Milan Kundera, cronista-mor da fragilidade humana
Não se pode escrever a História da Literatura do século XX sem incluir a obra do escritor, que nos deixou aos 94 anos. Nos seus livros há lugar para o amor, para a desilusão e para os fantasmas totalitários que voltam a assombrar a Europa.

Candidato ao Nobel da Literatura ano após ano, o escritor checo, naturalizado francês, Milan Kundera integra a galeria dos grandes nomes que jamais receberão tal prémio. Acompanham-no Fernando Pessoa, Virginia Woolf, James Joyce, Jorge Luis Borges ou o seu contemporâneo Franz Kafka. No entanto, tal como eles (e muitos outros de indiscutível mérito), Kundera, que morreu esta quarta-feira, 12 de julho, aos 94 anos, é um nome indispensável do cânone literário do século XX.

Mestre da sátira política, tinha do amor, e das relações humanas em geral, uma visão pouco sentimental, mas era também demasiado humanista para que o possamos considerar um cínico. Em A Insustentável Leveza do Ser, o seu romance mais celebrado (adaptado ao cinema por Philip Kaufman) escrevia: "Os amores são como os impérios: quando desaparece a ideia sobre a qual foram construídos, morrem também eles." Noutra das suas obras, O Livro dos Amores Risíveis, brinca com a imaginação erótica de várias personagens, em breves histórias, demonstrando, afinal, como o desejo pode ser um método de exorcizar o medo e a humana fragilidade.
Nascido a 1 de abril de 1929, em Brun, na então Checoslováquia (atual Chéquia), Milan Kundera começou por estudar Música com o pai, o importante pianista e musicólogo, Ludvik Kundera, mas o amor à Literatura falou mais alto nos anos da adolescência. A partir do pós-Segunda Guerra Mundial dedicou-se à escrita, ao mesmo tempo que se inscrevia no Partido Comunista Checo (em 1948), de que seria sucessivamente expulso (em 1950) e readmitido (em 1956), tendo permanecido militante até 1970, quando foi irradiado definitivamente. Em questão estava a sua adesão à causa dos revoltosos durante a Primavera de Praga, que, em 1968, procurou libertar a então Checoslováquia do domínio soviético. Em vão porque, como sabemos, esse ensaio libertário foi violentamente sufocado pelos tanques enviados por Moscovo.


Aos 40 anos, Kundera era já um nome destacado na literatura checa. Em 1967, estreara-se com a publicação da novela, A Brincadeira, centrada nas vidas e destino de vários cidadãos checos durante os anos do estalinismo, com um enfoque cómico e irónico, já que, na sua escrita, a tragédia coexistia livremente com o humor. Traduzida para várias línguas (a edição francesa teve prefácio de Louis Aragon), a obra alcançou grande êxito internacional, mas tal facto não impediu que o seu nome entrasse para o index dos autores indesejáveis e os seus livros desaparecessem de circulação. Vendo-se cercado, Kundera e a mulher, a apresentadora de televisão Vera Hrabankova, deixaram o país e rumaram a França, onde ele se tornou docente na Universidade de Rennes.
Não foi o fim dos seus desgostos com o país natal. Em 1979, o escritor viu-se privado da nacionalidade por ordem governamental, o que o "obrigou" a tornar-se francês e a fixar residência em Paris, onde morreu. Publicou então algumas das suas obras mais importantes como O Livro do Riso e do Esquecimento; A Insustentável Leveza do Ser; A Valsa do Adeus; A arte do Romance; O Livro dos Amores Risíveis; A Lentidão; A identidade; A ignorância e A festa da insignificância, estes últimos já escritos em francês.


Tal como outros dissidentes de regimes comunistas, como os russos Boris Pasternak (autor de O Doutor Jivago) ou Soljenítsin, Kundera temia que a sua obra fosse lida e compreendida apenas a uma luz política, o que considerava redutor. Em 1982, em declarações ao jornal espanhol El Pais, mostrava-se desagradado com essa possibilidade: "Não me sinto cómodo no papel do dissidente. Não gosto de reduzir a literatura e a arte a uma leitura política. A palavra dissidente significa atribuir a alguém uma literatura de tese, e se há algo que detesto é precisamente a literatura de tese. O que me interessa é o valor estético. Para mim, a literatura pró-comunista ou a anti-comunista é, nesse sentido, a mesma. Por isso não gosto de ver-me como um dissidente". Foi distinguido com importantes prémios literários internacionais como o Prémio Médicis (1973), o Prémio Mondello (1978), o Prémio Jerusalém (1985) e o Prémio Independent de Literatura Estrangeira (1991). Mas o mais importante são os milhares de edições em dezenas de línguas, que fazem dele um escritor tão universal como os seus dois "ídolos": Miguel de Cervantes e Franz Kafka.

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