O legado de António Variações, que hoje celebraria 75 anos
Visionário, inquietante e, acima de tudo, extraordinário. O cantor faria hoje 75 anos. Saiba mais sobre a sua vida na biografia, reeditada no ano passado

António Variações. Ainda hoje as suas canções são referências, as letras comovem, a música persiste e a imagem de um homem à frente do seu tempo não se apaga. No tempo breve da sua subida ao palco, venceu todos os obstáculos e, quando morreu, há quase 35 anos, foi chorado por todo o Portugal. Mas como entender o ser extraordinário que descia a Avenida da Liberdade com um chapéu colonial branco, a barba em bico, o queixo bem erguido e um papagaio de madeira em cores berrantes, empoleirado nos ombros? A sua biografia, agora reeditada, recorda-o até ao fim da memória.
A 7 de janeiro de 1983, António Variações, acompanhado da sua grande amiga, produtora e fotógrafa Teresa Couto Pinto, apresentou-se na Sociedade Nacional de Belas-Artes para o evento Depois do Modernismo, vestido com uma rede de capoeira sobre uma camisola de malha cinzenta e collants: "A rede, fui eu que lha moldei ao corpo, com fechaduras e dobradiças. Acrescentei um cinto de correntes e cosi-lhe, nos braços e nas pernas, fechaduras e dobradiças de portas. Foi a toilette mais espampanante que ele alguma vez usou", recorda Teresa, que ia "espampanantérrima" à la Nina Hagen. Leonel Moura*, um dos grandes promotores do evento, disse aos seus pares: "Este tipo não está inserido no nosso movimento, mas é muito mais avançado e radical do que toda esta gente que se diz muito avançada e muito de vanguarda." E acrescenta: "Em Portugal, não havia nada assim. O Variações era, realmente, o artista pós-moderno por excelência. Como o Frágil e o Bairro Alto, que só depois desta iniciativa souberam que tinham designação própria para o seu enquadramento específico." A noite inesquecível prolongou-se pela madrugada com os dois, António e Teresa, a cruzarem a cidade perante o espanto sem limites das pessoas perante aquele homem extraordinário, de barba exótica e olhos verdes, vestido de rede de galinheiro, acompanhado por uma mulher esguia, de cabeça rapada e saltos impossíveis: "Ele era muito desconcertante. Foi à televisão com sapatos de quarto e com um pijama de flanela com ursinhos. Outra vez, vestiu-se de ligaduras salpicadas de encarnado. Nada condizia com nada, embora tudo, finalmente, batesse certo." No mesmo ano, o artista integrou a lista dos mais mal vestidos, juntamente com Nicolau Breyner e Alberto João Jardim e reagiu com olímpico desdém: "Sabem lá eles o que é vestir." E concluiu: "O estilo sou eu!"

Meio provinciano, deslumbrado. Como entender este cosmopolita de poderosas raízes minhotas, "barbeiro e não cabeleireiro", com salão à Rua de São José, em Lisboa, cantor desde a mais remota infância que, em 1983, se estreia com o single Povo Que Lavas no Rio, de Amália? O sucesso imediato permite-lhe a gravação do LP Anjo da Guarda e é contratado para dezenas de espetáculos e inúmeros concertos de verão. Nunca se vira nada assim. A maneira como se veste, move e dança. O que canta e como canta. A sua forma física esplendorosa que despertava paixões intensas: rapazes e raparigas não se coibiam de lho dizer cara a cara. Com Anjo da Guarda nos tops de vendas e a agenda sobrecarregada de espetáculos, António prepara o próximo álbum, Dar e Receber, gravado entre 6 e 25 de fevereiro de 1984 com a dedicatória: "À minha Mãe que me sorriu ao nascer, ao meu Pai que tanto deu para receber tão pouco." Como recorda Ricardo Camacho: "Havia muita gente à procura de coisas novas e o António correspondia. Mas foi controverso. Desde o início até ao fim. Não creio que tenha procurado a controvérsia e também não creio que se tenha importado muito com isso. Ele limitava-se a ser ele."
Mas apesar da desvantagem de não ser músico, de não ler pautas e de não ter conhecimentos musicais com profundidade, conseguia comunicar exatamente o que desejava e acabou por trabalhar com os melhores músicos da altura, como os GNR e os Heróis do Mar, dois dos grupos mais importantes na época. Em fevereiro de 1984, António Variações entra em estúdio para gravar Dar e Receber, o seu segundo LP. Em maio, dá entrada no Hospital Pulido Valente, de onde passa para o Hospital da Cruz Vermelha. Nesse período emagrece quase 40 quilos, mas ainda colhe a grande alegria de ver a capa do último álbum e de ouvir, no radiozinho transístor da mesa de cabeceira do hospital, alguns dos seus temas e as notícias do aplauso unânime com que o disco é recebido. Depois, Portugal inteiro chorou a sua morte. Mas ele não desapareceu. Quando, em junho de 1984, António voltou à terra que o viu nascer, gente que ainda não era nascida trauteia as suas músicas e conhece as suas letras. Há ensaios e teses académicas sobre ele. Peças de teatro. Instalações. Recriações em sua memória. Relançamentos. Espetáculos. Programas de televisão. E muito mais ainda para vir. Um Ser assim nunca morre.

*Arquiteto e artista plástico que no final da década de 1990 passou a dedicar-se à inteligência artificial e à arte robótica, produzindo vários RobôsPintores e criando o Robotarium, um zoo para robôs, o primeiro deste tipo no mundo.

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Maria Filomena Mónica e Lídia Jorge são duas das autoras que estão de volta.
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