Entrevista a Maggie Gyllenhaal: “Cenas de sexo? Sou uma espécie de perita”
Elena Ferrante escolheu Gyllenhaal para realizar The Lost Daughter. O senão? Filmar o próprio marido na cama com “uma bonita e jovem atriz".
Imediatamente antes de Maggie Gyllenhaal ter dito ao marido para se meter na cama com uma bonita e talentosa mulher 13 anos mais nova do que ela, deu consigo a interrogar-se se isso seria uma ideia assim tão boa.
Gyllenhaal passara os últimos dois anos a escrever e a preparar-se para realizar The Lost Daughter [A Filha Perdida], uma adaptação do romance de Elena Ferrante, pseudónimo da autora italiana cuja verdadeira identidade é uma segredo muito bem guardado. Começara depois o importantíssimo processo de seleção de atores: para interpretar Leda, a heroína do filme, até certo ponto, ela garantira Olivia Colman e a espantosa jovem atriz irlandesa Jessie Buckley, que partilhariam o papel entre as cenas de flashback e as passadas no momento presente.


Entretanto, para o libertino e atraente professor Hardy, ela achou que ficava bem o marido, o ator Peter Scarsgaard. Mas já não lhe agradou tanto a ideia de ter de o dirigir nas cenas de amor que tinha acabado de escrever entre Hardy e a jovem e casada Leda – cuja intensidade das quais tinha de ser totalmente convincente, se é que era para o público acreditar nas opções mais tarde tomadas por ela e nos seus arrependimentos.
"Pensei para mim mesma: ‘Será que quero mesmo criar essa situação?’", recorda com uma careta Gyllenhaal, de 44 anos, que foi a estrela de filmes como A Secretária ou Crazy Heart. "Em que o meu marido vai fingir ser o objeto de desejo desta fantástica e bonita jovem atriz?"


Ela chegou ao ponto de fazer uma lista de candidatos alternativos, depois voltou atrás. "Já estávamos juntos há 20 anos, tínhamos passado por todo o tipo de alegrias e dificuldades e eu sabia que não havia ninguém que pudesse aproximar-se sequer de fazer este papel como ele. Quer dizer, ele é irresistível, o que é exatamente aquilo que a personagem precisa de ser. Por isso disse a mim própria" – e ela ergue as mãos no ar em sinal de rendição – "vai correr tudo bem."
Por seu lado, Scarsgaard, de 50 anos, entregou-se heroicamente a este enroscanso. O certo é que a decisão dela deu frutos: as cenas de amor de The Lost Daughter são incontestavelmente… bem…

"Quentes?", sugere Gyllenhaal. "O sexo parece inevitável, certo?" Ela atribui a química entre eles em parte ao facto de as personagens de Buckley e Scarsgaard representarem um encontro de mentes: ambos trabalham num campo rarefeito da tradução de poesia; ele considera o [W.H.] Auden dela em italiano magnífico.
"Talvez isto seja uma coisa feminina", sugere Gyllenhaal, "mas se alguém realmente entende como funciona o nosso cérebro, até à mais ínfima molécula, não há nada mais sexy do que isso."


Durante o confinamento, no ano passado, Gyllenhaal fez uma curta-metragem chamada Penelope, também com Scarsgaard: o casal filmou em redor da sua casa, em Vermont, como parte de um plano inteligente da Netflix, em meados da pandemia, chamado Homemade [Feito em Casa]. Mas The Lost Daughter – também uma produção Netflix, embora vá estrear primeiro nos cinemas, no próximo mês – marca a sua estreia de realização de uma longa-metragem.
Já era um projeto pessoal, muito antes de ela ter envolvido o marido. Há anos que Gyllenhaal era fã do quarteto napolitano de Ferrante, devorando cada volume assim que era publicado. Estes conduziram-na ao livro de 2002 da autora The Days of Abandonment [Dias de Abandono], que ela deu consigo em pulgas para ajudar a transformar num filme. Escreveu à editora de Ferrante para inquirir acerca dos direitos do livro, que por acaso estavam já vinculados a um compromisso noutro lado. Mas eles sugeriram que ela considerasse a hipótese de The Lost Daughter, o mais delgado e espinhoso livro seguinte, acerca de uma catedrática de meia-idade, cujo encontro surreal com uma desagradável família em férias a obriga a refletir sobre as suas próprias falhas enquanto mãe e esposa.


