A Burel Factory é uma história de amor dedicada ao património
Esta história dava um belo filme, mas dos que têm final feliz. Começa na serra, continua num sanatório em ruínas transformado em hotel, e culmina numa fábrica têxtil falida que renasce, com o saber fazer português e a sustentabilidade como bandeiras. Agora acaba de chegar ao Chiado, a Woolclopedia, a primeira coleção de Moda da Burel Factory, que é com saltitar numa montanha de lã colorida.

Isabel Costa e João Tomás passeavam pelas Penhas Douradas, em 2006, quando tomaram a decisão de mudar de vida. Tinham exigentes cargos executivos em grandes empresas nacionais, mas ele desejava "uma segunda vida" quando chegasse aos 50 anos, sentia um certo apego àquela montanha e um fascínio pelas expedições científicas que ali se começaram a fazer em finais do século XIX. Isabel foi a primeira mulher a chefiar vários departamentos dentro da Sonae, começou num hipermercado Continente, ainda miúda e acabada de sair de Biotecnologia, que estudou no Porto, e terminou na administração. É uma fazedora natural e consegue fazer acontecer em qualquer deserto de vida, por isso seguiu o marido.
O primeiro passo de ambos foi pegar no que sobrava de um antigo hotel-sanatório, de 1871, no meio da serra, e transformá-lo na confortável Casa das Penhas Douradas, um quatro estrelas onde nos imaginamos numa cabine de montanha nórdica, no conforto e no bom gosto simples e rodeado de verde a 1500 metros de altitude. Ao mesmo tempo, quando chegaram a Manteigas, em 2008, encontraram uma comunidade apagada, marcada pelo desemprego e pela crise que se abateu nesse ano. O principal empregador tinha fechado três anos antes, então Isabel e João resolveram inventar, com a ajuda da Câmara Municipal, o Manteigas Solidária, uma espécie de workshop com a vila para criar pequenas empresas.

Chamaram os amigos gestores e inventaram-se 21 projetos de desenvolvimento económico para Manteigas a partir dos produtos locais. "Fizemos um fim-de-semana, o hotel fechou para receber os padrinhos para cada projeto... Empreender é muito difícil, era preciso alguém que ajudasse a comunidade a concretizar os planos de negócio." Fizeram um levantamento de tudo o que havia em agricultura na zona, cherovias, abóboras, feijoca, zimbro, urtigas, "tudo o que poderia dar produtos fantásticos na área gourmet e já prontos a serem consumidos", chamaram o Luís Baena para criar receitas, e desenvolveram mais de 50 produtos para o chamado PDF, o Penhas Douradas Food, de bisnagas de ketchup a chutneys variados e a pesto de urtiga. "O país tem imensos produtos locais que podem ser extraordinários."

Como se não bastasse, Isabel e João resolveram olhar pela fábrica de lanifícios Império, que estava em lay off e a morrer aos poucos. Alugaram uma sala dentro da própria fábrica e resolveram pegar no burel, a lã grosseira proveniente das ovelhas bordaleiras e churras, duas raças autóctones que pastam nos planaltos superiores das encostas da Serra da Estrela, onde a erva é mais macia. O burel já era utilizado em Inglaterra, desde o século IV, e foi trazido para Portugal pelos monges dominicanos, no século XI, com o qual confecionavam os seus hábitos. Contrataram uma costureira, que hoje chefia muitas outras e, em janeiro de 2010, compraram a primeira máquina de costura e começaram a trabalhar esta lã pensada para Arquitetura e interiores. Aos poucos, foram buscar os velhos operários da fábrica original, que entretanto formaram novas gerações, e um ano depois mudaram-nos para uma outra fábrica, a Sotave, onde fizeram obras de recuperação. Assim nasce a Burel Factory como a conhecemos hoje.

O salto deu-se quando, no meio dos complexos trâmites de insolvência, chega uma encomenda providencial, mas para uma fábrica ainda por levantar. "A fábrica fechou em novembro e dia 7 de janeiro ligam-me do gabinete de Arquitetura de um construtor espanhol, a dizer que tinham um projeto de revestimentos da Microsoft que queria um pouco de portugalidade", conta Isabel que, apesar dos apesares, achou que este poderia ser um sinal de futuro para alavancar a sua jovem empresa assente sobre um património riquíssimo. Começaram a bater as feiras internacionais e puseram a fábrica a mexer. Ao mesmo tempo, Isabel Costa cria a marca Burel Factory, quis que esta se aproximasse dos criativos e do consumidor. Assim, fizeram-se concursos com a Casa da Arquitetura e criaram-se produtos de design industrial e decorativo, com nomes como Pedro Noronha, Rui Tomás, que hoje é o diretor criativo da área na Burel, Pedro Salgado, Alix design ou os Carapau de Corrida. E inaugurou-se a loja no Chiado, em 2012, ainda decorria o dito processo de insolvência, uma no Porto, em 2015, e o showroom de Arquitetura, em 2017, na rua do Ferragial, também no Chiado. O ano passado foi a vez da loja de decoração, mesmo ao lado da loja de Moda. Pela mesma altura, um consórcio internacional estuda profundamente o burel e termina, em 2022, a sua certificação para utilização em Arquitetura, o que durou três anos a fazer - esta lã tem qualidades excecionais de isolamento acústico, proteção contra a humidade ou proteção do fogo, por exemplo, entre muitos outros detalhes técnicos. Enquanto isto, o sucesso das suas mantas em lã merino levaram a Burel a um público muito mais amplo, a muitas casas e hotéis onde se distinguem pela sua suavidade e pelos padrões coloridos e vintage, com 50 a 80 anos de idade e, mais uma vez, recuperaram uma identidade antiga, já que as mantas sempre fizeram parte das identidades das gentes da serra.


