Rita Brütt: "A questão do #MeToo não existir em Portugal é ridícula. No meu meio não se fala sobre isso."
Lisboeta de gema, atriz de mão cheia, feminista, mãe, bailarina, Rita Brütt sentou-se connosco à conversa para uma entrevista sobre carreira, igualdade de género, experiências em palco e saber envelhecer.
Foto: Joanna Correia26 de maio de 2022 às 07:00 Rita Silva Avelar
Rita Brütt chega bem-disposta ao pequeno-almoço: é notório que é prática, está habituada a ser ágil, é mãe há cinco anos, e trabalha há tantos mais. Pulsa-lhe no ritmo de andar a energia de alguém que não sabe estar quieta, sabemos, assim que a vemos. Aos 39 anos, diz que se sente precisamente com esta idade, e está tudo bem. Rita nasceu e cresceu em Lisboa, começou a dançar com 9 anos, e foi logo à primeira vez que pisou um palco que sentiu que lá pertencia. Entrou à terceira vez no Conservatório, mas quando lá chegou o Teatro já a tinha conquistado, até porque fez um curso na ACT durante 15 meses e frequentou o Teatro de Carnide. Falamos a propósito da peça Vida de Artistas, dos Artistas Unidos, de Noël Coward, com (ainda) encenação de Jorge Silva Melo, a última peça desta figura central do Teatro e das Artes em Portugal. Rita Brütt, no papel de Gilda, leva a peça às costas no Teatro São Luiz. Antes de começarmos o pequeno-almoço e a conversa, há quem indague: "é a menina das novelas?" Em 2011, Rita integrou o elenco de Anjo Meu, em 2014 foi Raquel de Jardins Proibidos, da TVI, e a última personagem em novela foi em A Única Mulher, na pele da temida inspetora Laura. Pelo meio, nunca parou de fazer teatro, uma paixão que se lhe lê na voz.
A última encenação de Jorge Silva Melo, Vida de Artistas, traz-nos a esta conversa. Foi uma vertigem, acompanhar o fim de vida de um mestre e erguer esta peça?
Sim, foi desafiante, não foi um trabalho normal, tínhamos um encenador muito frágil à nossa frente. Foi a minha quinta peça com os Artistas Unidos, e o Jorge Silva Melo era um mestre. Prefiro mil vezes ter estado presente no seu último trabalho do que não [ter assistido a tudo]. Começámos a ensaiar em janeiro, e estivemos três meses a vê-lo desaparecer. Nós sabíamos que ele estava muito doente, mas não tanto, achámos que estava a fazer fisioterapia e que depois iria para casa. O grupo era muito fixe, e eram pessoas muito amigas do Jorge. Ele até a dormir dizia coisas acertadas. Às vezes adormecia no ensaio, nós continuávamos, ele acordava e dizia qualquer coisa muito certeira sobre aquilo que tínhamos acabado de fazer ou dizer. A vida dele era o trabalho. E ele preparou tudo para fazer com que a companhia pudesse continuar. Mas apesar de ele ter feito tudo, não há certeza absoluta de que o Estado, de que o Governo, de que a cultura, de que o meio, queiram que eles [companhia] continuem.
O Jorge Silva Melo foi co-fundador do Teatro da Cornucópia, em 1973, com Luís Miguel Cintra, e fundador dos Artistas Unidos, em 1995, que dirigiu até à morte. Foi um homem que deixou um legado direto nos artistas? Sentes que te moldou?
Fez parte de uma geração de encenadores, as grandes figuras do Teatro em Portugal que ainda estão vivas. Nos anos 70, foram eles que mudaram a forma de fazer teatro em Portugal, deixando-o ao nível de qualquer teatro europeu. Ele viajou e trouxe. Nos anos 90 fez um hub no Bairro Alto, que era A Capital, num edifício devoluto, uma ideia que trouxe de Berlim. Era uma performance numa sala, um espetáculo noutra, se fosse hoje toda a gente achava cool, seria em Marvila ou no Beato e todos iam ver. Acabaram com aquilo… O Jorge tinha uma visão extraordinária de futuro. Ele tanto produzia como organizava exposições para artistas plásticos, realizava filmes, lia tudo o que saía sobre teatro contemporâneo.
