Sofia Coppola: "[O meu pai] parecia-me sobre-humano quando eu era pequena"
O seu último filme volta a juntá-la a Bill Murray, o protagonista de O Amor é um Lugar Estranho. Desta vez, porém, ele representa uma figura paternal, cuja personalidade evoca alguns traços do pai da realizadora, Francis Ford Coppola.
Foto: Getty Images23 de outubro de 2020 às 07:00 Jonathan Dean
Sofia Coppola tinha cinco anos em 1977 quando o seu pai, Francis Ford— que acabara as filmagens insanas de Apocalypse Now — a entrevistou. "Sou um bocadinho peixinho e nado na água, e tenho dois irmãos que também são peixinhos", disse ela antes de contar em cantonês. Mais tarde, o pai pediu à filha que gravasse uma mensagem para si própria quando fosse grande. "Sou a Sofia", disse. "E quando crescer, quero ser professora ou enfermeira. Gosto de ser a Sofia, porque sei fazer muitas coisas divertidas."
Quarenta e três anos mais tarde, Coppola está a conversar comigo via Zoom a partir de Napa, na Califórnia, onde a sua família vive e onde ela cresceu. "Ó meu Deus", diz, lembrando-se da gravação. "Sim, o meu pai entrevistou-me quando eu era pequena." A família alargada juntou-se para o confinamento: o seu marido, Thomas Mars; as filhas Romy e Cosima; o irmão Roman, um dos "peixinhos", e os filhos deste também. "Tem corrido tudo bem", diz. "As nossas filhas são um pouco mais velhas, 10 e 13. Mas é difícil para uma adolescente ficar fechada em casa connosco." Sofia está de camisa e óculos, numa sala que parece estar à espera de ser decorada. Conversas animadas enchem a casa fora do alcance da câmara. É em Napa que Francis Ford fabrica o seu vinho, incluindo o Sofia Chardonnay. "Leveza no espírito. Elegância no carácter", diz o website.
Que mais diria Sofia Coppola a si própria quando fosse mais velha, se fosse hoje? "Hum, isso é complicado", diz. Tem 49 anos. "Espero que estejas a gostar?" Ela ri-se e acrescenta que se sente uma felizarda por criar filmes que deem qualquer coisa a ganhar às pessoas. Não é como ensinar ou ser enfermeira, mas fazer filmes é uma coisa divertida que ela sabe, claramente, fazer.
"Sim", diz, acenando com a cabeça. "Acho que ainda sinto o mesmo que a minha essência de cinco anos." Ela cresceu de uma maneira estranha. O seu pai, vencedor de vários Óscares, também filmou o seu nascimento. "Não vejo isso há imenso tempo", diz Sofia, agora também galardoada com um Óscar.
Para o seu novo filme,On the Rocks, Sofia virou, de certa forma, a câmara para o pai Coppola, e pediu a Bill Murray que o interpretasse. Como habitualmente, ela escreve e dirige a história de Laura (Rashida Jones) e do seu pai, Felix (Murray), que espia o marido de Laura, Dean (Marlon Wayans), quando Laura suspeita que Felix poderá andar a traí-la. O filme é parte ‘maluquices de um casal estranho’, parte ‘olhar comovente sobre aquela altura complicada em que se tem filhos e os sonhos são têm de ser reajustados’. "E se descobrirmos que ele está, simplesmente, ocupado?", pergunta Laura, enquanto espia Dean com Felix. "E estarei eu com o cio?"
Laura é o alter ego de Sofia. Elas até são parecidas. Dean viaja muito e isso deixa-a preocupada.O marido de Sofia também viaja muito, uma vez que é o vocalista dos Phoenix, uma banda indie pop francesa com fama internacional. "Não", diz Sofia, quando lhe pergunto o óbvio. "A relação deles não é baseada na minha. Nunca fiquei paranóica nem o espiei." Ela soube de uma história parecida com a contada no filme através de uma amiga, embora a influência exercida por Francis Ford seja muito real.
"Achei que adoraria ver a história de um pai e uma filha", diz. "Porque, como é óbvio, tenho muitas memórias e frases do meu pai na cabeça e essa relação foi muito importante para mim." Felix é inventado, mas tem elementos do meu pai. Ele parecia-me sobre-humano quando eu era pequena. Felix é um playboy internacional, por isso é uma mistura do meu pai e dos amigos do meu pai. Além disso, o meu sogro também é uma personagem muito divertida. Tenho uma série de figuras dessa geração na minha vida."
As conversas entre pai e filha são francas. Fazem lembrar como Curb Your Enthusiasm, mas com alma. "As mulheres são mais bonitas entre os 35 e os 39 anos", diz Felix. "Ainda me faltam muitos meses", responde Laura. Por acaso, isto reflete o humor subvalorizado de Sofia Coppola. "As pessoas acham que eu não sou divertida", diz. "Pensam em mim como uma pessoa séria e a filha do criador do Padrinho. O meu humor é subtil." Noutra ocasião, Laura pergunta a Felix se um homem pode ficar satisfeito com uma só mulher e a resposta é tudo menos tranquilizadora.
