Não sei se é possível “acabar” com um amigo, mas às vezes é preciso deixá-lo ir

Sempre acreditei que quando se diz que se gosta de alguém, é amor que fica escrito no éter. Uma imagem que apesar de inspirar um estado gasoso, soa a registo cósmico e firme, com vontade de ser para sempre. A sério, como dantes se fazia, com juras de amor, pactos de sangue e duelos ao amanhecer. #sóquenão, como diria o hashtag, hoje estamos menos preocupados com os costumes e a ética. Para o bem, no primeiro caso, para o mal, no segundo. Se o amor, seja qual for, passa airoso por cima dos costumes, quando as partes assim o decidem, a ética quando falta, no amor como na vida, falta a verdade e deixa na boca o travo da dúvida e do abandono. Do que, se calhar, nunca foi.
Se o Natal é falar de amor, é falar de amizade também. A amizade é amor em versão universal e muito completa: pede, mas não exige, admira, oferece, mas não tem posse. O amor da amizade até tem alguns ciúmes, e faz beicinho, mas sobrevive a eles, a amizade é mais promíscua e mais livre. Apaixonamo-nos pelos amigos, flirtamos, namoramos, descobrimos o mundo por fora e por dentro, e juntos fazemos coisas proibidas e patetas e deliciosamente politicamente incorretas, passando dois ou mais advérbios de modo. Com os amigos podemos ser inteiros, como somos, com o avesso virado para fora.
O amor dos amigos tem essa condição magnífica da ética, mas exclui a moral. Refilamos uns com os outros, até fazemos uma crítica ou outra – sem crítica não avançamos, apesar dos tempos assépticos de hoje - o problema é o julgamento, mas a maioria de nós mistura tudo. Amar o outro é aceitar mesmo quando ele é parvo e despropositado, nós somos parvos e despropositados noutras coisas. O verdadeiro amigo observa o mundo connosco, crescemos juntos e trocamos de sapatos.
Os confinamentos da pandemia foram um sério teste à resiliência das relações. De todas. Das óbvias familiares, os casais nunca se tinham aturado tantas horas seguidas, mais filhos, animais domésticos, plantas, bricolage, tarefas domésticas, compras de supermercado e o medo do futuro. E nada do que pertencia permaneceu. Alguns de nós perderam os pontos cardeais, pessoas, trabalhos, cenários que nos definiram uma vida inteira, questionámos a própria identidade e o lugar no mundo. Ou a nossa perceção de ambos. A vulnerabilidade pode ser do melhor que nos acontece. E não acreditem quando vos disserem que não têm direito a queixar-se, não aceitem o paternalismo. Ainda que a queixa seja fácil, é uma forma de desabafo, um beiço ao amor-própio, a queixa é mimo. Se não pudermos ser crianças dos que amamos, seremos de quem?

A minha mãe sempre me disse que, à medida que envelhecemos, os amigos vão desaparecendo, por comodidade e desapego. "Porque não podemos ser amigos para sempre?", respondia-lhe. Depois percebi que também é preciso deixar os amigos seguir o seu caminho e aceitar que não estão that into you sem o levar muito a peito. Já perdi amigos para a emigração ou para mudanças de vida, o que se entende até certo ponto. Depois existem os amigos a quem deixas de servir socialmente, e descobre que, ops, afinal não eram bem aqueles amigos que pensavas. O amor ingénuo é o melhor, o mais puro, por isso é o que mais se desilude num mundo repleto de jogadores e de desistentes, onde o ghosting é prática comum e socialmente desculpável.
Às vezes é preciso deixar as pessoas ir, é capaz de ser a mais superior, porque desinteressada, forma de amor. Não esperar mais delas - não podemos pedir aos outros o que eles não são capazes de dar. Mas, como um guarda-roupa que precisa de ser arejado nas mudanças de estação, algumas épocas do ano são óptimas peneiras para deixar escoar os que menos nos merecem. Até para termos espaço para os novos. Na verdade, há tantos defeitos do amor de que a amizade padece, mas normalmente temos melhor ideia dela, tem melhor fama, por isso ficamos mais espantados. Nas melhores amizades, como em alguns amores, será que alguma vez nos fartamos? Será que algum dia morre? Alguns de nós amam mais do que os outros? Isso com certeza. Como alguns são mais inteligentes, perspicazes, humanos ou engraçados. Estas épocas de balanço e partilha como o Natal são profundas, convocam-nos, desafiam-nos, mas também nos atiram para a frente. Separarmo-nos de um grande amigo é tão difícil como separarmo-nos de um grande amor. Às vezes até custa mais. Deixar ir é, por isso, uma arte bem mais sofisticada do que a sedução. Fazer uma revisão dos nossos é uma ótima ideia para começar o ano em refresh. Sem nunca esquecer que o mais importante que nos acontece na vida são sempre os outros. E o pior também.

Mundo, Discussão, Crónica, Opinião, Amizade, Natal
Quando o Natal gera ansiedade, drama e conflitos
Duas psicoterapeutas explicam à Máxima porque é que para algumas famílias o Natal representa convívio, em ambiente de grande animação, e para outras, o desfecho é trágico e dominado por discussões.