De casa para o mundo. Em exclusivo com Alexandra Moura em Milão

‘Lar doce lar’ é o mote da nova coleção de Alexandra Moura. A designer pede para pensarmos no que significa a palavra “casa”, inspira-se em objetos do quotidiano para criar silhuetas e instiga-nos a explorar aquilo que nos torna únicos. Relato de um desfile inspirador.

Foto: Kamba
09 de março de 2022 às 07:00 Tiago Manaia

O telefone de Alexandra Moura brilha. São dezenas de notificações que o acendem em silêncio enquanto a entrevistamos num camarim improvisado nos bastidores do seu desfile em Milão. Alexandra respira fundo à nossa frente, agita freneticamente uma das pernas, não é sinal de impaciência mas sim a pressão que se dissipa. Vinte minutos antes, a designer atravessava a passerelle da Milan Fashion Week fazendo uma vénia de agradecimento a uma sala cheia que se deslocou para ver as suas propostas para o outono/inverno de 2022. Os aplausos no final chegaram hesitantes, o público tinha as mãos ocupadas. 

Foto: Ugo Camera
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Os telefones, que filmam tudo a cada instante de vida, roubam agora o ruído de apreciação que em tempos foi costume. "É verdade que querem todos filmar a fila final com os manequins juntos, e há menos aplausos", constata. O iPhone pousado ao seu lado, ao acender-se com notificações, dá-nos sinais que a sua nova coleção já se agita. Virtualmente já ganhou vida própria, isto é uma promessa de sucesso no século XXI. 

Foto: Ugo Camera

Os sons deste desfile recuperaram precisamente barulhos tecnológicos ou de mensagens trocadas digitalmente, pequenos bips interromperam e pontuaram as músicas que se ouviam, lembrando o foco do nosso quotidiano atual. Estamos presentes, sempre a comunicar com outro mundo. 

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Foto: Kamba

A casa é onde o coração bate mais calmo

Foi numa reflexão pós-pandemia e a pensar numa ideia de casa (e de como podemos trazer a casa para a rua) que as silhuetas de Alexandra Moura foram desenhadas desta vez. Apesar de ter apresentado várias coleções depois do choque que foram os primeiros confinamentos, nesta estação, a designer criou a partir de sensações que teve durante as várias fases de isolamento em 2020, "altura em que ganhei uma consciência muito forte do que estávamos a viver, uma consciência sobre o porquê e o propósito de tudo," descreve. Quando as restrições foram abrandando e a "normalidade" se aproximou, Alexandra sentiu quase como um chamamento para o interior,  "por muito que tivesse vontade de ir para a rua e de viajar, tudo o que tu podes fazer na tua casa, a forma como podes estar contigo próprio e as vivências que tens com os teus, deram-me vontade de voltar…Voltar a casa". Precisavas de te distanciar novamente depois de teres visto como estava a rua, perguntamos. "Senti um distanciamento natural. Não para com as pessoas, mas mais um distanciamento do mundo. Porque o tempo que estive em casa fez-me estar fora da minha cabeça."

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Foto: Getty image

Na nova coleção há almofadas que parecem ter-se transformado em sacos ou mantas que se tornaram camisolas. Como uma lição aprendida durante a pandemia, a mensagem que fica depois do desfile parece dizer-nos para vivermos plenamente a nossa bolha. Será esta a única maneira de encarar a atualidade? Alexandra ouve-nos atentamente e responde de forma rápida, o seu discurso ainda tem o ritmo pragmático de quem acabou de apresentar uma coleção a um público exigente.  "Isto acima de tudo é tu não teres preconceitos ao trazeres o teu universo contigo. Sinto que isto não está para esbanjamentos, e não está para massificar nada, e no mundo de hoje há recursos que se estouram mesmo quando estão guerras a acontecer. Tens de filtrar o que é importante para ti, o que que te diz alguma coisa ou te faz criar história na tua cabeça e que te faz sentir único. Acima de tudo espero que haja essa consciência."

Foto: Ugo Camera

Horas antes do desfile começar, a Praça Duomo em Milão acolheu um gigantesco protesto contra a invasão russa da Ucrânia. As paredes da cidade contêm sempre um número alucinante de graffiti, e nas 48 horas que ali estivemos, as mensagens de apelo à paz no mundo foram-se multiplicando nos desenhos de rua. Os convidados de alguns desfiles começaram também a transportar inscrições consigo: "Fechem o céu. Não à guerra".