Enquanto acontece toda esta azáfama na fábrica, o casal pega na Pousada de São Lourenço, construída nos anos 40, e dá-lhe uma nova e esplendorosa vida, transformando-a na Casa de São Lourenço, um cinco estrelas de montanha belíssimo que já foi prémio de sustentabilidade. Com uma Arquitetura minimalista e uma suave beleza austera, encaixa com perfeição na paisagem que observa os vales a 1250 metros de altitude, da Serra da Estrela, a Manteigas e ao Vale Glaciar. Por dentro, foi recuperado o legado da artista Maria Keil, que se ocupou dos interiores originais, nomeadamente na conceção do mobiliário para um grande conforto. "Se os hotéis trazem o mundo à serra, a Burel leva a serra ao mundo", disse-nos Isabel Costa quando conversámos com ela pela primeira vez.
A Moda aterra na Burel Factory como o passo lógico seguinte até porque, ainda em 2022, compraram a fábrica Alçada & Pereira, a última que produzia lanifícios cardados no nosso país. Esta precisava de volume de produção, tornou-se óbvio que seria esta a altura para lançar uma marca de Moda. A Burel já tinha colaborado com a dupla Marques'Almeida ou Paul Smith em pequenos detalhes, designers japoneses e marcas como a portuguesa La Paz e Sanjo, mas tal representava cerca de 5% da produção.

Isabel não fazia ideia do que seria esta nova coleção de Moda, apenas queria que "valorizasse o conhecimento de lanifícios da nossa gente, a serra e a fábrica." João Tomás diz-nos num sorriso, no lançamento da Woolclopedia, que investiram na mesma com um dinheiro que tinham de parte para ir fazer uma volta ao mundo. Encontram Ana Sofia Castanho, recentemente saída da equipa da Solid Dogma de Vhils, para fazer a direcção criativa e Filipa Homem, designer de Moda, com longa experiência em roupa para crianças (em marcas como H&M, Papo d'Anjo, Knot, e fez colaborações com a WSGSN, a Boden e a Oscar de la Renta), mas com uma paixão por design de sapatos, que estudou na mítica escola de artes Central Saint Martins de Londres, e que chegou a desfilar no Sangue Novo da ModaLisboa. Filipa tem, no entanto, uma visão total da produção de uma peça de roupa, que começa no design, passa pela fábrica e termina na loja, e uma vontade de pôr a mão no design de Moda mais puro e duro, por isso chegou a trabalhar com o designer Miguel Rios, em Lisboa, num projeto artístico centrado nisso mesmo, a assistir uma coleção masculina de Gaspard Yurkievich, em Paris, e uma feminina de Alexander McQueen, ainda com o próprio, em Londres, isto em 2005. Fez trabalhos para a Hemingway Design e foi assistente de showroom e de loja de Lulu Guinness. Era o perfil perfeito.


A primeira colecção de Moda da Burel Factory foi desenhada de raiz, padrões incluídos, para peças de edição limitada e sem género. Conseguiram produzir o burel com uma gramagem mais fina, macia e flexível, para a sua textura se tornar mais adaptável à Moda e cruzam desde as flanelas de xadrez da serra, aos padrões mais sóbrios, lisos ou risca de giz. Os ténis são uma parceria com a portuguesa Diverge, com a qual Filipa já colaborara. E quis trazer para a coleção o ambiente da Burel Factory, "que é lindíssima", mergulhou apaixonadamente no seu arquivo e criou algumas cores inéditas que não estavam na sua paleta original, com a ajuda do responsável da fábrica, o José Luís. Quis que todos colaborassem e favoreceu a comunicação "cara a cara, claro, já que na fábrica fazem tudo à mão", explica. O mesmo segredo foi usado no contacto com as fábricas, todas portuguesas, que trataram da confeção, "todos se apaixonaram pela marca". A "estratégia" foi levar Isabel Costa para as reuniões: "Tudo lhe sai da cabeça e do coração, quando a ouves falar do projeto, emocionas-te." Isabel Costa acredita nos projetos pequenos e em passos prudentes e firmes que nos levam mais longe. E provou ter razão, ainda mais nesta sua missão de, como diz, "observar o património". Esta primeira incursão na Moda chama-se Woolclopedia, "porque é uma enciclopédia de malhas", explica a designer, e é um alegre e fresco passeio na montanha, que bem podia ser uma montanha de novelos de lã colorida de tão deliciosa que é.


Moda, Tendências, Blurel Factory, Woolclopedia, Chiado
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