Recordar Maria João Abreu. "Viver em pleno é estar no palco. Quando não há a gargalhada, o silêncio e o aplauso, sente-se um vazio"
Em 2004, a propósito da estreia de uma peça de teatro, Leonor Xavier entrevistou Maria João Abreu. Falaram sobre os desafios da profissão, igualdade de género no teatro, e os sonhos da atriz, que nesse ano tinha acabado de completar 40 anos. Recordamos a entrevista.
Quando fala, logo que vê porque é actriz. Sem esforço nem artifícios, sem efeitos nem representação, a voz sai-lhe com clareza colocada, o ritmo das palavras está certo, o corpo tem uma agilidade expressiva, acompanhando-a no que diz. Tem a popularidade de quem já representou para variadas plateias em palcos de revista, e de quem faz muitas personagens na televisão. O aplauso de quem a tem assistido no teatro, em comédia ou drama. O agrado pelas figuras que criou no cinema. Os vinte anos a par do actor José Raposo, seu marido e parceiro em arte, são quase outros tantos da carreira iniciada com o musical Annie, em 1983. Dois filhos rapazes, de 12 e 19 anos, são razão maior da sua vida. Dirigida por João Lourenço, Filipe La Féria, Jorge Silva Melo, José Carretas, João Mota, Fernando Lopes, João Mário Grilo, sente-se realizada nas disciplinas da representação. Na peça A Rainha do Ferro Velho, em cartaz no Teatro Politeama, Maria João Abreu acrescenta um passo importante aos que têm firmado a sua personalidade de actriz.
O papel de "Billy Down" é um bom exercício para uma actriz?

Até ao momento, talvez seja um dos grandes trabalhos da minha carreira. A personagem de "Billy Down" é uma mulher muito rica de personalidade, tem vários registos. Ela evolui ao longo da peça, muda a voz, o comportamento, a postura.
É difícil conviver com a instabilidade?
Nem sempre. Vou organizando as coisas de casa, tenho tido a ajuda dos meus pais e dos pais do Zé, uma empregada. Esta profissão não é nada organizada, nunca sabemos o que vai acontecer no dia a dia. Nunca posso marcar nada, um jantar, uma ida a um médico. Vou tentando equilibrar uma ansiedade que se vai criando com o passar dos anos. Tento administrar a família, há fases difíceis em que mal vejo os meus filhos, durante meses via-os a dormir. Logo que chego a casa vou sempre ter com eles à cama, beijo-os, e às vezes choro. Sinto-lhes a falta, devia poder estar mais com eles. Viver em pleno é estar no palco. Quando não há a gargalhada, o silêncio e o aplauso, sente-se um vazio que, associado à instabilidade, pode criar tristezas, depressões.

Sempre com o seu marido, e muitas vezes a contracenar com ele, não há o risco de perder a sua personalidade?
Acho que não. Há tendência para dizer "nós" desde que fundámos a nossa produtora, mas pensamos muitas vezes de maneiras diferentes. Para já, nós, actores temos uma abertura diferente pelas várias vidas que vivemos. Ser actor é viver várias vidas, partilhá-las, isso enriquece-nos. Quando estamos juntos, muitas horas que vivemos não são um tempo real. São um tempo imaginário. Apesar de não termos trabalhado sempre juntos, há cinco ou seis anos tivemos alguma notoriedade como casal porque as pessoas nos viram a fazer o mesmo trabalho na televisão.
Existe igualdade entre mulheres e homens no teatro?

