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Quando o Natal gera ansiedade, drama e conflitos

Duas psicoterapeutas explicam à Máxima porque é que para algumas famílias o Natal representa convívio, em ambiente de grande animação, e para outras, o desfecho é trágico e dominado por discussões.

'A Joia da Família' (2005)
'A Joia da Família' (2005) Foto: IMDB
13 de dezembro de 2022 Rita Silva Avelar

Para algumas famílias, o Natal pode ser a época mais querida, desejada e ansiada do ano, para outras, não passa de um "frete" que se faz de 24 para 25 de dezembro. E, ainda, para outras, é palco de dramas familiares, encontros indesejados, cenários tão caóticos que podiam estar à altura da série Succession ou do filme de Natal A Joia da Família (2005), com Diane Keaton e Sarah Jessica Parker. É sobre estas últimas – as famílias dramáticas – que questionamos as psicólogas e psicoterapeutas Marta Martins Leite, das Clínicas Leite, e Marta Calado, da Clínica da Mente, em Lisboa.

Como evitar o caos? O que fazer aos membros da família mais misóginos? Como lidar com a perda no Natal? O que é que distingue os portugueses nesta quadra? "O Natal é uma época de reuniões em família, de estar perto dos nossos, de quem amamos. Contudo, a família que revemos e com quem convivemos nesta quadra natalícia nem sempre é aquela com a qual lidamos o ano inteiro. São pessoas que, tal como nós, têm os seus feitios, as suas personalidades e nós simplesmente não estamos habituados às suas dinâmicas, que muito provavelmente vão colidir com as nossas", começa por explicar Marta Martins Leite, psicoterapeuta.

Marta Calado acredita que isto acontece precisamente porque "há tempo e espaço, ao contrário do que acontece na azáfama do dia a dia, para o libertar de um cocktail de emoções que podem fazer desarmar ódios e conflitos antigos, sentimentos de injustiça familiar, temas delicados como a infertilidade ou a homossexualidade, assuntos mal resolvidos como heranças ou dívidas, ou simplesmente o confronto direto de personalidades antagónicas que apenas se reúnem à mesa e se toleram "pelas crianças" ou "por ser Natal". Nesse sentido, instala-se um ambiente tenso em que as pessoas não se sentem plenamente à vontade, medem as palavras e as atitudes, estão em modo de alerta e na defensiva porque temem algum tipo de ataque daquele familiar que está demasiado próximo, não por escolha, mas por imposição natalícia", explica. Mas não só, é preciso ter atenção aos excessos. "Para o fervilhar dessas emoções, contribuem também a alteração habitual das nossas rotinas de descanso e de alimentação, assim como os excessos que cometemos, seja por aquilo que comemos, seja por aquilo que bebemos, e são responsáveis por nos sentirmos mais irritados psicologicamente ou alterados na nossa disposição física habitual."

Missão número 1. Como lidar com familiares tóxicos?

Tal como encontramos pessoas com personalidades tóxicas em contexto laboral ou em círculos de amizade, a família não é exceção. "Desde muito cedo que nos foram ensinando que a família é o nosso bem mais precioso e assim fomos aprendendo a ser gratos por ela. Muitas pessoas sacrificam a sua saúde física e emocional em relacionamentos abusivos com familiares porque foram ensinadas a aceitar tudo o que a família impõe. Aconteça o que acontecer. No entanto, em famílias em que não existe qualquer tipo de diálogo ou em que existem muitas discussões, violência verbal ou física, maus tratos e outros tipos de abuso, é fundamental que se proteja ou até mesmo que se afaste para bem da sua saúde física e da sua própria sanidade mental", afirma Marta Martins Leite.

Marta Martins Leite, das Clínicas Leite
Marta Martins Leite, das Clínicas Leite Foto: DR

Marta Calado reforça que não é fácil quebrar este tipo de relações em contexto familiar. "É bem mais fácil pôr um ponto final à relação com um colega do que fazê-lo com os sogros, tios ou os irmãos, não é verdade? Corremos o risco de sacrificar a saúde física e emocional em relacionamentos abusivos com familiares porque fomos ensinados a aceitar e respeitar a família", afirma. "Problemas emocionais e psicológicos como ansiedade, pânico, fobias, depressão, dependência emocional, sentimentos de inferioridade e baixa autoestima costumam ser os primeiros a manifestar-se. Nas famílias tóxicas os problemas não são temporários e acumulam-se com o passar do tempo, são relações muito disfuncionais e nocivas."

