Leonor Teles, realizadora: “O cinema é um ato de resistência e tem que ser usado como tal.”
Há amor e uma premonição de racismo nas ruas de Lisboa filmadas por Leonor. “Baan” é o primeiro filme de ficção da realizadora portuguesa, belo e estranho, existe como um poema cinematográfico de várias leituras. Entrevista.
A sua longa-metragem é aguardada há muito. E as expectativas, Leonor Teles finta-as com movimento.
Essa razão é percetível quando nos encontramos com ela dias antes da estreia do seu filme Baan. Numa avenida de Lisboa agitada sentou-se numa mesa de café ao lado de uma ciclovia. Ouvem-se buzinas, ambulâncias, sinos de cobre e ao longe outras conversas nas mesas que nos rodeiam. Há um estranho calor que nos permite realizar a entrevista numa esplanada em fevereiro, enquanto anoitece. Leonor fala com as mãos e de olhos bem abertos. Toda ela é curiosidade. O mundo apaixonou-se pelo seu entusiamo quando descobriu Balada de um Batráquio (2016) filme curto antirracista e rebelde. Transformou Leonor num talento premiado com o Urso de Ouro da Berlinale. Seguiram-se outros projetos como Terra Franca, documentário que acompanhava um pescador na terra natal de Leonor, Vila Franca de Xira. Tratou depois o tema da gentrificação, drama que vivem as famílias nos grandes centros urbanos portugueses ao serem expulsas de suas casas – dramatizou a história da família do ator Vicente Gil em Cães que Ladram aos Pássaros (2019). Nessa altura, e em plena pandemia, passámos uma noite inesquecível a conversar em Lisboa com Leonor, dizia-nos que precisava de se ancorar à realidade para criar. Não a voltámos a perder de vista, ainda que se aventure muitas vezes pela Ásia sozinha.


Baan quer dizer casa em tailandês e segue a procura de amor de uma misteriosa rapariga que prefere ser chamada só por L. Trabalha num atelier de arquitetura e atravessa a cidade a tentar explicar uma atração que lhe levou o sono e a vontade de se levantar para viver. Lisboa é filmada como num filme de Wong Kar-Wai e muitas vezes Leonor leva a sua ação para as ruas de Bangkok, as cidades confundem-se no olhar do espectador. A sua personagem L. tenta também perder-se na agitação asiática para compreender de que é feito o mundo, afinal? Baan alimenta-se das experiências que inquietam os jovens adultos a viver no centro de Lisboa, cidade multicultural que atrai atualmente novos habitantes como se diamante em bruto se tratasse. Leonor ouve atentamente as nossas perguntas e nós repetimos, não a queremos perder de vista.
"Quando a cidade deixa de ser casa" é uma frase que aparece logo no trailer. O teu filme está cheio de slogans como "uma casa para morar". A casa de que tu falas no filme, é também um corpo, ou é uma casa física? É literalmente a gentrificação que tratavas no teu filme anterior, Cães que ladram aos pássaros (2020)?

É tudo isso. É sobretudo este sentimento de pertença, uma casa física, seja uma terra, ou uma pessoa, mas é qualquer coisa que nos faz sentir confortáveis. Acho que é muito mais uma procura emocional e essa procura pode estar associada a muitas coisas. Pode ser o encontro com uma pessoa.
Encontro ou vários desencontros?
Às vezes é fugir para voltar (risos).

Na primeira parte do filme, a cidade de Lisboa surge quase como um curativo, as ruas ajudam na procura de soluções. Há uma frase pronunciada por uma personagem que diz, "Ele teve de se ir embora e por isso descemos a Almirante Reis". É assim que vives Lisboa?
É. (risos) Descer a Almirante Reis para cima e para baixo desde sempre.


Para curar questões?
Desde que moro em Lisboa ando muito a pé, e como sempre morei no eixo da Almirante Reis, habitei muito esse espaço e foi sempre um lugar para libertar as poeiras.
E no caminho vais apanhando as conversas que ouves nas esquinas.

