva, porque não consigo entender tudo à superfície.
Há muita contemplação na sua poesia, sobretudo na Natureza. Diria que é uma observadora nata, absorvendo o mundo para dentro das palavras?
A contemplação é cada vez mais importante. Porque nós temos muita coisa para fazer, mas se não pararmos a contemplar aquilo que fizémos, acaba por ser como se nada fosse. A Natureza que nós desprezamos, muitas vezes, e que achamos que não é assim tão importante, é um reencontro vital. Nas imagens do livro está também o meu regresso à Natureza, já que a maior parte das ilustrações foi feita durante a quarentena.Os desenhos do mar foram todos feitos de memória. Senti uma grande necessidade de evasão. Somos parte de um mundo com vários elementos, e temos que estar em contacto com eles e com a terra. A mim faz-me imensa falta, e sinto pena, às vezes, de ter nascido na cidade.
Também podemos pensar neste livro como uma carta de amor ao seu pai. É ele o fio condutor de todo o livro?
Não diria o fio condutor mas uma talvez uma homenagem, ao falar dele, falar da importância que ele tem. Nós achamos sempre que somos só pessoas, mas a verdade é que influenciamos os outros. Acontece-nos a todos acabar por influenciar os outros, e também temos o poder de inspirar. Eu gosto de saber isso como artista e como pessoa. Quando as pessoas choram nos meus concertos, eu fico contente (não pelo choro em si, claro!) mas sim por estarem disponíveis para me ouvir e emocionarem-se com o que eu canto. Isso dá-me um certo sentido de propósito. Há momentos como artista em que pensamos que fazemos as coisas para nós, porque este é um caminho de muita resiliência.
Sente que foi, de certa forma, um presente para todos os que admiram as suas composições?
Espero que sim! E que se sintam felizes, eu tenho recebido muitas mensagens de pessoas muito contentes e gratas. É algo um bocadinho mais à frente daquilo que eu já tenho dado, é uma coisa mais íntima.
Neste auto-retrato, digamos assim, além de luz e amor também há medo, insegurança e incerteza. Nem sempre estamos na estrada certa?
Acho sempre que se pode estar no caminho certo, mas é importante conhecer a importância da tristeza, reconhecer que ela existe. Eu gosto de ter dado o meu contributo em forma desse testemunho. Sinto que somos mais felizes assim. Estar sempre com a postura de que estamos sempre bem, acaba por deixar quem está numa situação má muito mais isolada. E não é justo julgarmos tanto. É uma tradição dizer-se "não chores" ou "vê lá se agora não choras". E isso não é justo, porque também é preciso chorar. Mas também não devemos ceder à tristeza, que era uma coisa que o meu pai muitas vezes dizia. Eu acho que não nos devemos dar nem render à tristeza, devemos detetar o que se pode fazer mais pelo nosso bem-estar. Mas também precisamos de nos perdoar a nós próprias quando temos um dia mais cinzento.
Além disso brinda-nos com ilustrações e pinturas. Tinha saudades de pintar?
Sim, tinha imensas saudades de fazer uma série. Porque eu sempre desenhei, continuei a desenhar, mas eram pequenas coisas. Isto é uma série de desenhos contemplativos grandes. Eu não decidi logo o que iria desenhar, foi com base naquilo que os poemas me recordaram.
O livro foi pensado em 2017. Eu tinha a ideia de querer editar poemas, e achava que ficavam bem com um apontamento de desenho. Tudo culminou neste objeto porque as canções acabam por falar nalguma temática de alguma maneira e eu sempre dei muita importância à escrita, e depois acabei por escrever também crónicas. Entraram mais textos do que eu estava à espera. Eu permiti-me a liberdade de fazer um objeto diferente, pensei: porque é que eu não hei-de fazer aquilo que eu quero? Na verdade, eu sou essa artista de fazer muitas coisas, faz-me sentido o livro vir com estes desenhos. Eu sinto tudo ao mesmo tempo, sinto estas imagens, recordo estas paisagens, ao mesmo tempo que eu escrevo.
Apesar de estar sempre a escrever e a compor, fica a vontade de dar continuidade a este livro?
Sim, depois cria-se uma maneira de escrever que permite continuar o livro, tornando-o interminável. Mas eu continuo sempre a escrever, há sempre coisas para dizer. Na minha cabeça estou sempre a pensar… é um bocado cansativo, mas bom! (risos).
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Este livro veio numa altura em que todos sentimos algum desamparo. É a poesia que muitas vezes nos "salva"?
Eu dou muita atenção à poesia. Se me perguntares enquanto sociedade, como cidadãos é muito importante que exista uma dignificação maior dos artistas, dos professores, dos enfermeiros. E como é que se faz isso? Por um lado, não criticar tanto. Os Ministérios e o Governo podem mudar o que quiserem, mas nós como cidadãos devemos olhar para os artistas com dignidade, como um trabalho, uma profissão, e que merece respeito. Hoje em dia fazemos muito, e somos menos, mas a Arte é o que permite viver e não passar a vida só a cumprir tarefas ou a sobreviver. É o que nos faz viajar.
Quais são os seus poetas preferidos?
Os que mais me tocaram até hoje, Fernando Pessoa (sobretudo em Alberto Caeiro) e gosto muito da Adília Lopes.