Nas suas páginas, Gyllenhaal encontrou tudo o que sempre tinha adorado em Ferrante, sob a forma concentrada: "Este revelar da verdade acerca da experiência feminina do mundo e de todas as coisas sobre as quais nós coletivamente concordámos manter em silêncio". Enquanto estava a trabalhar no guião, deu com ela, culpadamente, a olhar por cima do ombro – sobretudo quando estava a escrever cenas em que a jovem Leda negligenciava ou abertamente era ríspida com as filhas pequenas. (Gyllenhaal e Scarsgaard também têm duas filhas, Ramona e Gloria Ray). "Mesmo o simples facto de reconhecer aqueles sentimentos, uma pessoa sente-se exposta", diz ela.
Como era esperado, Ferrante permaneceu longe da vista e comunicou com Gyllenhaal apenas ocasionalmente e sempre por e-mail. No entanto, foi a autora que insistiu que a atriz não apenas realizasse, como também desse o seu próprio enfoque ao material: um convite, escreveu Ferrante mais tarde, que ela nunca teria feito a um homem. "Na verdade, ela disse que o contrato seria nulo a não ser que eu realizasse", diz Gyllenhaal, obviamente sensibilizada. "Por isso, eu escrevi-lhe de volta e disse: ‘Bem, deixe-me escrever o guião primeiro e depois veremos’. Mas ela recusou-se a mudar de opinião."


Ferrante releu, de facto, o guião, mas só deu feedback limitado. Porém, deu a sua benção para que Gyllenhaal alterasse o fim da história – ainda que de formas que continuassem a bater certo com a intenção do romance. Será que ela conseguiu vislumbrar algum sentido da Ferrante real das interações que manteve com este enigma literário?
"Honestamente, não tenho mais informação do que o senhor", insiste ela. "Mas na minha imaginação ela é esta mulher de 70 anos, muito sensata. O que o anonimato dela tem de bom é que ela podia ser seja o que for que me desse jeito que fosse."
Nascida em Nova Iorque em 1977, Gyllenhaal cresceu em Los Angeles numa família de gente criativa: ambos os seus pais eram cineastas e o seu irmão mais novo, Jake, tornou-se ator ainda antes de ela o ser. Há quanto tempo acalentava ela aspirações de fazer realização?

Isso é uma pergunta complicada, diz ela, "porque eu acho que não me sentia com o direto de querer fazê-lo. Se se fosse uma mulher que adorasse filmes, o caminho muito mais nítido era simplesmente tornar-se uma atriz com algumas ideias". Ao longo das três décadas seguintes, ela encontrou formas de transpor essas ideias para o ecrã: às vezes através de subterfúgios – "Eu pegava apenas numa cena e, a título particular, levava-a numa certa direção e esperava que 30% do que estava a fazer acabasse por ficar no filme" – e, outras, convencendo os seus realizadores.

Em The Deuce, uma série recente da HBO, passada no mundo dos negócios da pornografia de Nova Iorque nos anos 1970 e 1980, Gyllenhaal foi escolhida para o papel de Candy, uma prostituta cuja perspicácia para o negócio a leva a ascender na cena empresarial até chegar a ser uma verdadeira magnata da indústria dos filmes para adultos. "Mas eu pensei: ‘Não seria uma história mais interessante se ela fosse realizadora, em vez de produtora? Por isso, não parei de falar com [os criadores da série] David Simon e George Pelecanos, deixando cair a ideia do modo mais delicado possível, com um pouquinho de açúcar por cima – está a ver? Seja de que forma for para, como atriz, se conseguir obter aquilo que é preciso."

