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Opinião. Então e os homens donos de casa?

Foto: DR
12 de abril de 2024 às 17:43 Paula Cosme Pinto

Senhores, ganhem vergonha. O que propõem é uma ofensa não só para as mulheres deste País, mas também para os homens. Pelo menos, para aqueles que não querem ser retratados como verdadeiros mentecaptos, que nem afetos conseguem dar aos seus filhos. Digo isto em resposta ao que foi noticiado na última edição do semanário Expresso: o Movimento de Ação Ética, cofundado há três anos por nomes da direita mais conservadora - António Bagão Félix, Paulo Otero, Pedro Afonso e Victor Gil -, coordenadores do livro Identidade e Família, apresentado por Pedro Passos Coelho -, pretende avançar com uma proposta de criação do estatuto legal e fiscal de "mulher dona de casa". Paulo Otero deixa claro: este estatuto não deverá contemplar os homens, porque "há coisas que só as mulheres podem fazer". Quais? "Há afetos que só a mãe pode dar, por mais presente que seja o pai", diz ele.

Ora bem, vamos lá analisar algumas das múltiplas grosserias aqui contempladas: queremos com isto dizer que os homens, cuja capacidade intelectual e de liderança fora de casa parece ser superior, não são capazes de cumprir funções como aspirar o chão, lavar a loiça, planear compras, acompanhar consultas médicas ou limpar rabos? Tarefas que, à partida, qualquer adulto funcional consegue fazer, ou aprender a fazer? Se os homens não são capazes de tarefas consideradas há séculos inferiores, fará sentido depositar neles a liderança das nossas empresas e do nosso País? Irónico, no mínimo. Depois, aquilo que me parece ainda mais grave nesta narrativa: os homens são progenitores e cuidadores de segunda categoria? Não estão aptos para os afetos? Estamos a falar de homens ou de gorilas? Sinceramente, eu, se fosse homem, sentir-me-ia insultado por tudo isto. 

Foto: Leya

Se queremos ser sérios na discussão do que aqui está em causa, falemos de estatuto de pessoas prestadoras de cuidados domésticos e familiares, um trabalho que já deveria ter sido reconhecido há muito tempo - e que teria tido um impacto gigante na liberdade individual, alavancada pela liberdade financeira, de milhões de mulheres que foram vaticinadas à submissão e à total dependência por nunca este seu papel ter sido reconhecido no passado. E escrevo propositadamente do passado, quando este era o único lugar possível para as mulheres. Mas em 2024, estamos longe dessa realidade.

Este País não é só de homens, é também de mulheres.

Hoje, as mulheres são metade da força laboral deste País. São massa crítica, são massa cinzenta reconhecida e necessária nas mais diversas áreas, são papel ativo no potencial económico do País e força em crescimento na liderança de todos os sectores. Porque este País não é só de homens, é também de mulheres. Muitas mulheres continuam, sim, a ter a sobrecarga dos chamados modelos tradicionais dentro das portas de casa, onde as mentalidades tardam em mudar. Muitas, são obrigadas a estagnar das suas carreiras à conta de estereótipos que lhes conferem responsabilidade máxima no que toca à prestação de cuidados, muitas nem sequer conseguem ter a oportunidade de entrar no mercado de trabalho porque são rotuladas à cabeça como menos disponíveis. Muitas continuam a sofrer com a miserável disparidade salarial que persiste em Portugal, continuando a enfrentar a perspetiva de desafios económicos quando chegarem à idade da reforma. Se estão preocupados com a proteção das mulheres, comecem por aí, por exemplo.

Contudo, é tempo de entendermos que estes estereótipos também já penalizam uma grande fatia de homens em idade adulta que querem fazer diferente, e que também são travados pela desconfiança da mudança de paradigma sobre o que são as funções, os deveres e o compromisso de cada um na esfera da família, dos cuidados aos afetos. Escrutinados amiúde, e ilegalmente, pelas empresas, que não vêem com bons olhos, por exemplo, o aumento exponencial de licenças parentais entre os homens.

O que pretendem não é proteger as mulheres, é pôr travão à nossa participação ativa na sociedade

Outro dos pontos ardilosos desta narrativa é o seu suposto bom propósito de conferir um rendimento às mulheres que não têm ocupação profissional, trabalham a meio-termo ou tiveram de deixar o emprego para cuidarem dos filhos, assegurando-lhes independência económica na velhice. É de uma enorme deslealdade intelectual tentar pintar isto como uma forma de proteção às mulheres, nesta fase do campeonato. Não passa de uma tentativa de camuflar a verdadeiras intenções, que, no fundo, se prendem com pôr um travão à participação ativa das mulheres nas várias dimensões da nossa sociedade. Em suma, manter o status quo do poder. Nada é ao acaso neste movimento que cheira a bafio, até mesmo a subtileza da sigla MAE, decorrente do seu nome, apelando ao que se espera que as mulheres continuem a ser: eternas parideiras ao serviço do poder masculino.

Sejamos honestos nestas temáticas, se realmente temos uma preocupação que não seja a manutenção da opressão feminina e a repressão da evolução masculina. Falemos de "cuidadores", no plural, reconheçamos este estatuto, honremos e dignifiquemos o esforço e o trabalho que tal estatuto comporta, independentemente do sexo e do género. Mas entendamos que falar de "estatuto de donas de casa" é uma ofensa global, tanto às mulheres como aos homens deste País. 

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