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Estrela Paulo. A mulher que está a agitar o desporto-rei no feminino

Tem nome de astro, é das primeiras mulheres agentes de futebol em Portugal, acompanha atletas há quase duas décadas, e ajudou a abrir-lhes caminho na modalidade. A Máxima conversou com ela.

Estrela Paulo com Ana Borges, a capitã do Sporting CP e da seleção nacional.
Estrela Paulo com Ana Borges, a capitã do Sporting CP e da seleção nacional. Foto: D.R
01 de agosto de 2023 Patrícia Barnabé

Segundo dados da UEFA, o organismo que tutela o futebol europeu, quatro em cada dez fãs de futebol são mulheres. E, como é natural, também em muitas outras áreas da vida, a presença feminina é cada vez mais evidente, mesmo nas antes consideradas "exclusivas" dos homens – o futebol sempre foi um Clube do Bolinha ("onde menina não entra" como assumia a famosa banda desenhada), como os concertos de rock onde sempre se viram poucas miúdas, ou nenhumas, a aventurarem-se num stage dive, quanto mais a formar uma banda. Os tempos tardaram, mas mudaram.

A nossa equipa da seleção de futebol feminino despediu-se da época a 8 de julho, num jogo contra a Ucrânia no Bessa (dia em que a grande Lizzo rockou no palco do NOS Alive, para que fique registado), e despediram-se de solo nacional, a caminho do Mundial, na Nova Zelândia, numa receção dada pelo Presidente da República, com o hino nacional tocado pelas bandas da Armada, do Exército e da Força Aérea. No seu discurso, Marcelo Rebelo de Sousa mostrou-se surpreendido e maravilhado com a prestação das agora campeãs e pediu que repetissem a proeza no campeonato do mundo, onde a 16 julho fizeram um jogo amigável com a Noruega, e no passado dia 23 jogaram a primeira partida, contra os Países Baixos (a vitória foi das holandesas). A 27 defrontam o Vietname, e a 1 de agosto os Estados Unidos. Na altura, Marcelo disse: "As mulheres fizeram em 32 anos o que os homens fizeram em 45 anos; começaram mais tarde, começaram 60 anos depois. É importante que se façam estas contas, para se ter a exata noção do vosso papel histórico." 

"Ficámos encantadas com a forma como ela falava deste admirável mundo novo no feminino". Foto: @estrelapaulo

Conhecemos Estrela Paulo há um par de anos e ficámos encantadas com a forma como ela falava deste admirável mundo novo no feminino. Licenciada em Matemática, fez com louvor um doutoramento em Ciências da Educação na Universidade de Santiago de Compostela. O futebol já palpitava dentro dela: "Sempre gostei muito de futebol, embora nunca tenha praticado, só de forma informal; todos os meus familiares adoravam", diz-nos no seu grande sorriso, sotaque do Porto, os olhos claros e indefinidos, a contrastar com o longo cabelo negro. 

Como chega ao futebol profissional?

Em 2006, quando fui convidada para ser treinadora-adjunta de uma equipa de futsal feminina, no concelho de Famalicão. Isso abriu-me imensas portas, de 2007 a 2016. Nunca pensei que resultasse numa coisa gigante destas. Tinha uma ligação mais direta ao balneário, fazia a ponte entre este e o treinador, até que, depois, conheci um agente muito importante do futsal que me convidou para ser os olhos dele em Portugal. Porquê? Porque a modalidade estava em crescendo e eu comecei a observar mais jogos e jogadores, acabando por absorver muito conhecimento com toda essa assessoria. Mais tarde, em 2010, assisti a jogos de futebol feminino, fui fazendo essa observação, desta vez por minha conta, a requintá-la, e fui conhecendo jogadoras. Em 2012 comecei a trabalhar para uma agência italiana, que ainda hoje é parceira, e em 2016 saí do futsal, criei a minha agência, a TopBaller Sports Management Lda, e fiz o pedido de licenciamento para ter a cédula de agente junto da Federação Portuguesa de Futebol. Desde essa altura que sou agente oficial. O primeiro agente de futebol em Portugal, a trabalhar em exclusivo com o futebol feminino, iniciou atividade em 2013 - eu fui a primeira mulher a fundar uma agência, que também se dedicava, exclusivamente, ao futebol feminino. Há dois anos, por conjeturas várias, fui fazendo agenciamento masculino também. 

