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'Um miúdo criado sem limites tornar-se-á um miúdo problemático.'

Reza o provérbio que “quando Deus estava muito cansado, inventou as mães”. Significa que criar um filho não é tarefa fácil. Porém, nunca alguém disse que o seria. Numa época em que as exigências são enormes para as mães, como é que estamos a educar os nossos filhos? Estaremos a criar futuros adultos fortes e resilientes ou antes meninos mimados e pouco, ou nada, preparados para as adversidades da vida?

Sozinho em Casa (1990)
Sozinho em Casa (1990) Foto: D.R.
17 de setembro de 2019 às 07:00 Pureza Fleming

Duas amigas estão sentadas à mesa de um dos cafés mais trendy de Lisboa. É domingo e, a avaliar pela hora, aguardam pelos brunchs. Estão entusiasmadas. Aparentam não se ver há séculos e pelas palavras que disparam sucessivamente parecem ter conversa para a tarde toda. Na mesa ao lado, uma família constituída por um pai, uma mãe e uma menina com a idade a rondar os quatro ou cinco anos. Enquanto os progenitores saboreiam a tosta com ovos escalfados e pera abacate e debitam uma ou outra palavra em direção a um e a outro, a pequena (cujo nome não registei) resolve instalar-se, bem como aos seus brinquedos – uns bonecos pequenos do género Lego –, na mesa onde estão sentadas as duas amigas. Quando escrevo "instalar" é porque ela se instalou, realmente, na mesa das duas amigas e não se trata de uma força de expressão. A menina começa a falar com as duas amigas que, no início, até acham graça. Afinal, tão bonitinha e amorosa que ela é. Os brunchs chegam e também, nesse momento, deveriam chegar as gracinhas, conversinhas e brincadeirinhas da pequena, chamemos-lhe, por exemplo, Luísa. Os pais de "Luísa" continuam impávidos e serenos num diálogo que variava, ora entre si, ora entre a tosta de ovo escalfado e pera abacate. Chamar a atenção à pequena "Luísa" para que esta deixasse em paz as duas senhoras da mesa do lado é que nem pensar. A menina tem de ser livre de fazer o que bem lhe apetece e se isso inclui dar cabo do brunch de duas amigas que tiram o domingo para pôr a conversa em dia, então que assim seja. O brunch prosseguiu, com as duas amigas a lançar olhares furiosos, mas de soslaio, para os pais que continuaram sem reagir até ao final da refeição. A amorosa da "Luisa" conseguiu mesmo estragar o brunch daquelas amigas. Chocada com a situação que se desenrolava à minha frente – eu, que sou mãe, jamais permitiria que tal acontecesse –, questionava como estão a ser educadas as crianças de hoje. Como são educadas à base de paninhos quentes, "não vá o menino ficar traumatizado".

Veio-me à memória como não era assim no meu tempo. A educação era rígida e os pais não viviam na sombra deste tipo de medos e… da culpa. Sempre da culpa que hoje tanto consome os pais – e mais ainda as mães. "Em termos educacionais, passámos do oito para o 81. Hoje tudo lhes é [às crianças] permitido", esclarece Filomena Dominguez, psicóloga clínica. E continua: "Antigamente, as crianças eram educadas ou pelos pais ou pelos avós ou, mesmo, por empregadas domésticas ou internas. O normal era haver sempre alguém em casa. Havia um período mais longo e prolongado com as crianças em casa. Hoje estão o dia todo enfiadas nas escolas. Os pais saem de casa às oito horas da manhã com os filhos e chegam a casa às oito horas da noite. O tempo de qualidade é muito escasso. Passam muitas horas longe e o resultado é este a que se está a assistir."

Quero desviar a conversa com aquela psicóloga do tema da culpa feminina, mas ela apressa-se a asseverar-me de que não há volta a dar: se as coisas estão como estão, em termos das nossas "novas crianças", grande parte do problema é mesmo a culpa que a mulher carrega desde sempre - há uma questão cultural que relaciona culpa e mulher – e que, atualmente, se intensificou. Nos dias que correm, a mãe tem de ser boa em tudo o que faz – boa mãe, boa mulher, boa amiga, boa, boa não, pois como as coisas estão, excelente profissional –, magra, gira, esperta, inteligente e por aí fora. "O cargo tornou-se extremamente pesado física e emocionalmente para a mulher. E isto gera muita culpa. A mãe sofre imenso e o que acontece com esta culpa? "Resulta em compensação", esclarece aquela psicóloga. A acrescentar a este peso pesado, surge a preocupação de que também as crianças tenham uma infância de qualidade e, por infância de qualidade, leia-se: ser bons em tudo. Por isso as crianças têm escola, mas também têm um sem-número de atividades extracurriculares que, no fundo, também servem para preencher os horários em que os pais não estão em casa. O resultado são crianças também cansadas que depois são compensadas com o ‘podes fazer tudo o que quiseres e podes ter tudo o que quiseres’."

