“Tive o privilégio de usufruir do lado afetivo e protetor de António Variações”
Teresa Couto Pinto, agente, fotógrafa e amiga de Variações recorda-o através de um novo livro-álbum, onde se incluem fotografias raras e nunca vistas.

Barbeiro, esteta, artista, ser humano. António Variações não foi só o rosto de uma geração. Nem tão pouco mais um nome brilhante quando pensamos nos gloriosos anos oitenta. António Variações foi António Variações. O homem que continua a ser, atravessando o tempo, o espaço e as memórias, o eterno artista capaz de conquistar uma e outra vez novas gerações através da sua sonoridade e bondade infungíveis, deixadas como precioso legado.
Teresa Couto Pinto, agente, fotógrafa mas sobretudo amiga e confidente de Variações, precisou de vários anos para condensar aquilo que queria passar sobre o seu amigo António. Eis que surge este livro-álbum em formato de LP na qual reúne quase 150 fotografias captadas entre 1981 e 1984, com um texto entregue à escritora e jornalista Manuela Gonzaga. Antes de se tornarem cúmplices, os dois conheceram-se na loja Parafernália na Rua Castilho, onde Teresa trabalhava, em finais de 1978, e quando António era ainda cabeleireiro. À Máxima, a autora lembra com saudade aquele que continua presente no imaginário dos portugueses como um homem igual a si mesmo, e a mais ninguém.
Houve um timing especial para este livro ser publicado? Porquê agora?
Este livro precisava de tempo e de espaço. Tempo para amadurecer e para que estas fotografias agora expostas e contextualizadas com as minhas memórias ajudassem a reafirmar o seu legado. Espaço para criar as condições que permitissem fazer uma obra desta natureza com a qualidade editorial que merece. Queria que esta obra falasse sobretudo do verdadeiro António, o meu amigo, poeta, cantor e compositor talentoso e não o resumisse ao que durante anos foi motivo de conversa sobre ele. O seu desaparecimento e a doença que o vitimou.
Como se sentiu ao recuar no tempo até aos anos oitenta? Sentiu-se a reviver o passado, ao seleccionar estas fotografias?

Estas fotografias viajaram comigo a vida inteira desde os anos oitenta. Durante estes 36 anos revi-as centenas de vezes em várias situações. Na cedência de muitas delas para ilustrar artigos sobre o António, mas também na ilegal e abusiva utilização das mesmas tanto na imprensa como na internet, sem os devidos créditos ou autorização para publicação. Olhá-las traz-me com certeza lembranças daquela época. De um tempo feliz e despreocupado, em que a vida era empolgante e promissora.
Os anos 80 foram tão especiais como comummente ouvimos falar sobre eles?
Não sou uma pessoa saudosista, mas os anos 80 foram uma época muito importante para quem os viveu. Foram os anos do despertar de uma democracia há muito desejada após anos de repressão e cinzentismo. Naquela altura acreditávamos que tudo ia mudar, que havia espaço para a criatividade e para a liberdade de expressão, que tudo era possível e que a vida não tinha limites.


Só fazia sentido ser um livro álbum?
A ideia do formato de um LP surgiu-me logo que pensei no livro. O António faleceu na altura em que saiu o seu último trabalho "Dar & Receber". Não teve oportunidade de promover o disco. Naquela época essas promoções faziam-se através da rádio e da televisão e nos múltiplos concertos inseridos em festas populares que se realizavam por todo o país. Os telediscos eram feitos em película, movimentavam equipes inteiras de filmagens. Não havia os recursos que há agora. A internet não existia ainda e por isso chegar ao público em geral era mais demorado.