Trabalhaste com o Jorge antes e depois de seres mãe. A maternidade muda tudo, também na profissão?
Foi a primeira pessoa que me deu trabalho depois de ser mãe. A minha filha mamou e ensaiou ao meu colo nos Artistas Unidos, em 2017. Não tinha onde a pôr e ela tinha apenas meses. Qualquer mulher que trabalhe e que seja mãe é desafiada. Trabalha-se como for possível e quando é possível. Eu preservo muito a minha vida de Rita, independentemente de ser mãe. Prezo muito a minha independência, o meu trabalho, a minha carreira, mas tenho de dividir tudo com uma responsabilidade que eu escolhi que é ser mãe de uma pessoa que não pediu para nascer, precisa de mim, da qual sou referência e porto seguro.
Foto: Joanna Correia
É um desafio de recolocação no mundo? Uma prova à identidade?
Quando se é mãe, não se sabe ser mãe, quando nasce um bebé e se nasce como mãe ganha-se um novo papel e uma nova função, e é tudo muito absorvente. Há uma grande transformação física e psicológica. No momento em que tens um recém-nascido nos braços que se alimenta do teu corpo, é uma transformação brutal. Sim, é preciso aprender a recolocarmo-nos no mundo, saber o nosso espaço e dividi-lo com aquela pessoa. Como é que te reencontras… e descobres coisas novas sobre ti. Há um perigo muito grande de as pessoas se esquecerem de si próprias: pais e mães. Houve uma altura em que eu queria estar com a minha filha e depois quando comecei a querer voltar ao trabalho demorei a organizar-me.
Do palco, ao cinema, à televisão. O que te levou a querer ser atriz?
No momento em que eu pisei um palco, houve qualquer coisa que aconteceu. Eu até era bastante indisciplinada nas aulas de ballet, mas quando fui fazer o espetáculo final do ano parecia que tinha acontecido alguma coisa. Senti uma espécie de expansão do meu corpo, do meu eu, para uma coisa que não sabia o que era, mas que era muito emocionante. Passei a gostar, era uma coisa fácil, era boa. A base era o ballet, mas o que acontecia ali era outra coisa.
Foi uma transformação em cima do palco, que me acontecia a mim em ligação com o público. Essa foi a primeira experiência. Até aos 17 anos estive no ballet e na dança contemporânea, e fiz a Escola Secundária em Letras, com vertente em Comunicação. Quando vi os prazos das provas do Conservatório, falhei as datas. Experimentei fazer teatro em Carnide, durante um ano sabático, e ao mesmo tempo trabalhava. Acabei por entrar na ACT, que tinha o privilégio de ter pessoas da área, dos realizadores aos atores, nomes como o João Canijo, o António Pedro Vasconcelos, até a Isabelle Huppert. Havia um acesso ao meio artístico muito bom.
Estás quase sempre em projetos simultâneos. Qual foi o papel que mais exigiu emocionalmente de ti?
Eu tive uma grande responsabilidade nesta última peça, ainda não tinha tido um papel de tamanha responsabilidade. Eu nunca tinha tido um papel tão grande num teatro tão importante. Eram 2 horas em cena, e eu só não entrava numa cena. O espetáculo que eu fiz antes desse foi o Romeu e Julieta, que foi um papel exigente, pelo Teatro do Bairro. Foram 2 anos de ensaios, depois a covid-19 interrompeu, foi um caos. Só agora é que estivemos em cena. Esse exigiu muito de mim, emocionalmente, Shakespeare é muito difícil, a Julieta vive tudo intensamente. E porque estávamos sempre a ser interrompidos. Chorámos todos muito.
Foto: Joanna Correia
Esse arcaboiço emocional, onde se vai buscar?
Para lidar com o fim do Jorge, a responsabilidade de estrear um espetáculo que não estava a ser bem ensaiado, nem com um encenador presente, foi preciso gerar muita resistência emocional. Houve a ausência de um guia. A estreia não estava a ser adiada, o tempo estava a passar, e nós continuávamos, todos os dias, prontos para que acontecesse. Em três meses tivemos 11 dias de direção. Eu não sabia se ia ser capaz, mas ao mesmo tempo eu não me dei a hipótese de duvidar. O Jorge conseguiu trabalhar até morrer e eu é que ia interromper isso? Ele sabia que nós íamos conseguir. Ninguém faz teatro se não for apaixonado por isto, sobretudo em Portugal. Por esta vertigem: tudo pode acontecer e nós não largamos a missão. Isto para dizer que a Julieta me deu um grande arcaboiço – de técnica, de método – para fazer 1h40 de texto da Gilda em Vida de Artistas. Ao mesmo tempo, estava a fazer uma digressão de Perfeitos Desconhecidos com a Ana Guiomar e o Filipe Vargas.
