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Entrevista a Maggie Gyllenhaal: “Cenas de sexo? Sou uma espécie de perita”

Elena Ferrante escolheu Gyllenhaal para realizar The Lost Daughter. O senão? Filmar o próprio marido na cama com “uma bonita e jovem atriz".

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02 de fevereiro de 2022 às 07:00 Máxima

Imediatamente antes de Maggie Gyllenhaal ter dito ao marido para se meter na cama com uma bonita e talentosa mulher 13 anos mais nova do que ela, deu consigo a interrogar-se se isso seria uma ideia assim tão boa.

Gyllenhaal passara os últimos dois anos a escrever e a preparar-se para realizar The Lost Daughter [A Filha Perdida], uma adaptação do romance de Elena Ferrante, pseudónimo da autora italiana cuja verdadeira identidade é uma segredo muito bem guardado. Começara depois o importantíssimo processo de seleção de atores: para interpretar Leda, a heroína do filme, até certo ponto, ela garantira Olivia Colman e a espantosa jovem atriz irlandesa Jessie Buckley, que partilhariam o papel entre as cenas de flashback e as passadas no momento presente.

Foto: Netflix

Entretanto, para o libertino e atraente professor Hardy, ela achou que ficava bem o marido, o ator Peter Scarsgaard. Mas já não lhe agradou tanto a ideia de ter de o dirigir nas cenas de amor que tinha acabado de escrever entre Hardy e a jovem e casada Leda – cuja intensidade das quais tinha de ser totalmente convincente, se é que era para o público acreditar nas opções mais tarde tomadas por ela e nos seus arrependimentos.

"Pensei para mim mesma: ‘Será que quero mesmo criar essa situação?’", recorda com uma careta Gyllenhaal, de 44 anos, que foi a estrela de filmes como A Secretária ou Crazy Heart. "Em que o meu marido vai fingir ser o objeto de desejo desta fantástica e bonita jovem atriz?"

Foto: Getty Images

Ela chegou ao ponto de fazer uma lista de candidatos alternativos, depois voltou atrás. "Já estávamos juntos há 20 anos, tínhamos passado por todo o tipo de alegrias e dificuldades e eu sabia que não havia ninguém que pudesse aproximar-se sequer de fazer este papel como ele. Quer dizer, ele é irresistível, o que é exatamente aquilo que a personagem precisa de ser. Por isso disse a mim própria" – e ela ergue as mãos no ar em sinal de rendição – "vai correr tudo bem."

Por seu lado, Scarsgaard, de 50 anos, entregou-se heroicamente a este enroscanso. O certo é que a decisão dela deu frutos: as cenas de amor de The Lost Daughter são incontestavelmente… bem…

"Quentes?", sugere Gyllenhaal. "O sexo parece inevitável, certo?" Ela atribui a química entre eles em parte ao facto de as personagens de Buckley e Scarsgaard representarem um encontro de mentes: ambos trabalham num campo rarefeito da tradução de poesia; ele considera o [W.H.] Auden dela em italiano magnífico.

"Talvez isto seja uma coisa feminina", sugere Gyllenhaal, "mas se alguém realmente entende como funciona o nosso cérebro, até à mais ínfima molécula, não há nada mais sexy do que isso."

Foto: Netflix

Durante o confinamento, no ano passado, Gyllenhaal fez uma curta-metragem chamada Penelope, também com Scarsgaard: o casal filmou em redor da sua casa, em Vermont, como parte de um plano inteligente da Netflix, em meados da pandemia, chamado Homemade [Feito em Casa]. Mas The Lost Daughter – também uma produção Netflix, embora vá estrear primeiro nos cinemas, no próximo mês – marca a sua estreia de realização de uma longa-metragem.

Já era um projeto pessoal, muito antes de ela ter envolvido o marido. Há anos que Gyllenhaal era fã do quarteto napolitano de Ferrante, devorando cada volume assim que era publicado. Estes conduziram-na ao livro de 2002 da autora The Days of Abandonment [Dias de Abandono], que ela deu consigo em pulgas para ajudar a transformar num filme. Escreveu à editora de Ferrante para inquirir acerca dos direitos do livro, que por acaso estavam já vinculados a um compromisso noutro lado. Mas eles sugeriram que ela considerasse a hipótese de The Lost Daughter, o mais delgado e espinhoso livro seguinte, acerca de uma catedrática de meia-idade, cujo encontro surreal com uma desagradável família em férias a obriga a refletir sobre as suas próprias falhas enquanto mãe e esposa.