A carreira do António Variações foi meteórica mas infelizmente muito curta. As primeiras aparições na televisão pela mão do Júlio Isidro catapultaram-no para a ribalta. Falou-se bem e falou-se mal dele, mas jamais gerou indiferença. O tempo de palco durou só dois anos e meio. Estas fotos foram todas tiradas nesse período. Não tinha como colocá-las por ordem cronológica. Assim, pela sua disparidade, resolvi dividi-las por temas. Facilitou a sua arrumação no livro e permitiu-me falar de cada sessão fotográfica num contexto mais alargado. O livro começa com as fotos tiradas em sua casa durante uma experiência com argila, um ensaio para a foto do último álbum e que mostram o António ao espelho como se estivesse a preparar-se para entrar em palco, e acaba com o making off da sessão fotográfica realizada para a capa do LP onde a argila ganha cor e complementa a imagem que ele queria refletida no espelho, uma imagem simbólica do conceito "Dar & Receber". No meio do livro ficaram os outros temas. O amigo, o artista, o esteta, a casa, a barbearia, a tesoura, o corpo. O índice do livro está na contracapa do mesmo, e não no interior, como se fossem as canções de um álbum longplay.
O António Variações que conheceu corresponde ao António do imaginário dos portugueses?
Como outros amigos do António tive o privilégio de conviver com ele num ambiente mais intimista. De usufruir de um lado afetivo e protetor que as pessoas na generalidade desconhecem. De conhecer o ser tímido e sensível que ele era debaixo da exuberância das suas roupas, e sobretudo de testemunhar a firmeza do seu caráter e formação. Os portugueses em geral recordam o António, com os seus fatos arrojados, a sua postura simpática, a sua voz e o timbre inconfundível. São sensíveis às letras das suas canções. Primeiro estranharam mas depois ele entranhou-se nas suas vidas e já ninguém o dispensa. Virou ícone de mais de uma geração. Sinto-me feliz por ter ajudado com as minhas fotografias a consolidar a sua imagem.


Era importante ser Manuela Gonzaga a escrever o texto?
A sua biografia oficial, de imprescindível leitura para quem o quiser conhecer mais a fundo, escrita pela minha amiga Manuela Gonzaga é um documento fidedigno, baseado nos depoimentos de quem viveu e conviveu com ele. Esses relatos são preciosos para recordar com verdade a sua história e a sua vida. Por isso a convidei para escrever o texto deste livro para contextualizar as minhas lembranças, para que o livro tivesse a qualidade literária que merece. Estou-lhe muito grata por ter aceite. Este livro onde reúno todo este acervo fotográfico era o documento que faltava para consolidar a imagem do António para memória futura. É também uma maneira de homenagear e dar a conhecer de uma forma mais intimista este homem simples e talentoso que partiu precocemente, mas que deixou a todos os portugueses um legado musical rico em poesia e sabedoria.

Quais eram as qualidades que o tornavam fascinante e magnético, perante todos os que o conheciam?
O seu carisma e atitude. A sua integridade e lealdade. A sua humildade e o orgulho que tinha das suas raízes e do seu percurso. O António era um ser sensível, educado, respeitador e sorridente. Não era conflituoso ou impositivo e inspirava confiança. Falava pouco, mas quando falava as pessoas ouviam-no. Sobretudo tinha o condão de saber ouvir. A primeira impressão que deixava, à parte do seu visual criativo e exuberante, era o de uma pessoa agradável, inteligente, confiável com quem nos apetecia conviver.


O António gostava de ser fotografado? Ser amiga, agente e fotógrafa coexistam na vossa relação sem diferenças entre si?
O António tinha o seu lado narcísico. Cultivava o corpo e tinha orgulho no mesmo. Fazia ginásio duas vezes ao dia. De manhã antes de ir trabalhar e ao fim do dia depois de sair da barbearia. A fotografia valorizava esse corpo e as roupas que criava. Era também uma ferramenta de trabalho. Era uma maneira de ele ter através dela a imagem que os outros tinham dele. A sua imagem ao espelho não era suficiente, pois de alguma maneira eram os seus olhos que viam o reflexo devolvido. Ele queria ver através dos olhos de quem o olhava. E isso só a fotografia lhe podia dar. O processo do meu envolvimento na sua vida, no trabalho com ele e na fotografia foi um processo tão natural e espontâneo que tudo se misturou de uma forma coesa e simples.
O que é devíamos, ou devemos, aprender com Variações? O que é que gostava que as pessoas sentissem com este livro-álbum?
O seu carisma, único e inimitável. A criatividade e a estética que o tornaram tão especial. A plasticidade do seu ser. A honestidade e generosidade que o caracterizaram. A mensagem que deixou ao mundo nas letras das suas canções e sobretudo na verdade do lema com que regeu a sua vida: "Dar & Receber". Um legado precioso que precisamos cuidar, acarinhar e ajudar a perpetuar para inspiração e conhecimento das gerações vindouras, e que o António já provou não ter prazo de validade.