Foto: Ugo Camera

Lisboa é casa e cidade de aceitação

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Pedimos a Alexandra Moura para se lembrar da adolescência, altura da vida em que o seu conforto foi agitado por uma mudança, quando deixou Lisboa e foi com a mãe viver para a Figueira da Foz. Na cidade do norte, Alexandra sofreu um estranho bullying. "Eu na altura não tinha noção do que quer que fosse, sentia que era diferente das outras pessoas e muitas fizeram-me acreditar que eu era diferente no mau sentido. Depois comecei a perceber que tudo aquilo fazia parte de mim e pensei ‘ok eu sou mesmo assim, tenho de aguentar’. Fui-me afirmando, e o que mais me ajudou foi deixar a Figueira e voltar novamente para Lisboa."

Foto: Ugo Camera

Quando regressou à capital, Alexandra começou a estudar artes e viveu uma revolução, "sentia que aquela era a única maneira que eu tinha de comunicar com o mundo". A aceitação da sua individualidade foi um elemento crucial para que o seu talento pudesse florescer. Na sua estética há sinais dessa procura, os castings dos seus desfiles são uma celebração da beleza na sua forma mais surpreendente. "Aqui em Itália o estereótipo das manequins é muito perfeito, e normalmente mandamos as manequins perfeitas embora, tens centenas iguais e para mim é importante procurar pessoas com personalidade e individualidade…Alguém que anda torto por exemplo….Hoje no desfile tivemos três narizes muito peculiares", o olhar de Alexandra ilumina-se ao dizer esta frase. 

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Dizemos-lhe que a sua procura de individualidade nos faz pensar nela como uma resistente a uma sistematização, onde a norma em geral vence. Alexandra acrescenta: "A história de nos deixarmos render ao sistema é triste. Passamos a ser só mais uns, a agir ou pensar de uma certa forma. A individualidade que procuro nas pessoas, é aquela que se calhar eu tive mais nova e que não foi aceite na altura. Para mim, é como se fossem diamantes que vou encontrando nos seres humanos. Sejam eles o que forem… Homo, trans, lésbicas, CIS… Desde que tenham essa força interior que traz a individualidade para o exterior, faz todo o sentido para mim e para a marca."

Foto: Kamba

A esperança da juventude 

Nos bastidores do desfile de Alexandra falamos com algumas das presenças marcantes que compõem o casting internacional da coleção Lar doce Lar. Um jovem senegalês de silhueta esguia e sorriso contagiante apresenta-se: " Chamo-me Gaye, sabem quem era o cantor Marvin Gaye? O meu nome é igual." Dança nos tempos livres, improvisou alguns movimentos de Voguing para nós e remata, "A casa é um sítio onde estás confortável, relaxado, sem pressão. A casa é onde eu posso ser eu próprio". 

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Ao seu lado o albanês Ily de 21 anos exprime a vontade de um regresso à vida a um ritmo normal, em 2019 fez os primeiros desfiles, foram interrompidos pelos lockdowns sucessivos, Ily concentrou-se então a acabar os estudos em Economia, " Para mim a ideia de casa é poder trabalhar e exprimir-me no ambiente certo. E a Moda é o sítio certo." 

A DJ canadiana Ohso é uma convidada especial, veio do outro lado do Atlântico, em Atlanta, EUA, organizava as festas Bounce Dat, "onde as raparigas podiam dançar de forma confortável e segura, ali nenhum rapaz te podia incomodar se não quisesses dançar com ele". 

Foto: Kamba

O designer português João Barriga ganhou em 2016 o concurso Sangue Novo na ModaLisboa, vive atualmente em Milão e desfila hoje num desafio novo, "é bom sair da minha zona de conforto",  no passado foi estagiário da equipa de Alexandra Moura. 

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Há algo de real que se transmite em presenças tão ecléticas, sentimos as silhuetas de Alexandra próximas da vida, perto de nós. Ela que adora ver a natureza das matérias- primas a acontecer, misturando referências urbanas com ideias românticas e clássicas, pede para seguirmos o nosso instinto. "Há beleza a acontecer no caos", em 2022 estas palavras ganham todo um outro sentido. 

A Máxima viajou a convite do Portugal Fashion.

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