Há uma premonição de racismo na cidade que filmas. É um tema que abordas desde a tua primeira curta-metragem, Balada de um Batráquio. É uma convicção que vem com este questionamento de casa?
Claro, quando as pessoas emigram a casa delas passa a ser esta. Há muitas pessoas que estão aqui e que não têm possibilidade de voltar, e Lisboa é a casa delas. Obviamente que essa noção de multiculturalidade e racismo era importante até porque nós portugueses somos um povo que emigrou muito e continua a emigrar. Então [há] esta dualidade de discursos.
Isso vem-te como uma convicção? Sentes que é um tema que queres trabalhar?
É algo que eu vejo e que habita esta cidade. Desde sempre.
No filme a protagonista vai para a rua escrever slogans e frases de protesto nas paredes. Fazem graffitis na rua, isso lembrou-me o cinema da Nouvelle Vague. Havia uma ideia de clamar causas nos filmes, até com separadores escritos no ecrã. Vem daí a tua inspiração, desta ideia do cinema como um manifesto?
Eu acho que o cinema é um ato de resistência e tem que ser usado como tal. Se temos voz para isso temos de o fazer. Há este lado meio punk de quando conhecemos alguém que é ativista e nos puxa para esse mundo. Isso acontece com as personagens do meu filme. Quando estás a conhecer alguém, tens essa vontade de querer conquistar o mundo em conjunto com essa pessoa. Quando crescemos, há pessoas que nos mostram determinadas realidades e já não há como voltar atrás. No filme, a partir do momento em que a L. conhece a K. ela deixa de ver a cidade da mesma maneira.
Tu podes, realmente, viver nesta cidade e habitar o teu espaço e não te cruzar com as outras 1000 pessoas que existem por aí.

O lado punk que dizes ser necessário ao cinema, não é de certa forma esmagado pela pressão financeira que custa fazer um filme?
Se isso for assim, também não fazemos nada... (pausa). Mas sim, tudo é esmagado pela pressão do capitalismo. Obviamente que existe esse risco. Vivemos numa sociedade que é ultra capitalista, em que o objetivo é sempre o lucro e não as pessoas, a cultura, ou a solidariedade. (pausa)
Mas enquanto houver pessoas que acreditem em nós... E apesar de tudo, em Portugal, temos a sorte de ter o ICA que nos dá subsídios e onde temos liberdade para criar.
Tens tido sempre um discurso muito politizado, logo desde a tua primeira curta-metragem que foi muito mediatizada depois de teres ganho o Urso de Ouro em Berlim. Nessa experiência, sentes que os políticos ouvem os artistas?
Não. Acho que é muito giro estarem lá para a fotografia. Mas não me parece que estejam interessados em ouvir ninguém, e não são só os artistas.
Esse é um dos grandes problemas que temos no nosso país, existe uma décalage entre aquilo que é a vida real, a vida das pessoas e o que os políticos acham que é de facto a vida das pessoas. Há um desconhecimento... Se as pessoas não estão sempre a meter o dedo na ferida ou a ter ações mais violentas aquilo não lhes entra.
Aprendeste isso com a mediatização de Balada de um Batráquio?
Claro. Mas também não pode existir esta ingenuidade de que os filmes vão mudar o mundo. Se tivermos a sorte que pelo menos alguém se identifique com aquilo que vê ou que passe um bom bocado, o nosso trabalho já foi feito.
Filmas a tua atriz como um duplo. Isso fez-me pensar na autoficção.
(Leonor ri-se)
Era importante para ti encontrar alguém que pudesse funcionar como um duplo teu?
Sim, claro que sim. Eu ainda só sei falar de coisas que estão perto de mim. E era importante que na personagem existisse algo de pessoal e familiar para que conseguisse trabalhar esses temas e emoções de um ponto de vista cinematográfico.
Confiar nos atores pode ser um impasse? Ou quando os escolhes, confias completamente neles? Porque neste filme usas também a tua produtora como atriz secundária, é quase uma das protagonistas do filme. Este casting parece ter sido uma procura longa para ti - é importante confiar nos atores?
É super importante. Há um trabalho de preparação que é muito extenso. Há muitos ensaios, muitas conversas e muito diálogo. Há muito espaço para criar, espaço para tentativa e erro. É importante também confiar nas pessoas que vão carregar o filme às costas.
O que foste à procura na Ásia que filmas em Baan? Querias sair da tua zona de conforto, ou ias à procura das imagens de cineastas que adoras? Foste tentar curar algum desamor?
Tudo isso. Não sei. (pausa)
Eu vou dizer uma coisa um bocado horrível de se dizer, mas eu sinto-me muito confortável num lugar de estrangeira lá. Acho que há um lado que é tão distante de mim, tão diferente, tão desconhecido e tenho tantos estímulos. Parece que preciso disso também para continuar a filmar.
E obviamente que isso vem do cinema do Wong Kar-Wai ou do Hou Hsiao-Hsien, tudo advém daí.
Eu vou lá e aquilo para mim é estimulante e dá-me um boost estético de querer filmar lá. E, sobretudo, eu acho que as coisas não são assim tão distantes.