É uma profissão igualitária, mas as mulheres, além de tudo o que fazem no teatro, têm de acumular funções. Elas são mães, donas de casa, têm o acompanhamento escolar dos filhos, as reuniões nas escolas, os pediatras. Os homens actores, em geral, são mais desligados.
Como foi o seu começo?
Conta a minha mãe que desde miúda, aos 6 anos, eu gostava de enfiar os sapatos dela, a roupa, punha baton, inventava textos. Tínhamos um grande terraço, onde eu virava um grande alguidar ao contrário, e assim fazia um palco. Fui fazer ballet com a Margarida de Abreu, aos dez anos. E tive a sorte de ter desde o 4º até ao 10º ano dois professores de Português fantásticos, que me incutiram o gosto pelo teatro. Na aula de Português representávamos Gil Vicente, ofereci-me logo para fazer uma das personagens. Estudei no Pedro de Santarém e no D. Pedro V. O Prof. Alves ainda me vai ver ao teatro, gosta muito, fica todo contente. Em miúda, adorava a época áurea do cinema português, gostava da Laura Alves, da Teresa Gomes. E adorava os musicais com Fred Astaire, Ginger Rogers, Cyd Charisse, Shirley Mac Lane. Admirava como cantam, dançam, representam. Até que um amigo meu, que viu um anúncio no "Sete", me disse: "inscreve-te numa audição para o Annie." Lá fui e fiquei, foi o Armando Cortês que me fez o teste. Tinha que dizer um texto da peça, cantar uma canção e fazer uma coreografia. Tinha 19 anos, ia para Agronomia na Escola Agrícola da Paiã. Fiz a audição, fui escolhida e abandonei tudo. O processo foi irreversível. Os meus pais sempre me apoiaram no ballet, nos concursos de dança. Quando decidi, depois da Annie, que queria ser actriz, a decisão coincidia com ter conhecido o Zé e resolvermos que íamos casar. "Eu vou ser actriz e vou casar," disse aos meus pais. Hoje entendo, que sou mãe e tenho um filho de 19 anos, que seja assustador saber assim de duas decisões rápidas e decisivas. Foi difícil para eles. Mas hoje tudo está ultrapassado. Tudo ficou em bem. Nessa altura ainda pensei ir para o Conservatório, mas casei e fiquei logo grávida, foi complicado. Lá está, a gestão da família está acima de tudo.

O Conservatório fez falta?
Por uma questão de curriculum de formação teatral, acho que sim. Mas para um actor que não fez o curso de teatro, trabalhar com grandes actores é um grande conservatório. Aprendi muito com o Armando Cortês, ele falava muito nos tempos de representação de comédia, da respiração. O Henrique Santana, conheci-o aos 23 anos, já no Parque Mayer, dentro da revista à portuguesa, foi o encenador que mais me dirigiu. A revista tem uma escola muito própria, é a maneira de atirar as graças, é o saber fazer o ataque depois da gargalhada do público. Também aprendi muito com a Maria Helena Matos, íamos muito a casa dela, conversávamos, foi uma pessoa importante na minha formação de cultura de teatro.
Pode dizer-se que pertence à última geração do teatro de revista?

O teatro de revista foi a minha escola e deu-me uma preparação para fazer todos os géneros. A revista foi desaparecendo pouco a pouco, o que a denegriu foi a falta e qualidade dos textos e a falta de suporte de elenco. Muitos acham que é um teatro menor, quando grandes actores já foram ao teatro de revista e não o conseguiram fazer. Em Portugal acho que é o mais completo. Num outro tempo, o encenador António Pedro dizia que a coisa mais parecida com o teatro em Portugal é o teatro de revista. Tem sketches de revista, quadros de comédia, quadros dramáticos. Desde que haja um bom texto, eu vou continuar a insistir no teatro de revista. Mas enquanto actriz, quero fazer de tudo.
É mais fácil ser actriz de comédia ou actriz dramática?
A comédia é mais difícil. Fazer chorar qualquer pessoa que se cruze é fácil, basta contar-lhe uma situação triste. Mas contar o que faça rir é difícil. Escrever comédia deve ser mesmo muito difícil.

Cinema, teatro, televisão, o que gosta mais de fazer?
Gosto imenso de fazer cinema, mas do que mais gosto é de teatro. É a base de qualquer actor. Em televisão já fiz coisas de que gostei e outras de que gostei menos, até por necessidade. Gostei do Médico de Família, está ao nível de qualquer trabalho de teatro que eu tivesse feito. Tento pôr o mesmo amor empenho, entrega, em tudo. Nos vários géneros de teatro muda o registo da nossa voz, em televisão o tom é muito mais naturalista. Há os microfones, tal como no cinema. O teatro é mais violento, porque não há meios técnicos que ajudem. Nos musicais usamos micros de lapela, o teatro é como trabalhar sem rede. O actor é posto à prova de cada vez, o público está presente, não se pode parar, nunca se pode repetir. Quando nos dá um branco gastamos o dobro das energias, aconteceu-me numa altura em que tinha que dizer um texto em verso. Estive com um esgotamento por excesso de trabalho, fazia televisão e teatro ao mesmo tempo.
Como é a sua relação com os encenadores que a dirigem?