"Eu queria fazer algo sobre homens e mulheres e gerações diferentes, porque as coisas mudaram muito", diz Sofia. "Houve um grande salto no que diz respeito aos papéis das mulheres." Em termos de quê? "Bem, na nossa cultura tem havido discussões sobre a maneira como os homens falam sobre as mulheres e como se relacionam com elas. Não preciso de dizer mais nada. Você sabe o que quero dizer."
Presumo que esteja a referir-se ao movimento Me Too."Nos últimos anos, tem havido uma grande conversa sobre o que é e não é apropriado e eu quis que Laura falasse com Felix sobre isso. Há um grande fosso entre os homens da geração do meu pai e a nossa geração. Há já algum tempo que andava a pensar nisso."
Este é o seu filme mais pessoal dos últimos anos. É o máximo que nos aproximámos da essência de Sofia Coppola desde O Amor é um Lugar Estranho. A escolha de Murray, que reavivou a sua carreira com aquele filme, é pura coincidência, mas aquele progresso de Sofia foi basicamente sobre a sua vida na altura. Insegura sobre o seu casamento, à procura de uma ligação no bar de um hotel no estrangeiro, Scarlett Johansson era o seu alter ego mais jovem.
Aquele filme, disse Sofia, foi um "projeto pessoal e auto satisfatório" – e aquela exposição assustou-a. Se estava novamente assustada? "Sim, mas isso acontece sempre que pomos alguma coisa cá fora. Revela as nossas vulnerabilidades."
Se o primeiro filme de Sofia Coppola, As Virgens Suicidas, foi feito porque, nas suas palavras, ela queria escrever para raparigas adolescentes, a quem se destina On the Rocks? "Fiz algo que estava na minha mente e das minhas amigas. Parece aborrecido fazer um filme sobre a vida na meia idade e não é nada de glamoroso, mas espero que signifique alguma coisa para as mulheres que estão a atravessar aquilo que eu tinha em mente."
Mais especificamente, Sofia refere-se aos anos anteriores ao nascimento dos filhos. E ela transmite muito bem todos os pormenores triviais em On the Rocks. Há conversas junto à porta da escola com pais que não conhecemos, mas fingimos achar interessantes. Vemos imensas imagens de Jones a empurrar um carrinho em Nova Iorque que parecem as fotografias tiradas pelos paparazzi de Sofia Coppola a fazer o mesmo. Há uma cena magnífica no México em que Jones está com um vestido amarelo em frente a uma parede cor-de-rosa, trazendo-nos à memória Frida Kahlo. No entanto, Sofia continua a ser a realizadora de cinema que mais fielmente capta o ambiente de Nighthawks, de Edward Hopper no seu trabalho — com toda a sua maravilha silenciosa.
Um dos grandes momentos do filme é quando Laura vai ao escritório de Dean. Laura é apresentada como mulher de Dean e sente-se uma certa estranheza no ar. Será porque está toda a gente está a fazer sexo com o marido dela ou simplesmente porque são mais novas do que Laura?
"Há uma altura", diz Sofia Coppola, "quando temos filhos pequenos e estamos a trabalhar em que pensamos: ‘Quem és tu?’ Perdemo-nos no meio da confusão e depois encontramos o nosso caminho. Não me sinto assim agora, mas houve uma altura em que tive de resolver as coisas. Sendo argumentista, costumava ficar acordada a noite toda, mas quando temos filhos, isso já não é possível. Um argumentista precisa de horas para sonhar acordado. De repente, é ‘tens a babysitter durante duas horas — sê criativa!’ Foi uma mudança radical."
É esse o papel de Sofia Coppola. Ela escreve sobre pessoas descontentes com a vida, mas não de uma forma grandiosamente social ou política. Na verdade, quando lhe pergunto sobre a falta de reconhecimento das realizadoras (mulheres) da parte da Academia, ela diz que não tem uma resposta quando me dar e decide não abordar o assunto. A maioria das outras realizadoras com quem falei faz o contrário. Talvez o facto de ter nascido no mundo do cinema lhe permita ignorar a questão e concentrar-se nos pormenores e é nesses pormenores que os seus filmes ganham vida.
Até o tristemente menosprezado Marie Antoinette, protagonizado por Kirsten Dunst, se enquadra no padrão – realça a personagem em vez da história e consegue fazer uma análise tão aprofundada da rainha com tantos matizes como The Crown.
Esse foi o filme punk da sua carreira– sobre juventude e rebelião.On the Rocks, por outro lado, é sobre o fim desse abandono. "Parece mesmo aborrecido!" diz Sofia, rindo-se, ao descrever o seu próprio filme. Ela é uma boa companhia. Amável, calma, atenciosa. Mas não é aborrecida. Quanto muito, é factual. É o ritmo da vida. Sofia Coppola não se deixa abater – é simplesmente rigorosa.
Perto do final de On the Rocks, Felix, com a sua vida intensamente internacional, olha para Laura, que passa a maior parte do tempo em casa e diz: "Tu tens a tua própria aventura". É bonito. Ela estava preocupada, mas ele diz-lhe para não estar. A tua vida é ótima: aproveita. Suponho que seja isso que precisamos de aprender – talvez Sofia mais do que todos nós. "Para mim", diz ela, "não é tanto uma questão de crescer, mas de ela encontrar o seu papel para além daquela personagem gigantesca que é o seu pai. E descobrir o seu papel na sua própria vida."
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