Renovação de contrato de Pauleta, jogadora do Benfica, em 2021.
Renovação de contrato de Pauleta, jogadora do Benfica, em 2021. Foto: D.R

Quais são as grandes diferenças, no futebol, entre o mundo feminino e o masculino? Imagino que ainda sejam bastantes…

O futebol é todo um, não costumo fazer muita distinção entre futebol feminino e masculino. Claro que há diferenças, nomeadamente fisiológicas, entre a mulher e o homem, e também psicológicas. E é muito importante que as pessoas tenham isto em conta, existem fatores que condicionam um jogar no feminino e um jogar no masculino, por isso não podemos querer que seja tudo igual. Em termos estruturais, há menos investimento no futebol feminino, também porque não há retorno; enquanto o futebol masculino é uma máquina já muito oleada, e é vulgar dizer-se que é uma indústria, o futebol feminino ainda não tem essa máquina mas, na minha ótica, tem muito mais potencial de crescimento. É natural, está em desenvolvimento, mas, também, os próprios patrocinadores hoje já sentem que devem investir no desporto para mulheres e começam a olhar para o futebol feminino de outra forma, até porque não tem os "podres" do futebol masculino. Há marcas que não se querem aliar à parte masculina do futebol, mas que se aliam à feminina. E depois há o apoio das marcas de produtos exclusivos para mulheres, estou a lembrar-me dos produtos de beleza: por exemplo, um eyeliner à prova de água, nada como pôr uma jogadora a jogar à chuva com esse eyeliner. Há uma série de recursos que podem ser usados no futebol feminino, tem imenso potencial.

Seria um caminho inevitável que metade da Humanidade pudesse, finalmente, ser ouvida, num tempo em que tanto se fala de causas, e nós não somos uma minoria.

É um paralelismo do crescimento da mulher na sociedade e é claro que o futebol vai atrás. Mas a indústria do futebol feminino nunca poderá ambicionar estar muito colada ao masculino, e isso deve estar bem presente, porque são coisas diferentes. Nem é favorável para o próprio futebol feminino. Acho que devemos andar ao lado e não colados porque, senão, vamos ter sempre um problema para resolver. 

De repente há uma atenção muito maior ao futebol feminino, que nunca vimos antes. Já estamos no Mundial, o nível do futebol feminino melhorou ou as pessoas estão mais interessadas?

O olhar da sociedade sobre a mulher é diferente e os pais - vamos tocar num tema um pouco delicado -, mas os pais já deixam as miúdas jogar futebol, coisa que não acontecia antes. Isso fez com que existam mais raparigas a jogar e houve necessidade de criar formação específica para futebol feminino porque o número de praticantes era tão baixo que elas iam praticar junto com eles, ou seja, uma ou duas jogadoras numa equipa só de jogadores, desde os "benjamins". Agora não, agora como há muitas a praticar, os clubes já têm necessidade de ter formação para o futebol feminino. E isso faz com que essa formação seja mais efetiva. Dantes assistíamos a mulheres que jogavam nas equipas séniores e não tinham formação, só jogavam à bola, davam uns toques e depois alistavam-se no clube e faziam uma equipa de futebol feminina. Agora, há a possibilidade de chegar ao topo, aos séniores, de uma equipa de futebol feminina, e isso faz com que elas já tenham um percurso de formação, desde pequenas. Já se vêem os pais cheios de orgulho, a levar as meninas pequenas, com 7 e 8 anos ao futebol, como levam ao ballet. Isso fez também com que a formação fosse melhor, logo - e isso nota-se nas nossas seleções nacionais, que cada vez têm mais qualidade -, as meninas já têm ferramentas técnicas que as outras não tinham, só faziam por instinto. E foi um fenómeno global. Se calhar em Portugal foi um pouco mais tarde que noutros países, mas estamos a fazer o nosso caminho e vamos lá chegar. A seleção nacional está no melhor ranking de sempre, a nível europeu e mundial, nunca esteve tão bem cotada na UEFA, precisamente porque está a receber jogadoras que já vêm com formação e vão trazer qualidade. É um espetáculo mais bonito e atrai mais pessoas e patrocinadores, é todo um ciclo.

Sentiu que as mulheres precisavam de ter uma mulher a representá-las? O que a chamou?

O meu chamamento foi, numa determinada altura, observar a necessidade de algumas jogadoras portuguesas, que não eram profissionais em Portugal, irem para o exterior para poderem ser profissionais, e não terem nenhum tipo de acompanhamento. E isso fez-me confusão, porque via os rapazes a terem acompanhamento. Portanto, havia essa necessidade, e muitas eram enganadas. Não tinham quem as representasse junto dos clubes, não tinham bons contratos e eram votadas ao abandono, muitas vezes chegavam lá e não eram as condições que lhes tinham sido prometidas, não era profissional. E eu senti que poderia trazer um aporte diferente e tentar, o máximo possível, que elas fossem tranquilas e que a única missão que tinham era jogar futebol, e não estarem preocupadas com toda a panóplia de coisas da contabilidade, da fiscalidade, porque ao mudares de país muda tudo e há uma quantidade de coisas adicionais, não é só o contrato que se assina, tem de se ir a um advogado de Direito desportivo, por exemplo, faltava tudo isso no futebol feminino. Porque não dar-lhes essa possibilidade? E depois todo o suporte, de marketing, a estrutura toda à volta do que implica ser profissional de futebol. 

Assinatura de contrato com Janice e Fifó, duas das melhores jogadoras nacionais de futsal, em 2022.
Assinatura de contrato com Janice e Fifó, duas das melhores jogadoras nacionais de futsal, em 2022. Foto: D.R

Crescemos a sentir o futebol como um Clube do Bolinha, sentiu alguma discriminação, mesmo que velada?

