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Opinião. ‘Soares é fixe’, mas o filme é triste

Os soaristas rumaram ao CCB, em Lisboa, para assistir à estreia de ‘Soares é fixe’, o novo filme de Sérgio Graciano vagamente inspirado na noite eleitoral de 16 de fevereiro de 1986.

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‘Soares é fixe’, mas o filme é triste
23 de fevereiro de 2024 às 10:35 Cristina Santos Gomes

Na noite chuvosa do último dia 8 de fevereiro, alguns militantes socialistas, entre nomes conhecidos e desconhecidos, mas também curiosos e simpatizantes, reuniram-se no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, para assistir à estreia de Soares é Fixe. O filme de Sérgio Graciano pretende contar a história da noite eleitoral que consagrou Mário Soares como o primeiro civil a ser democraticamente eleito Presidente desde os tempos idos da Primeira República – mas o resultado fica muito aquém desse momento chave da democracia portuguesa.  

Na assistência, nomes como Manuel Alegre, António Costa, Maria Antónia Palla, Mário Centeno e Fernando Medina, tal como Pedro Nuno Santos, atual candidato a primeiro-ministro pelo Partido Socialista, quase levaram a que a antestreia de Soares é Fixe se confundisse com uma ação de campanha do partido fundado, entre outros, por Mário Soares e Maria Barroso.

Foto: Filipe Feio

No entanto, nem as figuras de proa do Partido Socialista, nem os familiares de Soares subiram ao palco nalgum momento da noite. Estranho, afinal Soares é Fixe é a primeira tentativa de trazer para o grande ecrã um dos acontecimentos mais marcantes da história do País e o biopic sobre aquele que é considerado um dos pais da democracia portuguesa.

Nesta primeira apresentação do filme que retrata um período da vida de Mário Soares, o realizador Sérgio Graciano refere que à mesma hora decorre um qualquer jogo do Benfica e agradece aos presentes terem optado por vir ao CCB descartando, por isso, a possibilidade de assistir ao encontro futebolístico. Esta referência desportiva, antes da exibição de um filme que pretende ser uma homenagem a Mário Soares, é estranha, já que era público o desinteresse que Soares tinha pelo futebol e pelo desporto em geral. A partir deste momento instala-se um burburinho de crítica que nos acompanhará até à saída da sala.

Foto: Filipe Feio

A cortina sobe e estamos a 16 de fevereiro de 1986… Para espanto da audiência descobrimos um Mário Soares deprimido, baixo e temerário que se desloca com desalento até à sua cabine de voto para exercer o seu direito cívico. Ou seja, o Mário Soares interpretado por Tonan Quito parece ser o oposto do que a generalidade dos portugueses, tanto partidários como opositores, têm como memória do ex-Presidente da República. Margarida Cardeal também peca por ser pouco credível na sua interpretação de Maria de Jesus Barroso, optando por criar uma personagem fraca e submissa, o oposto do que se conhece da personalidade vincada da antiga primeira-dama. Aliás, a falta de rigor para retratar tanto Maria Barroso como Mário Soares, num filme que, segundo a produção, se pretende histórico e educativo, tem um primeiro apogeu anedótico quando o espectador nota que a atriz escolhida para interpretar Maria Barroso é notoriamente mais alta do que o seu contracena masculino.

Foto: Filipe Feio

Em Snu, filme que também foi produzido pela Sky Dreams Entertainement, alguns dos locais da rodagem, como o famoso edifício das Água Livres, ajudam a tornam a experiência esteticamente apelativa. Por oposição, os cenários escolhidos para rodar Soares é Fixe são marcados pelo pastiche e pela artificialidade. Neste filme, a casa da família Soares no Campo Grande está decorada com flores de plástico, a sede do PS tem grafitis nas paredes e até o local de voto de Mário Soares e Maria Barroso, o icónico hall da reitoria da Universidade de Lisboa, foi trocado por um cenário desconhecido. Apenas a sede de campanha de Freitas do Amaral, o hotel Altis em Lisboa, unidade hoteleira que mais tarde passa a ser associada ao Partido Socialista, merece nota positiva. Mesmo a banda sonora escolhida por Graciano parece anunciar um crime e não uma eleição democrática. Sendo por isso uma música mais ajustada para um episódio de Poirot do que para uma longa metragem sobre um período positivo para a consolidação da democracia nacional.

Foto: Filipe Feio

Porém, mais grave do que a falta de credibilidade dos atores, que a banda-sonora desajustada ou que os cenários pirosos, é a ausência de uma narrativa coerente e à altura dos acontecimentos de 1986. O programa dos candidatos, a polarização da jovem democracia portuguesa, os momentos chave da eleição – como, quando, num volte-face inesperado, o PCP de Álvaro Cunhal resolve apoiar Soares na segunda-volta das eleições – não fazem parte da construção narrativa de Soares é Fixe. Mesmo o famoso episódio do ataque à comitiva de Soares na Marinha Grande, e que virou a campanha em seu favor, é abordado de uma forma breve e leviana.

Da efervescência da noite eleitoral que o filme pretende mostrar não fica nada. Não há banhos de multidão, não há emoção, nada parece motivar qualquer um dos candidatos. As personagens comportam-se como se tivessem acabado de conhecer um diagnóstico fatal e não como quem está às portas de conquistar o mais almejado cargo político da nossa República.

Foto: Filipe Feio

De facto, o filme de Graciano é uma oportunidade perdida de, pela primeira vez, trazer para o cinema um dos fundadores de um dos principais partidos portugueses e um dos capítulos mais importantes da consolidação do Portugal democrático.

Naquela noite cinzenta e chuvosa de fevereiro, mesmo quem não gosta de futebol, preferiria certamente ter optado por ver o Benfica derrotar o Vizela do que ter visto a derrota que Sérgio Graciano impõe a Soares quando retrata desta forma a noite do que foi provavelmente a sua maior conquista política, a sua eleição para a Presidência da República Portuguesa. Nesta longa metragem, que ao contrário da noite eleitoral de 1986 não ficará para a história, Graciano consegue deturpar aquilo que Soares teve de mais extraordinário e real, o optimismo e o facto de ser um lutador sem medo.

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