Foto: Joanna Correia
Como vês a tua passagem pelas novelas?
PUB
Eu estreei-me no Conta-me Como Foi, em 2007. Aquelas pessoas, aquela família, durante 3 anos - foi um grande privilégio. Não há assim tantas coisas em televisão feitas com tanto cuidado, foi uma grande escola. Depois fiz de antagonista em Anjo Meu. É engraçado – estou a pensar nisto pela primeira vez – ao mesmo tempo que fiz essa novela fiz mais duas peças de teatro. Fiz tudo mal, estava muito cansada por estar a fazer tudo ao mesmo tempo (risos).
Eram muitos papéis…
Eu tive um episódio de stress, que mais tarde descobri com um neurologista o que era. A minha boca ficou dormente, eu comecei a dizer coisas sem sentido, e tinha o braço cheio de formigueiro. Foi uma enxaqueca com aura, só tive isso duas vezes na vida, e das duas vezes estava a fazer novelas e teatro ao mesmo tempo. Eram papéis de muita responsabilidade. Estava a fazer um espetáculo no Teatro Nacional.
Foto: Joanna Correia
Era o Águas Profundas + Terminal de Aeroporto, Teatro Nacional São João, no Porto?
Sim, com a Maria João Luís, o Pedro Almendra, o Albano Jerónimo, a Olinda Favas, a Iris Cayatte e o António Durães. Eles faziam uma parte do espectáculo. Depois havia um intervalo e um monólogo meu, em que eu subia numa plataforma transparente e me despia no fim. Foi o meu maior voo em teatro.
Quando as pessoas se metem contigo, de que personagens se lembram, em televisão?
Lembram-se do Conta-Me Como Foi e do papel da inspetora Laura, n'A Única Mulher. Fiquei grávida durante esse papel. Foi muito divertido, era super leve, era uma personagem fácil. Lembro-me de ter de dar voz de prisão ao Bruno Cabrerizo, e estar a tentar perceber como é que fazia isso…
PUB
Foto: Rita Brütt
Em personagens mais leves, seguras-te em quê?
Quando uma personagem não tem história, seguramo-nos a coisas muito específicas. Pensar: do que é que esta cena precisa para ser credível? Aquela personagem era uma inspetora, magra, de sapatos de salto alto, o que não me ajudava a ter aquela postura má. Tu trabalhas com o que te dão. Um ator não trabalha sozinho a personagem, a maquilhagem também a constrói, o guarda-roupa também… Tudo contribui. Tu é que tens de colar as peças e fazer com que aquilo funcione.
Os processos de construção de personagem são sempre diferentes?
PUB
Não podemos nunca fechar nada. Quando o texto chega, é ler toda a informação que se tem sobre aquela personagem antes de ela existir fisicamente. Os guionistas dão-nos muita informação: o que é que os outros dizem da personagem, como falam dela, o que faz, o que diz, qual é o conflito dela e para que é que ela serve no todo. Quando se vai fazê-la, tem de se responder ao que os outros também estão a propor. Quanto mais longe fores nisso, mais interessante é.
Foto: Joanna Correia
Os tempos da televisão e do cinema, e os do teatro, em que diferem?
A televisão obriga-te a ser uma ginasta. É preciso ser-se rápida a decorar o texto, a tomar decisões, a fazer, e a passar à frente se for mau. Porque a seguir é que é a oportunidade de fazer melhor. No cinema, faz-se oito vezes até ficar perfeito, se for preciso, mas por isso mesmo é preciso gerir energia. À primeira muito raramente fica feito. Quanto mais delicada for a exploração, melhor. Tem de ser sempre a verdade, tem de ser sempre ao milímetro. No teatro é repetir até à exaustão - repetir, repetir, repetir. Quando se chega a um plateau de televisão a dinâmica está estabelecida, no teatro a mesma coisa. É preciso é saber os códigos, a quem pedes ajuda, quem está lá contigo. Em televisão está-se um pouco sozinho.