Falas das sociedades?
Falo das sociedades, falo das pessoas, falo dos sentimentos, falo das emoções. Todos nós sentimos. Sempre. Falta-nos é a curiosidade para nos querermos conhecer uns aos outros.
Tu entras em diálogo com os teus realizadores favoritos? No teu filme há uma sequência em referência à abertura do Millennium Mambo de Hou Hsiao-Hsien e referes também muito o 2046 de Wong Kar-Wai. Queres entrar em diálogo com as pessoas que admiras?
Esses filmes mudaram a minha maneira de ver o cinema. Com eles percebi que queria falar sobre as emoções. São filmes muito importantes para mim, com imagens muito marcantes que eu não quero que fiquem perdidas.
As vivências queer eram algo que querias absolutamente explorar quando pensavas nesta ideia de amor e desamor? Quais foram as tuas dificuldades, sabendo que existem tão poucas referências queer no cinema português? Em que muros embateste?
Olha, eu própria.
O teu pudor?
Talvez, também. Não sei. Eu tinha de falar sobre isto. Havia esta urgência em falar sobre este tema, e falar desta maneira. Temos poucas vivências [queer no cinema], certo, mas a mim não me fazia sentido estar a falar desta história de outro ponto de vista.
Aliás, no Baan não existem rótulos.
Sim, mas a ideia sempre foi essa... porque acredito que a sexualidade é uma coisa fluída, ou se não é, poderia ser e nós seríamos todos bastante mais livres nas nossas experiências.
Eu hoje se calhar apaixono-me por uma mulher, mas não quer dizer que daqui a um ano ou dois não possa apaixonar-me por um homem... Ou daqui a dez anos. Nós crescemos, e a sexualidade cresce connosco. Era importante que não tivéssemos de catalogar as pessoas com A, B ou C.
Eu acho mesmo que as coisas mudam e evoluem. Não tem de haver preconceitos em relação a isso.

A tua geração está mais perto dessa fluidez?
Não sei se a minha a minha geração é assim ainda tão aberta. A geração abaixo da minha começa a ter uma abertura muito maior. Porque, bom... (riso) Eu cresci em parte nos anos 90, vamos ter calma, na altura não havia referências a lésbicas ou gays no cinema. Havia o quê? A série L.Word (2004) e pouco mais. Aquilo foi um satélite na ficção. (pausa) Acho que ainda existe muito uma coisa... A maior parte dos criadores de cinema, em Portugal, são maioritariamente homens, brancos, héteros.
Portanto as histórias que interessam a esses criadores não são tanto de personagens queer, ou se calhar as personagens queer que representam têm sempre uma dose de exagero.
Neste meu filme, é uma experiência. E não quero dizer que todas as experiências sejam assim. (pausa)
Há uma coisa que tenho observado, muitos dos filmes sobre a problemática queer focam-se ou num coming out ou numa história de não-aceitação. O meu filme não é de todo sobre isso, é muito mais sobre um amor, uma atração, o desejo e não sobre o género.
Que relação tens tu com as cores? E como escolhes os figurinos da tua atriz por exemplo? Que dinâmicas te dá a estética?
A partir do momento em que se escolhe um figurino já se está a contar uma história também. As roupas ajudam o ator a construir a personagem, mas também contam a sua própria história. No filme, não é à toa que ela anda sempre com o seu casaco azul. Gosto muito de cor e não tenho medo da cor. As cores também transmitem muitas emoções.

Como vês um filme, tu Leonor... Como é a tua ida a uma sala de cinema? Que rituais tens?
(Ri-se). Tento sempre ir a pé e acontece-me muitas vezes, mesmo se for uma sessão à noite, quando o filme mexe comigo, eu tenho de voltar para casa a pé.
Não consigo entrar num carro ou no metro.
Preciso daquele momento para caminhar e pensar nas imagens do filme que acabei de ver.
Baan está em exibição nas salas de cinema.
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Ou para ver também na Filmin no quadro do Atlantida Film Festival online de 1 a 29 de fevereiro
