Charlotte Gainsbourg: a musa do rebelde-chique parisiense
A filha de Jane Birkin e Serge Gainsbourg construiu, em nome próprio, um legado no mundo do cinema, música e moda. No Dicionário de Estilo, exploramos a vida e arte do ícone francês.
Quem alguma vez poderá esquecer o estado lastimável em que Jane mantinha a sua Birkin? Está aqui um ponto de interrogação porque a gramática a isso obriga, mas isto é uma pergunta retórica cuja resposta é: ninguém. Aquilo era, na verdade, mais placard político do que, propriamente, uma mala. Tinha autocolantes (sim, sim, colados na mala), coisas penduradas, tipo contas tibetanas, porta-chaves, amuletos, fitinhas e bizarrias do género. E, à medida que as preocupações de Jane iam mudando, também o aspeto da mala mudava, qual quadro de cortiça de uma ativista. E foi preciso Jane morrer para que, finalmente, lhe conseguissem arrancar a (pobre) Birkin das suas mãos frias e rígidas, incapazes de arrancar as películas protetoras a mais autocolantes – na verdade, não, a atriz e cantora já a tinha despachado em meados da década de 90.
Uma pessoa menos invejosa diria que Jane usava a sua Birkin não como um acessório de moda ou como símbolo do luxo, mas como um statement político – uma escolha absolutamente válida e até louvável. Só que esta jornalista não é essa pessoa. E se o leitor também não for, ficará feliz por saber, não só, que a famosa Birkin vai a leilão, mas também, e mais importante ainda, que conseguiram tirar-lhe os autocolantes e penduricalhos todos – ou quase, já lá vamos.
A mala que vai a leilão é a original, a primeira de todas – sim, porque Jane teve mais do que uma e deu a todas o mesmo tratamento. De acordo com a Sotheby’s, a leiloeira que organiza o leilão, a característica mais distintiva desta mala é a alça de ombro, que nunca foi incluída na versão comercial – presumivelmente, a Jane fazia mais falta ter as mãos livres do que ao resto da comunidade feminina. Na década de 90, explica ainda a Sotheby’s, a Hermès fez um versão com alça de pôr e tirar, mas esta é a única mala com uma alça fixa. Ou seja, é, na verdade, um protótipo. Até o tamanho é único. “Enquanto as primeiras malas Birkin produzidas pela Hermès foram lançadas nos tamanhos 40 e 35, a Birkin original de Jane era uma combinação única dos dois. Tinha a largura e a altura de uma Birkin 35, mas a profundidade de uma Birkin 40, o que lhe conferia uma silhueta verdadeiramente singular”, pode ler-se no comunicado da leiloeira.
A Birkin original de Jane tinha ferragens em latão dourado, um detalhe que foi substituído por ferragens douradas com banho de ouro quando a Birkin foi oficialmente lançada. Com o tempo, a Hermès alargou a gama de acabamentos das ferragens, passando a incluir opções em paládio, ouro rosa e ruténio. A mala tem as iniciais de Jane – “J.B.” – gravadas na aba da frente, e mantém o seu estado gasto, decorrente dos nove anos em que a atriz a usou – em 1994 doou-a a um leilão de caridade para que pudesse ser vendida em favor de uma organização de solidariedade francesa para doentes de SIDA – e vem, inclusivamente, com o corta-unhas que a própria usava e que tinha pendurado numa corrente no interior da mala (o penduricalho que perdura).
Em entrevista à CBS em 2018, Jane Birkin, que morreu em 2023, contou a história da criação desta mala icónica: “A determinada altura, dei por mim ao lado de um senhor muito educado e, como de costume, tinha a minha agenda cheia de papéis e caiu tudo no chão. Apanhei-a e ele disse: ‘Essa agenda devia ter bolsos.’ E eu respondi: ‘Que se há de fazer? A Hermès não a faz com bolsos.’ Ao que ele respondeu: ‘Eu sou a Hermès.’”
Sucede que o interlocutor de Jane era Jean-Louis Dumas, presidente da Hermès, e esta conversa foi o ponto de partida para ela mencionar a falta de uma mala prática com espaço – “maior do que a Kelly, mas não tão grande quanto a minha mala de viagem” – o que originou o esboço improvisado, que acabaria por inspirar a criação da Birkin. Um mês depois, Jane recebeu um telefonema dizendo que já podia deslocar-se à loja para ver a mala. Precisamente esta mala, cujo leilão terá lugar em Paris, na sessão Fashion Icons da Sotheby’s, que decorre entre os dias 26 de junho e 10 de julho.
E, no entanto, Jane sempre teve uma relação de amor-ódio com a mala – e com as outras quatro que a Hermès lhe deu. De acordo com o jornal britânico The Guardian, chamava-lhe, frequentemente, “a maldita mala Birkin” e queixava-se do seu peso – talvez se não a atafulhasse… – e do facto de ser “snob”. Uns anos depois, chegou mesmo a pedir à marca que desse outro nome ao modelo em pele de crocodilo, preocupada com o tratamento dado aos animais usados para a produzir.
Não obstante, espera-se que o valor de venda da Birkin original atinja os seis dígitos. De resto, a última vez que a mala foi vendida foi no ano 2000, por um valor que a pessoa que a comprou e que a vai vender agora – Catherine Benier, uma colecionadora de objetos de luxo – prefere não revelar.