Foto: DR

Nas suas páginas, Gyllenhaal encontrou tudo o que sempre tinha adorado em Ferrante, sob a forma concentrada: "Este revelar da verdade acerca da experiência feminina do mundo e de todas as coisas sobre as quais nós coletivamente concordámos manter em silêncio". Enquanto estava a trabalhar no guião, deu com ela, culpadamente, a olhar por cima do ombro – sobretudo quando estava a escrever cenas em que a jovem Leda negligenciava ou abertamente era ríspida com as filhas pequenas. (Gyllenhaal e Scarsgaard também têm duas filhas, Ramona e Gloria Ray). "Mesmo o simples facto de reconhecer aqueles sentimentos, uma pessoa sente-se exposta", diz ela.

Como era esperado, Ferrante permaneceu longe da vista e comunicou com Gyllenhaal apenas ocasionalmente e sempre por e-mail. No entanto, foi a autora que insistiu que a atriz não apenas realizasse, como também desse o seu próprio enfoque ao material: um convite, escreveu Ferrante mais tarde, que ela nunca teria feito a um homem. "Na verdade, ela disse que o contrato seria nulo a não ser que eu realizasse", diz Gyllenhaal, obviamente sensibilizada. "Por isso, eu escrevi-lhe de volta e disse: ‘Bem, deixe-me escrever o guião primeiro e depois veremos’. Mas ela recusou-se a mudar de opinião."

Foto: Getty Images

Ferrante releu, de facto, o guião, mas só deu feedback limitado. Porém, deu a sua benção para que Gyllenhaal alterasse o fim da história – ainda que de formas que continuassem a bater certo com a intenção do romance. Será que ela conseguiu vislumbrar algum sentido da Ferrante real das interações que manteve com este enigma literário?

"Honestamente, não tenho mais informação do que o senhor", insiste ela. "Mas na minha imaginação ela é esta mulher de 70 anos, muito sensata. O que o anonimato dela tem de bom é que ela podia ser seja o que for que me desse jeito que fosse."

Nascida em Nova Iorque em 1977, Gyllenhaal cresceu em Los Angeles numa família de gente criativa: ambos os seus pais eram cineastas e o seu irmão mais novo, Jake, tornou-se ator ainda antes de ela o ser. Há quanto tempo acalentava ela aspirações de fazer realização?

Isso é uma pergunta complicada, diz ela, "porque eu acho que não me sentia com o direto de querer fazê-lo. Se se fosse uma mulher que adorasse filmes, o caminho muito mais nítido era simplesmente tornar-se uma atriz com algumas ideias". Ao longo das três décadas seguintes, ela encontrou formas de transpor essas ideias para o ecrã: às vezes através de subterfúgios – "Eu pegava apenas numa cena e, a título particular, levava-a numa certa direção e esperava que 30% do que estava a fazer acabasse por ficar no filme" – e, outras, convencendo os seus realizadores.

Foto: Netflix

Em The Deuce, uma série recente da HBO, passada no mundo dos negócios da pornografia de Nova Iorque nos anos 1970 e 1980, Gyllenhaal foi escolhida para o papel de Candy, uma prostituta cuja perspicácia para o negócio a leva a ascender na cena empresarial até chegar a ser uma verdadeira magnata da indústria dos filmes para adultos. "Mas eu pensei: ‘Não seria uma história mais interessante se ela fosse realizadora, em vez de produtora? Por isso, não parei de falar com [os criadores da série] David Simon e George Pelecanos, deixando cair a ideia do modo mais delicado possível, com um pouquinho de açúcar por cima – está a ver? Seja de que forma for para, como atriz, se conseguir obter aquilo que é preciso."

"E depois", acrescenta ela, com satisfação, "a Candy tornou-se realizadora". Só quando estava a representar a própria passagem da sua personagem da frente para trás da câmara é que Gyllenhaal começou a aperceber-se que aquilo estava a fazer ressonância com os seus próprios desejos.

"Não foi tanto que aquilo me tenha dado a ideia, antes permitiu-me ter a fantasia de eu própria o fazer", diz ela. "Eu sou muito mais corajosa no ecrã do que na realidade. Aprendo muitas vezes coisas no meu trabalho antes de as aprender na vida real."

