
A secção de Política do semanário Expresso noticiou que o Movimento Acção Ética "quer criar estatuto de dona de casa: "Há coisas que só as mulheres podem fazer." Como assim? Quem são estas pessoas?
Estas pessoas são bastantes, ou a extrema-direita não tinha voto na matéria e no Parlamento. Os tradicionalistas são mais do que as bolhas da cidade suspeitam. Atrás do muito simpático está um profundo bota de elástico que sofre em silêncio porque quer manter os padrões de sempre. E está tudo bem, não quisessem eles mandar na nossa vida. E no nosso corpo. Principalmente, e para não variar, nos das raparigas.

É curioso como tantas tradições boas estão a ser dizimadas em nome de uma modernidade ligada ao lucro dos de sempre (ou dos que gostavam de ser) que agora surfam a globalização e gentrificam e descaracterizam bairros inteiros, fecham o comércio clássico para abrir cafés de banana breads e matcha latte aos pontapés. Em zonas do país já nem se fala português. Toda uma sobranceria onde a tradição não pia.
Podíamos desfiar um longo rosário dos problemas sociais que nos apoquentam, da falta de casas para os corridos a pontapé da cidade onde nasceram, ao abandono das classes que tradicionalmente asseguram o funcionamento saudável, humanista e democrático de uma sociedade livre: médicos e enfermeiros, professores e jornalistas. Para nomear só os evidentes. Mas não, vamos falar da família tradicional.
É por isso espantoso quando alguém vem defender a tradição pelos motivos mais errados, que são os que derivam das suas vontades pessoais, e que mais não são do que um lamento pela modernidade. São o lamento destes senhores antigos que resolvem escrever um livro sobre a família tradicional e de como parecem tristes por as mulheres já não serem fadas do lar, com olhos apenas e para os seus maridos e os seus filhos, porque sempre assim foi e estava bem. É confrangedor.

Percebo que seja uma desilusão para estes senhores antigos, habituados a serem tratados como reizinhos, desde que nascem. A menina é que faz a cama e põe a mesa, ele só se lhe apetecer; a menina é que aprende a cozinhar, a tratar da roupa, a manter a casa limpa, ele só se lhe apetecer. A menina é que deseja mais ter crianças e faz a cabeça do namorado, ou engravida em modo "ops aconteceu", para acelerar processos, mesmo sabendo que é ela que vai ficar com o trabalho chato todo.
Porque sempre foi assim.
Porque não deixarmos os carros e voltarmos a andar de carroça? Cozinhar em fogueiras, comunicar só por carta, enviar uma pombinha, hmm?

O mundo em alvoroço, os bens essenciais a subirem de preço, guerra na Ucrânia, genocídio da Palestina e uma eminência de arrastar os países à volta, caos do Yemen. Os direitos humanos violados a cada minuto, a cada esquina do mundo, na sua maioria mulheres, como atestam os números da violência doméstica e das diferenças salariais, nos poucos países que nelas repara e fazem esses cálculos – imagine-se no resto do mundo.
Não, vamos antes escrever um livro sobre o quão ameaçada está a família tradicional porque estamos danados por chegar a casa e não termos o jantar feito, como sempre, como dantes. E, pior, termos de mudar fraldas aos bebés e aos velhos da família, porque quatro braços são melhores do que dois. A "empregada de serviço já não está disponível", dizia a minha mãe quando queria que a minha irmã e eu arrumássemos o que desarrumámos.
Até parece uma piada sem grande piada não fosse a amarga verdade dos direitos adquiridos estarem muito lixados por perderem o pódio. Que chatice, agora ter de dividir tudo, quando era tudo nosso. E as mulheres passarem a ter direito ao seu corpo e à sua liberdade. Era tudo tão mais fácil quando estava arrumadinho no patriarcado, como disse o chefe e o senhor prior: sabíamos quem mandava e quem era mandado, quem servia e quem era servido.
E quem casava com quem. Agora o amor acontece sem a mira da caixa forte do casamento e dos filhos. Agora o amor dá-se ao luxo de ter formas muito mais latas e inclusivas e livres. Que chatice e que confusão! Qualquer dia, as pessoas de classes sociais diferentes e de raças diferentes e de idades diferentes (sendo ela a mais velha, só para variar) começam a apaixonar-se e aí é que fica tudo estragado. Imagine-se que os rapazes já casam com os rapazes e as raparigas com raparigas, onde é que já se viu isto, onde é que isto vai parar, está tudo doido?
E há coisas que é a mãe natureza que dita: as mulheres são as que melhor cuidam da prole e do lar. Tirando todas as que são obrigadas, as que detestam, as que não têm jeitinho nenhum, as que nunca terão, e as que não querem. Querem dizer que os homens são incompetentes no lar, já que são tão exímios na vida pública (e por isso são sempre os escolhidos e os mais bem remunerados)? Ou será que as mulheres são melhores a colocar fraldas? Deve ser por isso que o fraldário e o simbolo da cadeira de rodas dividem, tantas vezes, o das casas de banho femininas. Somos as cuidadoras oficiais dos frágeis e temos, como eles, e todos os outros desgraçados, direito a um dia internacional e tudo. Ou devemos ser mais habilidosas, temos mãos especiais, com mais dedos.
Este livro e esta ideia, que em hora triste desaguou num debate de surdos, depois de apresentado por Passos Coelho, qual velho do Restelo, fazem ainda mais confusão quando parece que acha que tem, que nos deve dizer, a todos, como devemos viver. O aborto e a eutanásia? O corpo de cada um é como se fosse de todos, só os problemas de cada um é que são de cada um.
Estatuto de dona de casa? A sério? Parece uma cena a preto e branco, mas das tristonhas, com roupa que pica, penteados cheios de laca, óculos e brincos de massa, eles sempre enfatiados de escuro, com bolor de Salazar e Igreja Católica, esse exército que é o grande patriarcado, agora tão zangado e em desalento. De resto, compreende-se, a liberdade, a vontade e o prazer dos outros podem ser muito assustadores.