PUB
Foi difícil, para ti, encontrar essas dinâmicas?
É uma aprendizagem e vai-se fazendo. Ninguém chega a um serviço a saber. Sabe-se a nossa parte, e tem-se mais não sei quantas camadas a acrescentar. Já me aconteceu escrever texto para novela. Hoje em dia sei que posso ocupar o meu lugar calmamente. É bom ter um sítio, parar de questionar se temos lugar ali, se somos boas o suficiente, é bom chegar a um sítio e só fazer. Já me tinham dito que esta idade chegava (risos).
Sentes-te bem com a tua idade? É um issue, em Portugal, a idade na representação?
Claro que é, sobretudo para as mulheres. A Joana Santos foi mãe da Joana Ribeiro – estamos a brincar? Esta idade que eu tenho é maravilhosa porque estou nesse sítio de segurança, fisicamente sinto-me bem, tenho energia. Já fui mãe, já sei do que é que o meu corpo é capaz – foi e voltou a um sítio. Estou em paz com a minha idade, com o meu aspeto, faço exercício, faço face ioga! (risos). Ponho os meus cremes. Tenho rugas, marcas de acne, sou imperfeita e estou em paz. Tenho uma cicatriz no braço, a cicatriz da cesariana. Mas eu sei que as pessoas olham para mim de uma maneira diferente de como olhavam há 5 ou 10 anos. Eu sinto a expetativa de ser suposto eu permanecer para sempre jovem. Para mim isso é um grande disparate. Se eu fosse um sex symbol, daquelas mulheres que são reconhecidas pela sua beleza, se calhar seria mais difícil envelhecer. Nunca me achei a pessoa mais bonita da sala, para mim é mais importante que eu possa ser relevante de outra maneira.
PUB
Foto: Joanna Correia
As gerações mais novas têm um problema com esse envelhecer? A tua geração é ainda de aceitação?
Eu conheço imensa gente cheia de botox, de filtros (…). É bom envelhecer bem por dentro, também. Toda a gente tem inseguranças, eu também as tenho, também precisei de ajuda em terapia, de ter um espelho à frente, para olhar para mim, perceber o que podia trabalhar, para onde podia ir. Antes de metermos uma agulha na cara devíamos ir pedir ajuda. Mas há muitas questões relacionadas com a beleza das mulheres, Portugal ainda tem um longo caminho pela frente. A questão do #MeToo não existir em Portugal é ridículo. No meu meio não se fala sobre isso. É totalmente tabu porque ninguém sabe quem é que é amigo de quem e quem é que vai contar. Há coisas que toda a gente sabe, naturalmente, mas que nunca foram muito longe.
Sentiste isso na pele?
PUB
Eu tive vários realizadores que me puseram a mão. Para me darem uma indicação punham-me a mão, primeiro, e algumas vezes na perna. "Mandem vir as pernas da Rita Brütt!" – isto é desrespeito puro. É ofensivo, machista. É como se te tratassem como um objeto. Um homem que é teu superior hierárquico põe-te a mão na perna para te explicar alguma coisa? Pode pôr a mão no ombro. É muito diferente de por a mão na perna. Um realizador que não me conhecia, pôs-me a mão sobre os ombros, eu nem sequer sabia quem ele era. O quê – por estar ali uma atriz, uma pessoa ou uma mulher assume-se que ele pode fazer isso? Ele não me conhecia de lado nenhum. Em Cinema, houve um diretor de arte que me atirou para cima da cama e pôs-se em cima de mim, "na brincadeira". Eu estava a trabalhar, era um papel em que fazia de prostituta. Eu era uma miúda. A questão é de revolta, perceber que ninguém me ia defender. O realizador defendeu-me, e eu disse-lhe que não queria ver mais aquela pessoa à frente. Mais tarde, a pessoa em questão ainda me escreveu três páginas a justificar porque é que se tinha comportado assim, sem nunca pedir desculpa. É a única pessoa com quem não vou trabalhar se se cruzar comigo num plateau. No nosso meio, mulheres, corpos trans, todas as pessoas que não são homens brancos... há muito caminho por fazer. Vivemos num país muito racista e machista. É preciso mais representatividade.