O equilíbrio perfeito entre o sim e o não

Educar dá trabalho. Lado a lado com a lei da compensação que assola os pais dos dias de hoje, surge a lei do facilitismo que casa na perfeição com a carga pesadíssima que é ser mãe, atualmente, enquanto se tem de ser tudo e mais alguma coisa além disso. O facilitismo não é propositado. Os pais estão cansados e, naturalmente, torna-se muito mais fácil deixar os meninos fazerem tudo o que quiserem do que entrar numa espécie de guerra com eles. "Dizer que sim a tudo é a parte mais negativa de todas, bem como dizer que não a tudo", confirma a psicóloga Filomena Dominguez. E mantém: "É necessário criar um bom equilíbrio com tudo. Ou seja, liberdade, sim, mas com responsabilidade. Com adolescentes tem de se fazer muitos ‘jogos’. Tem de haver uma espécie de negociação. O adolescente tem de perceber que participa no processo da sua educação. Sentir que lhe é imposto só irá gerar um clima negativo. As fronteiras têm de ser bem delineadas." Ressalva que esta lei da negociação dirige-se apenas a filhos adolescentes e nunca a crianças: "Um miúdo criado sem limites tornar-se-á, inevitavelmente, um miúdo problemático." Acrescento a inevitável certeza de que uma criança habituada a ter e a fazer tudo o que quer, nunca irá conhecer o conceito da resiliência, ou seja, da capacidade que tem o ser humano para enfrentar as dificuldades, os problemas e as adversidades da vida, superá-los e transformá-los. A psicóloga confirma: "Na educação que damos aos nossos filhos é importante que lhes ensinemos a desenvolverem a resiliência através de condutas, do controlo de pensamentos e de atitudes que eles possam aprender com o exemplo e a orientação."

Numa entrevista ao site educare.pt, Eduardo Sá, psicanalista e autor de vários livros dedicados à psicologia infantil, traz à superfície a dificuldade que os pais sentem, hoje, em lidar com a autoridade, em dizer que não aos filhos, mesmo quando acreditam, convictamente, que é um ‘não’. E deslinda: "A primeira função de uma criança é dar problemas aos pais porque isso obriga-os [aos pais] a crescer, a tornarem-se sábios." Além da regra do Sim e do Não, outras opiniões surgem. Para a coach de família, a norte-americana Catherine Pearlman, a resposta dos pais para diversas situações deve ser a mesma: desviar o olhar. Pelo menos é isso que aquela autora reforça no livro Ignore It! How Selectively Looking the Other Way Can Decrease Behavioral Problems and Increase Parenting Satisfaction (edição de autor, 2017). A técnica, como defende o título, consiste em negar a atenção que a criança pede ao fazer birras ou ao portar-se mal. A questão é que, por mais simples que pareça, ignorar nem sempre é tarefa simples. Numa entrevista dada ao site Crescer, da Globo, aquela coach explica porquê: "Porque [os pais] são humanos. Quando alguém grita connosco, o mais natural é querer gritar de volta. Vai contra a nossa forma natural de reagir, por isso é o difícil. Além disso, mudámos o modo de ser pais e mães nas últimas décadas. As crianças brincavam mais sozinhas. Hoje, todas as atividades são programadas. E a expectativa é que os pais deem às crianças toda a atenção do mundo. Elas aprendem, então, a solicitar a tal dedicação. A pressão para os pais serem perfeitos e terem crianças exemplares também aumentou. Os pais sentem que precisam sempre de fazer alguma coisa para melhorar a educação dos filhos. Mas isso não está a funcionar." A principal vantagem para os pais, na opinião da especialista, é o alívio que sentem ao não reagir a cada uma das "centenas" de birras que uma criança normal faz todos os dias: "A batalha de forças cessa e a paternidade torna-se mais agradável. Quando filhos e pais brigam menos e se divertem mais, a relação ganha espaço para florescer." Isto, com um sim e um não bem balanceados –prometem os especialistas –, poderá fazer maravilhas na educação de futuros adultos seguros e resilientes. Também há sempre a hipótese de não se ter filhos. Contudo, tal como defende o ditado, "quem tem filhos tem cadilhos, quem não os tem, cadilhos tem". Fica, assim, ao seu critério.

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