Coragem era o que não faltava na atuação de estreia de Gyllenhaal. Esta ocorreu em A Secretária de Steven Shainberg, uma comédia negra erótica de 2002 acerca de um caso sadomasoquista entre uma advogado (James Spader) e a sua submissa assistente (Gyllenhaal). Durante a mal-afamada cena de espancamento, a mão dela roça pela de Spader e ela entrelaça o dedo mindinho em volta do polegar dele: no meio de todo o role-play dos dois, um momento de verdade emocional. Este gesto subtil, mas vital, não estava na lista de planos de filmagens; nem tão pouco foi apanhada pela câmara de Shainberg. Mas depois de conferenciar com Spader, Gyllenhaal sugeriu ao realizador que, ei, ela era só uma recém-chegada de 23 anos e tudo o mais, mas talvez fosse uma ideia gira apanhar aquilo?

"Sabe, já fiz tantas cenas de sexo, que é algo em que agora sou uma espécie de perita", diz ela secamente. Mas durante a rodagem de A Secretária, ela arriscou-se muito. O filme foi feito muito antes de o #MeToo ter inspirado o aparecimento da coordenadora de intimidade – a consultora dedicada presente no estúdio que assegura que todas as cenas de natureza sexual são representadas num espírito de profissionalismo e respeito mútuos.

Quando Gyllenhaal era mais nova, explica ela, este papel era muitas vezes informalmente assumido por outras mulheres no estúdio, que olhavam umas pelas outras. "Talvez a caracterizadora, ou alguém do guarda-roupa, ou uma atriz mais experiente que mantém só um olhar atento. E à medida que eu fui ficando mais experiente, tornei-me eu essa pessoa. Olivia Colman também fez esse papel. Apenas manter debaixo de olho as pessoas que são mais novas do que nós e que nem sempre sentem que podem dizer não."

Ela acredita que uma verdadeira mudança foi provocada pelos movimentos #MeToo e Time’s Up, que apontaram um holofote à cultura de assédio sexual dentro de Hollywood. "Penso que está a acontecer uma excitante mudança de maré neste momento", diz ela. "Não é que de repente sejamos todos bonzinhos, mas algo está definitivamente a mudar."

Ela não contratou uma coordenadora de intimidade para The Lost Daughter, "porque, tendo feito tantas cenas de sexo ao longo da minha própria vida, penso que tenho a sensibilidade necessária para atender ao que o meu elenco precisava". Ela deu a cada atriz o direito de veto sobre todo e qualquer plano contendo nudez "e, adicionalmente, eu não tinha intenção nenhuma de pedir fosse a quem fosse que fizesse qualquer coisa que não quisesse frente às câmaras, sexual ou outra. Lembro-me que a Olivia não queria usar um certo chapéu que eu tinha imaginado que ela usaria, portanto nós simplesmente livrámo-nos do chapéu."

Nas cenas íntimas, como em todo o lado, ela descobriu que Buckley respondia melhor ao tipo de realização que ela própria apreciaria. Colman, pelo contrário, era "completamente diferente. Quando eu estava a falar com ela depressa me apercebi: ‘Ó não, não, não, esta não é a forma de despertar o coração desta mulher’."

Inicialmente, o filme era para ser rodado em Nova Jérsia, na primavera de 2020, mas o covid-19 pôs fim a isso. Os produtores de Gyllenhaal passaram o globo a pente fino à procura de um local alternativo e, por volta de agosto, tinham encontrado a pequena ilha grega de Spetses, que estava disposta a albergar uma produção "com a dimensão de uma unidade de comando". No espaço de dez dias após serem assinados os formulários necessários, Gyllenhaal tinha reformulado o guião para acomodar o novo cenário e ela e o elenco haviam iniciado a sua quarentena no sul do Egeu: não era bem um desastre, tudo somado. Ficaram lá durante 28 dias e filmaram todas as cenas nos 25,4 quilómetros da ilha – mesmo aquelas passadas nos Estados Unidos.

A partir de uma crise, saiu um filme e, por sinal, um filme fantástico: agora, isso requer uma verdadeira agudeza de realização.

"Já trabalhei com alguns realizadores que tinham imenso amor para dar e ofereciam liberdade, mas houve outros que foram brutais e outros ainda que eram receosos e tacanhos", diz Gyllenhaal."Tantas vezes que eu me senti como a miúda injustiçada que diz para ela própria: ‘Quando eu crescer, ninguém se vai sentir assim no meu local de rodagem’".

Créditos: Robbie Collin/The Telegraph/Atlântico Press

Tradução: Adelaide Cabral

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