Enquanto agente mulher no meio do futebol nunca senti discriminação, o que senti foi que, no início, os presidentes tinham alguma relutância em reunir comigo, sim, é verdade, iam um pouco na retranca porque estavam habituados a falar apenas com homens, já com nome na praça, e de repente aparece-lhes uma mulher à frente a falar de futebol, então havia uma barreira. Que se foi dissipando, porque fui mostrando competência natural, ia sempre mais bem preparada, nós mulheres temos essa tendência de nos preparar melhor para as coisas, ia bem documentada. Optei por mostrar que sabia o que estava a fazer para terem segurança no meu trabalho. E correu sempre maravilhosamente bem, nunca tive nada, não tinha telhados de vidro, nem uma ponta onde pudessem pegar comigo ou pôr em dúvida se sabia o que estava a fazer ou não. Em termos de discriminação das jogadoras, creio que houve um ou outro caso, principalmente aquelas bocas que se ouvem na bancada, mas são cada vez menos. Lembro-me de assistir a um jogo de futebol e alguém amandar uma boca da bancada e a bancada cair-lhe toda em cima, homens e mulheres. As pessoas já nem ousam ter esse tipo de comentários discriminatórios para com as jogadoras, só em casos muito excecionais, como acontece com os rapazes também. Estamos numa nova era. 

"Em 2012 comecei a trabalhar para uma agência italiana, que ainda hoje é parceira, e em 2016 saí do futsal, criei a minha agência, a TopBaller Sports Management Lda". Foto: @estrelapaulo

É possível viver do futebol feminino em Portugal? O que falta ainda fazer?

Já é possível, há contratos que ascendem aos 100 mil euros por época. A Liga BPI tem cerca de 300 jogadoras, mas apenas cerca de um quarto são profissionais. O que mostra que somos uma liga amadora com algumas equipas profissionais e existem algumas equipas amadoras com uma ou outra jogadora profissional, nomeadamente as estrangeiras. A entrada de mais clubes, que têm pergaminhos no futebol nacional, ajudou no desenvolvimento do futebol feminino, nomeadamente na sua divulgação, mas muitos deles entram para ter a equipa a participar e enquanto cumprimento de uma obrigatoriedade, sem ambição para disputar provas. Falta, claramente, a entrada do FC Porto nos escalões séniores, isto se essa entrada simbolizar mais competitividade e não apenas com intuito de participação. Pode representar um momento importante de evolução do futebol feminino nacional, tal como representou a entrada do SC Braga, Sporting CP e SL Benfica, entre outros. Temos quatro equipas profissionais e duas semi profissionais, era importante que todas fossem profissionais, pelo menos as da primeira liga. Para que não tenham de ter um emprego durante o dia e treinar só à noite, isso condiciona muito, chegam cansadas e depois são as últimas a treinar, porque primeiro treinam os homens e elas só têm horário a partir das 10 da noite. Parece que não, mas isso condiciona imenso a sua perfomance, por isso, começaria por aí, por criar um chão igual para todas, que pode ser o salário mínimo e, a partir daí, cada um, conforme a qualidade da jogadora, pagaria o adicional. Essa profissionalização já aconteceu noutros países, nós estamos ainda a perceber como é que a coisa vai, mas é por aí, é o próximo passo e vai ser uma realidade em poucos anos.

Estrela Paulo com Ana Borges, a capitã do Sporting CP e da seleção nacional.
Estrela Paulo com Ana Borges, a capitã do Sporting CP e da seleção nacional. Foto: D.R

Que jogadoras de referência são representadas pela tua agência?

A Ana Borges, jogadora do Sporting CP (capitã) e da seleção nacional, uma das capitãs e a mais internacional de sempre até à data, a Sílvia Rebelo, jogadora do SL Benfica (capitã) e da seleção nacional (uma das capitãs), a Patrícia Morais, jogadora do SC Braga e da seleção nacional, a Carolina Mendes, jogadora do SC Braga e da seleção nacional e Pauleta, jogadora espanhola do SL Benfica (e uma das capitãs). 

E que outras jogadoras podem vir a destacar-se futebol, para ficarmos atentas?!

Claro. A Kika Nazareth, jogadora do SL Benfica e da seleção nacional A, a Inês Simas, jogadora do SL Benfica e da seleção nacional sub-19, a Ana Filipa Ribeiro, jogadora do SC Braga e da seleção nacional sub-17 e a Maria Costa, jogadora do OFC Antime sub-15.

E as mulheres, de uma maneira geral, estão mais interessadas no futebol?

Estão, e até vou confidenciar uma coisa, quando o Benfica criou a equipa de futebol feminino, um dos objetivos era atrair mais sócias para o clube, portanto, isso já quer dizer alguma coisa. E creio que o conseguiu, porque as mulheres seguem mais as mulheres, é uma tendência e é normal acontecer, mas já há muitos homens a seguir, porque é indiferente. Também vemos mais pais a levar as meninas aos treinos futebol. (sorri)

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