Gosto da transparência, gosto de os perceber, há encenadores que sabem o que querem. Gosto que um encenador me leve a fazer aquilo que eu achava impossível. Aconteceu-me com o João Lourenço e o La Féria dizer-lhes: "Não consigo, não consigo," e eles ganharem a causa. O Filipe pode marcar uma cena, vê-la no dia seguinte e marcá-la de outra maneira. Eu gosto disso. Acho que é a procura do perfeito. Às vezes somos insaciáveis, há que trabalhar, trabalhar, trabalhar, para atingir a perfeição Sou insegura, não acredito em mim. Os outros acreditam em mim mais do que eu, acho que não valho nada porque tenho medo de os desiludir. Depois chego lá. Na vida sou muito rápida. Ando sempre para a frente, e daí às vezes cometer erros. Por não pensar um bocadinho mais.
É uma profissão dura?
É um trabalho de muitas horas, doze em média por dia. E de mais tempo ainda, na fase dos ensaios. Decoro facilmente, acho que para um actor, decorar não é problemático. O maior problema é representar o que se decorou. Como se torna credível? Em todas as personagens que faço, o mais importante é parecerem verdade. É as pessoas verem a personagem e não o actor. Com uma peça em cena, estou no teatro uma hora e meia, duas horas antes. Há sempre muitas coisas a fazer antes de entrar no palco. Nesta peça, tenho de preparar o cabelo, fazer a maquilhagem, o aquecimento de voz. A minha personagem tem um registo com muitas variações de voz, é preciso preparar o diafragma para trabalhar, tal como os bailarinos têm de aquecer os músculos para dançar. Durante o dia, tenho aulas de canto com a Professora Cristina de Castro, fisioterapia para tratar das costas, massagens para tratar o corpo. Com a alimentação tenho cuidado, não tendo. Obrigo-me a muita disciplina, não posso jantar antes do espectáculo. Tenho emagrecido a fazer a peça, no palco bebo um chá de gengibre e um litro e meio de água. A ceia é a refeição do dia que me sabe melhor, sobretudo partilhada com amigos.

Que tempo sobra para si?
Gosto de andar a pé, sozinha. Gosto de ouvir música, o que seria da vida sem a música? Em casa, canto, e no carro. A arte maior é o canto. Posso cantar como actriz num musical, mas a arte maior é poder representar a música. Oiço ópera, gosto de ler, quando não tenho textos para decorar, adoro Jorge Amado.
Existe igualdade entre actrizes e actores?

É uma profissão igualitária, mas as mulheres, além de tudo o que fazem no teatro, têm de acumular funções. Elas são mães, donas de casa, têm acompanhamento escolar dos filhos, as reuniões nas escolas, os pediatras. Os homens actores, em geral, são mais desligados.
Como convive com a popularidade?
As pessoas são muito carinhosas, nunca passei por situações desagradáveis.
Que esperanças a animam, que preocupações tem?
Tive uma juventude muito feliz, sou alegre. Depois dos 40 anos tenho uma consciência maior. Estou mais calma, mais serena.
Hoje, deitam-me abaixo as crises deste mundo, as doenças, os problemas das pessoas que nos rodeiam, que amamos e conhecemos. Preocupa-me as famílias terem dívidas, viverem acima do que podem. Fico de rastos quando sei que alguém está mal, tento ajudar as pessoas. Se todos se ajudassem, vivíamos num mundo melhor, a indiferença é um dos nossos males. A minha esperança é poder continuar a lutar por este projecto de vida, com a família acima de tudo e logo depois a carreira. Também tenho esperança de que as mentalidades mudem com uma educação melhor.
*Artigo originalmente publicado em outubro de 2004, na edição 193 da Máxima.