Nesta época festiva de convivência e proximidade, é preciso estar mais alerta, acredita a profissional. "Podemos ensaiar um travão mental de estratégias para que o familiar tóxico não nos influencie mais negativamente, como antes: sempre que se defrontar com o negativismo e a crítica, mude de assunto, sorria e diga algo positivo e agradável; aproxime-se de pessoas nutritivas, este é o tipo de pessoas através das quais se sente apoiado, protegido e nutrido emocionalmente; aprenda a detetar as mensagens destrutivas e questione a sua veracidade, não acredite em tudo o que lhe dizem; estabeleça limites, diga não e defenda os seus direitos com cordialidade, de forma clara e direta; não se culpe, não tem de se justificar ou dar demasiadas explicações por querer proteger-se e defender-se das interferências nocivas. Temos a capacidade de rejeitar a toxicidade dos sentimentos, palavras e ações erradas das pessoas com as quais interagimos, mesmo que a pessoa tóxica não possa mudar (ou lidar com as emoções e a situação de forma diferente), nós podemos!"

Inês Costa Monteiro, fotógrafa, aproveitou esta altura para lançar o projeto
Inês Costa Monteiro, fotógrafa, aproveitou esta altura para lançar o projeto "memories,, Natal Rima com (falta de) Saúde Mental" Foto: Inês Costa Monteiro

Missão número 2. Como aligeirar um Natal que se adivinha tenso?

Marta Calado lembra que há elementos da família pacificadores e com capacidade de apaziguar, que podem aligeirar os ambientes e mediar situações. "Normalmente, em quase todas as famílias existem aqueles familiares que devem ser incumbidos da tarefa de se tornarem facilitadores de "quebra-gelo" desse ambiente tenso que se instala. O anfitrião, o divertido, o descontraído, por exemplo, são os convidados considerados elementos intermediários entre as partes porque normalmente se responsabilizam por tentar uni-las, através de jogos, brincadeiras, tomam a iniciativa de iniciar temas de conversa específicos para desanuviar o momento ou convidar outro familiar a tornar-se mais ativo", afirma a psicóloga. "De forma preventiva, podemos acautelar a disposição em que os familiares se vão sentar na mesa de refeições, afastando propositadamente aqueles que não estabelecem uma relação harmoniosa entre si. (...). De um modo geral, quanto melhor definirmos as tarefas e planearmos como queremos que decorra o evento, existem menos probabilidades para o desencadeamento de fricções e presentes envenenados que podem estragar a festa."

Marta Calado, da Clínica da Mente, em Lisboa
Marta Calado, da Clínica da Mente, em Lisboa Foto: DR

Por sua vez, Marta Martins Leite recomenda três coisas: ler, rir e dormir bem durante estes dias. "O riso alivia a sensação de stress e tensão, provocando o relaxamento dos músculos, enquanto leva maior nível de oxigénio ao corpo", enquanto a "leitura provoca o equilíbrio entre o cérebro e a mente, pois o corpo exige maior concentração da área da visão para interpretar o que está a ser lido e consequentemente vai relaxar a tensão da maioria dos músculos."

Missão número 3. Como lidar com o membro da família que é misógino, racista, ou tem posições radicais?

"Para quem nos insulta ou nos falta ao respeito, a melhor resposta é e será sempre, o silêncio. De nada adianta discutir com quem nada tem para nos acrescentar. Sorrimos, pensamos em coisas positivas, mudamos de divisão se o ambiente estiver demasiado tenso, vamos ter com alguém mais leve e falamos de outro tema, porque em breve o Natal já acabou e não teremos mesmo de lidar com este tipo de pessoas que nada nos acrescentam", aconselha Marta Martins Leite.

Marta Calado não defende particularemente o silêncio, mas sim a preparação. "Nestas circunstâncias, convém prepararmo-nos antecipadamente, treinar as nossas respostas e comportamentos, definindo para nós próprios, para os nossos filhos, pais ou cônjuges, os limites das nossas reações, no que diz respeito à interação com aquele familiar específico que não aceita, nem compreende o que é uma boa regulação de opiniões divergentes. Isto porque, se decidirmos ceder a uma provocação, alimentar uma discussão acendida por ele, ou simplesmente procurar mostrar o nosso ponto de vista, na visão de um chantagista emocional que distorce a verdade, estamos apenas dispostos a iniciar uma divergência e, nesse sentido, a dar a essa figura familiar a energia tóxica de que ela se alimenta. Nunca devemos deixar de dizer que algo nos está a incomodar por medo da reação dos outros."

"memories,, é a história visual da fotógrafa Inês Costa Monteiro sobre o desconforto emocional por muitos vivido na época natalícia. Foto: Inês Costa Monteiro

Como são e se comportam os portugueses no Natal?

