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Milan Kundera, cronista-mor da fragilidade humana

Não se pode escrever a História da Literatura do século XX sem incluir a obra do escritor, que nos deixou aos 94 anos. Nos seus livros há lugar para o amor, para a desilusão e para os fantasmas totalitários que voltam a assombrar a Europa.

Foto: Getty Images
12 de julho de 2023 Maria João Martins

Candidato ao Nobel da Literatura ano após ano, o escritor checo, naturalizado francês, Milan Kundera integra a galeria dos grandes nomes que jamais receberão tal prémio. Acompanham-no Fernando Pessoa, Virginia Woolf, James Joyce, Jorge Luis Borges ou o seu contemporâneo Franz Kafka. No entanto, tal como eles (e muitos outros de indiscutível mérito), Kundera, que morreu esta quarta-feira, 12 de julho, aos 94 anos, é um nome indispensável do cânone literário do século XX.

Nascido a 1 de abril de 1929, em Brun, na então Checoslováquia (atual Chéquia), Milan Kundera começou por estudar Música com o pai,
Nascido a 1 de abril de 1929, em Brun, na então Checoslováquia (atual Chéquia), Milan Kundera começou por estudar Música com o pai, Foto: Getty Images

Mestre da sátira política, tinha do amor, e das relações humanas em geral, uma visão pouco sentimental, mas era também demasiado humanista para que o possamos considerar um cínico. Em A Insustentável Leveza do Ser, o seu romance mais celebrado (adaptado ao cinema por Philip Kaufman) escrevia: "Os amores são como os impérios: quando desaparece a ideia sobre a qual foram construídos, morrem também eles." Noutra das suas obras, O Livro dos Amores Risíveis, brinca com a imaginação erótica de várias personagens, em breves histórias, demonstrando, afinal, como o desejo pode ser um método de exorcizar o medo e a humana fragilidade. 

Nascido a 1 de abril de 1929, em Brun, na então Checoslováquia (atual Chéquia), Milan Kundera começou por estudar Música com o pai, o importante pianista e musicólogo, Ludvik Kundera, mas o amor à Literatura falou mais alto nos anos da adolescência. A partir do pós-Segunda Guerra Mundial dedicou-se à escrita, ao mesmo tempo que se inscrevia no Partido Comunista Checo (em 1948), de que seria sucessivamente expulso (em 1950) e readmitido (em 1956), tendo permanecido militante até 1970, quando foi irradiado definitivamente. Em questão estava a sua adesão à causa dos revoltosos durante a Primavera de Praga, que, em 1968, procurou libertar a então Checoslováquia do domínio soviético. Em vão porque, como sabemos, esse ensaio libertário foi violentamente sufocado pelos tanques enviados por Moscovo.

Kundera deixa-nos a 12 de julho, aos 94 anos.
Kundera deixa-nos a 12 de julho, aos 94 anos. Foto: Getty Images

Aos 40 anos, Kundera era já um nome destacado na literatura checa. Em 1967, estreara-se com a publicação da novela, A Brincadeira, centrada nas vidas e destino de vários cidadãos checos durante os anos do estalinismo, com um enfoque cómico e irónico, já que, na sua escrita, a tragédia coexistia livremente com o humor. Traduzida para várias línguas (a edição francesa teve prefácio de Louis Aragon), a obra alcançou grande êxito internacional, mas tal facto não impediu que o seu nome entrasse para o index dos autores indesejáveis e os seus livros desaparecessem de circulação. Vendo-se cercado, Kundera e a mulher, a apresentadora de televisão Vera Hrabankova, deixaram o país e rumaram a França, onde ele se tornou docente na Universidade de Rennes.

Não foi o fim dos seus desgostos com o país natal. Em 1979, o escritor viu-se privado da nacionalidade por ordem governamental, o que o "obrigou" a tornar-se francês e a fixar residência em Paris, onde morreu. Publicou então algumas das suas obras mais importantes como O Livro do Riso e do Esquecimento; A Insustentável Leveza do Ser; A Valsa do Adeus; A arte do RomanceO Livro dos Amores Risíveis; A Lentidão; A identidade; A ignorância e A festa da insignificância, estes últimos já escritos em francês.

A Insustentável Leveza do Ser, Dom Quixote.
A Insustentável Leveza do Ser, Dom Quixote.

Tal como outros dissidentes de regimes comunistas, como os russos Boris Pasternak (autor de O Doutor Jivago) ou Soljenítsin, Kundera temia que a sua obra fosse lida e compreendida apenas a uma luz política, o que considerava redutor. Em 1982, em declarações ao jornal espanhol El Pais, mostrava-se desagradado com essa possibilidade: "Não me sinto cómodo no papel do dissidente. Não gosto de reduzir a literatura e a arte a uma leitura política. A palavra dissidente significa atribuir a alguém uma literatura de tese, e se há algo que detesto é precisamente a literatura de tese. O que me interessa é o valor estético. Para mim, a literatura pró-comunista ou a anti-comunista é, nesse sentido, a mesma. Por isso não gosto de ver-me como um dissidente". Foi distinguido com importantes prémios literários internacionais como o Prémio Médicis (1973), o Prémio Mondello (1978), o Prémio Jerusalém (1985) e o Prémio Independent de Literatura Estrangeira (1991). Mas o mais importante são os milhares de edições em dezenas de línguas, que fazem dele um escritor tão universal como os seus dois "ídolos": Miguel de Cervantes e Franz Kafka.

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