"E depois", acrescenta ela, com satisfação, "a Candy tornou-se realizadora". Só quando estava a representar a própria passagem da sua personagem da frente para trás da câmara é que Gyllenhaal começou a aperceber-se que aquilo estava a fazer ressonância com os seus próprios desejos.
"Não foi tanto que aquilo me tenha dado a ideia, antes permitiu-me ter a fantasia de eu própria o fazer", diz ela. "Eu sou muito mais corajosa no ecrã do que na realidade. Aprendo muitas vezes coisas no meu trabalho antes de as aprender na vida real."
Coragem era o que não faltava na atuação de estreia de Gyllenhaal. Esta ocorreu em A Secretária de Steven Shainberg, uma comédia negra erótica de 2002 acerca de um caso sadomasoquista entre uma advogado (James Spader) e a sua submissa assistente (Gyllenhaal). Durante a mal-afamada cena de espancamento, a mão dela roça pela de Spader e ela entrelaça o dedo mindinho em volta do polegar dele: no meio de todo o role-play dos dois, um momento de verdade emocional. Este gesto subtil, mas vital, não estava na lista de planos de filmagens; nem tão pouco foi apanhada pela câmara de Shainberg. Mas depois de conferenciar com Spader, Gyllenhaal sugeriu ao realizador que, ei, ela era só uma recém-chegada de 23 anos e tudo o mais, mas talvez fosse uma ideia gira apanhar aquilo?
"Sabe, já fiz tantas cenas de sexo, que é algo em que agora sou uma espécie de perita", diz ela secamente. Mas durante a rodagem de A Secretária, ela arriscou-se muito. O filme foi feito muito antes de o #MeToo ter inspirado o aparecimento da coordenadora de intimidade – a consultora dedicada presente no estúdio que assegura que todas as cenas de natureza sexual são representadas num espírito de profissionalismo e respeito mútuos.
Quando Gyllenhaal era mais nova, explica ela, este papel era muitas vezes informalmente assumido por outras mulheres no estúdio, que olhavam umas pelas outras. "Talvez a caracterizadora, ou alguém do guarda-roupa, ou uma atriz mais experiente que mantém só um olhar atento. E à medida que eu fui ficando mais experiente, tornei-me eu essa pessoa. Olivia Colman também fez esse papel. Apenas manter debaixo de olho as pessoas que são mais novas do que nós e que nem sempre sentem que podem dizer não." Ela acredita que uma verdadeira mudança foi provocada pelos
Ela não contratou uma coordenadora de intimidade para The Lost Daughter, "porque, tendo feito tantas cenas de sexo ao longo da minha própria vida, penso que tenho a sensibilidade necessária para atender ao que o meu elenco precisava". Ela deu a cada atriz o direito de veto sobre todo e qualquer plano contendo nudez "e, adicionalmente, eu não tinha intenção nenhuma de pedir fosse a quem fosse que fizesse qualquer coisa que não quisesse frente às câmaras, sexual ou outra. Lembro-me que a Olivia não queria usar um certo chapéu que eu tinha imaginado que ela usaria, portanto nós simplesmente livrámo-nos do chapéu."
Nas cenas íntimas, como em todo o lado, ela descobriu que Buckley respondia melhor ao tipo de realização que ela própria apreciaria. Colman, pelo contrário, era "completamente diferente. Quando eu estava a falar com ela depressa me apercebi: ‘Ó não, não, não, esta não é a forma de despertar o coração desta mulher’."
Inicialmente, o filme era para ser rodado em Nova Jérsia, na primavera de 2020, mas o covid-19 pôs fim a isso. Os produtores de Gyllenhaal passaram o globo a pente fino à procura de um local alternativo e, por volta de agosto, tinham encontrado a pequena ilha grega de Spetses, que estava disposta a albergar uma produção "com a dimensão de uma unidade de comando". No espaço de dez dias após serem assinados os formulários necessários, Gyllenhaal tinha reformulado o guião para acomodar o novo cenário e ela e o elenco haviam iniciado a sua quarentena no sul do Egeu: não era bem um desastre, tudo somado. Ficaram lá durante 28 dias e filmaram todas as cenas nos 25,4 quilómetros da ilha – mesmo aquelas passadas nos Estados Unidos.
A partir de uma crise, saiu um filme e, por sinal, um filme fantástico: agora, isso requer uma verdadeira agudeza de realização.
"Já trabalhei com alguns realizadores que tinham imenso amor para dar e ofereciam liberdade, mas houve outros que foram brutais e outros ainda que eram receosos e tacanhos", diz Gyllenhaal."Tantas vezes que eu me senti como a miúda injustiçada que diz para ela própria: ‘Quando eu crescer, ninguém se vai sentir assim no meu local de rodagem’".
Créditos: Robbie Collin/The Telegraph/Atlântico Press