Para Marta Calado, o Natal dos portugueses "representa alegria e tempo de partilha junto daqueles que mais gostamos, em ambientes e lugares que nos trazem boas emoções e recordações. Envolve rituais partilhados entre as gerações, que nos ajudam a reconhecer e a agradecer as coisas boas que temos na nossa vida. A cultura da nossa sociedade valoriza a tradição e os costumes associados à época natalícia, desde as iguarias à mesa, até à missa do galo, os valores do dar e do receber presentes no sapatinho, hábitos comuns e outros especificados em cada núcleo familiar. O espírito natalício torna-nos mais solidários e vulneráveis, por motivo das nossas crenças e das nossas memórias internas, e pela pressão social que impõem os eventos em família" acrescenta. "É inevitável estarmos mais sensíveis a tudo o que nos rodeia e vivenciarmos tudo com mais intensidade. Assim, simultaneamente, o Natal pode fazer-nos sentir sobrecarregados. Para muitas pessoas, o frenesim de compras, filas, despesas e cozinhados é uma fonte adicional de ansiedade, stress e angústia emocional e financeira. Não nos devemos esquecer que mais do que presentes desembrulhados, as histórias de Natal fazem-se de risos, abraços e histórias partilhadas."

Para a psicóloga Marta Martins Leite, "no Natal, e de um modo geral, os portugueses preocupam-se sobretudo com o local onde vão passar a noite de dia 24 de dezembro, com o orçamento que dispõem para os preparativos, com a escolha dos alimentos para a ceia de Natal, com a escolha e compra de presentes, quase sempre deixados para a última hora. Sendo que tudo isto é quase sempre vivido com alguma intensidade e stress associados. É por isso importante que se façam listas e que haja planeamento de tarefas, organizando assim de melhor forma o seu dia a dia e promovendo maior tranquilidade na sua vida."

"memories,, é a história visual da fotógrafa Inês Costa Monteiro sobre o desconforto emocional por muitos vivido na época natalícia. Foto: Inês Costa Monteiro

Há mais depressão sazonal no Natal, quando essa altura é marcada pela perda? Como lidar com o luto nesta época tão associada aos carinhos?

"Para quem teve uma perda significativa ou está em processo de luto, é inevitável que se torne um período extremamente penoso, em que se vai recordar de tudo o que o seu ente querido lhe trazia de melhor. É nestas alturas que podem vir ao de cima muitos sentimentos de tristeza, melancolia, desânimo e muita angústia. Lembre-se que a cada dia há um novo amanhecer, há sempre uma forma de honrar quem partiu. Crie lembranças positivas, reaja, crie novos caminhos, novas perspetivas, transforme sobretudo toda a sua dor em amor. Há sempre uma forma bonita de honrarmos aqueles que nos deixaram um vazio no coração", recomenda a psicóloga Marta Martins Leite.

"A quadra natalícia pode ser vivenciada com alegria ou com tristeza, tendo em conta as experiências e acontecimentos do nosso passado que nos fazem recordar e sentir emoções positivas ou negativas", diz Marta Calado. "De acrescer que, a pandemia de Covid-19, os lutos e as perdas pessoais, a guerra e a crise social e financeira, mudaram a conjuntura do Natal. Nesta ordem de ideias, é natural que algumas pessoas se sintam tristes, desiludidas, frustradas ou zangadas. É natural que isso aconteça se estamos preocupados com o nosso emprego e segurança financeira, se estamos preocupados com a saúde de familiares ou amigos, se estamos a viver um processo de luto. O Natal assim pode ser particularmente difícil. Podemos, e devemos, aceitar a realidade, falar e partilhar as nossas preocupações, agradecer pelas coisas boas que temos, e homenagear aqueles que já partiram, fortalecendo as memórias dos mais novos com lembranças em fotografia, vídeo ou cumprindo um ritual que esse ente querido apreciava."

Numa série de 10 auto-retratos, a narrativa percorre imagéticas, associadas ao estado de espírito do jantar de de dia 24 em casa de uma mãe, tia ou avó, da noite (para muitos) solitária
Numa série de 10 auto-retratos, a narrativa percorre imagéticas, associadas ao estado de espírito do jantar de de dia 24 em casa de uma mãe, tia ou avó, da noite (para muitos) solitária Foto: Inês Costa Monteiro

Uma questão de saúde mental

Dentro deste tema, a fotógrafa portuguesa Inês Costa Monteiro elaborou um ensaio fotográfico com 10 auto-retratos, que espelham não só os dramas familiares trazidos pelo Natal como a ansiedade, a solidão ou o medo. "Nem sempre há ceias
felizes, nem sempre estamos rodeados por uma família sem toxicidades. Nem todos são aquilo que realmente querem ser e nem todos querem que seja Natal porque com ele vem as memórias", escreve a fotógrafa. Veja o ensaio "memories,, Natal Rima com (falta de) Saúde Mental", aqui.

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