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Crónica Isabel Stilwell. Promovam os cabeleireiros, a braço direito do SNS

Foto: IMDB / Legalmente Loira
27 de agosto de 2024 às 07:00 Isabel Stilwell

Num país onde estamos todos cada vez mais velhos, num país onde a solidão mata, num país onde muita gente não tem médico de família, e aquela que tem não consegue receber mais do que cinco minutos de atenção; num país onde as listas de espera para consultas, sobretudo de saúde mental, são de anos, a minha proposta é que haja a coragem e o bom senso de declarar imediatamente os cabeleireiros e barbeiros como lugares de interesse público, promovendo-os a braços direitos do SNS.

E nem sequer descobri a pólvora porque já têm décadas os primeiros projetos de terapia em barbearias, tal como o "The Confess Project", o "Barbershop Therapy", ou o "Black Barbershop Health Outreach Program" — os dois primeiros formam barbeiros para lidar com os desabafos dos clientes, tradicionalmente homens com dificuldade em falar de emoções e sentimentos, encaminhando-os para procurar mais ajuda, quando for caso disso, e o último, com o enfoque no combate à hipertensão, complementando a máquina zero com uma medição da tensão arterial,  e assim salvando vidas.

Faz todo o sentido. O salão de bairro, onde a confiança entre as pessoas se vai sedimentando aos longo do tempo, é um lugar de encontro e cumplicidades, ideal para trabalhar a autoestima. Afinal é àquelas pessoas que confiamos o nosso precioso cabelo, a quem pedimos um penteado que funcione como cartão de visita, e por isso é expectável que estejamos também disponíveis para partilhar com elas as nossas alegrias, preocupações e tristezas, entre pedidos de madeixas, alisamentos ou caracóis.

Por seu lado, estes profissionais também vão conhecendo de ginjeira os clientes e aprendendo a ler o seu estado de espírito mal cruzam a porta, adequando-se a eles — o que pode significar uma sessão de conversa ou, pelo contrário, oferecendo uma clareira de silêncio confortável e sem culpa. Enquanto passam as mãos nos cabelos, perguntando se a água está demasiado quente ou muito fria, massajando o couro cabeludo demasiado tenso, fazem as vezes de para-raios, dissipando trovoadas. 

Mas os seus benefícios vão para além disso. Na prática, funcionam como espaços de serviço social. A cada 24 horas, acolhem com carinho e boa disposição a senhora de cadeira de rodas, permitindo que a filha vá dar uma volta para espairecer,  rapam o cabelo com perícia e consideração à doente oncológica, celebram os netos das clientes, assistindo pacientemente ao desfilar de fotografias que a avó tem para mostrar, interessam-se pelo rol de doenças de uma outra, aprimorando a "mise" para uma ida ao médico,  aconselham com respeito, mas alguma firmeza, a adolescente insegura que tem medo de sair dali com menos um centímetro de comprimento do que as amigas, sugerem umas unhas coloridas a uma recém-divorciada destroçada, testam penteados à noiva indecisa, conscientes de que metade daquela hesitação é consequência da ansiedade pelo grande dia. E, ainda, aturam os rabugentos e eternamente insatisfeitos, mas que acabam por voltar, provavelmente porque no seu íntimo reconhecem a bondade de não terem sido castigados com um cabelo pintado a verde-alface.

Por isso, sim, estou a falar a sério, vivam os cabeleireiros e quem lá trabalha, que merece bem uma condecoração por serviços à Nação. E, pessoalmente, digo-o com toda a gratidão.

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