A insustentável leveza de não fazer nada
Não sei porque é que chegamos ao fim do dia e suspiramos um angustiado "hoje não fiz nada" quando, na realidade, não parámos um minuto. Já o disse a mim mesma mil vezes, mas a verdade é que volto sempre ao mesmo lugar.

Temos de chamar trabalho ao que é trabalho. Não sei porque é que não o fazemos, não sei porque é que chegamos ao fim do dia e suspiramos um angustiado "hoje não fiz nada" quando, na realidade, não parámos um minuto. Já o disse a mim mesma mil vezes, mas a verdade é que volto sempre ao mesmo lugar.
Não contabilizamos os mails a que damos resposta ainda antes de sairmos da cama, nem o tempo que usamos a ler a papelada enquanto bebemos um café apressado, nem a guerra do vestir e despachar as lancheiras de duas ou três crianças, nem a "boleia" que lhes damos até à escola, nem a tabuada que recitamos no carro, nem os telefonemas que fazemos no trânsito….

Na verdade, quando pegamos oficialmente ao serviço já demos conta de metade da agenda de trabalho do dia, criando espaço para mais tarefas e para mais objetivos.
Graças ao telefone omnipresente, ao computador que serve de segundo ecrã e a uma ginástica mental que deixaria os nossos antepassados de língua de fora, despachamos o trabalho que ainda há pouco exigiria duas ou mais pessoas para cumprir. E agora que penso nisso, talvez seja exatamente porque fomos carregando tudo em cima dos nossos ombros, numa existência profissional mais solitária (mesmo quando rodeado de gente) que fomos perdendo a noção de como os nossos dias estão sobrelotados. E para quê se, vezes demais, fechamos a luz (depois de uma última rodada pelas mensagens do WhatsApp) com esta sensação de que tudo somado resultou em muito pouco.
O mais absurdo é que depois perguntamo-nos porque será que estamos tão cansados, de onde vem esta exaustão que nos faz temer que amanhã a energia não chegue para nos levantarmos da cama. Ou que demos por nós a sonhar que nos mandam isolar, deixando, é claro, o resto da família livre para ir à sua vida.

Teoricamente, o teletrabalho — desde que os miúdos estejam na escola — seria esse oásis que procuramos, mas qual quê. Os pratos ficaram em cima da mesa e as panelas no lava-loiças porque já que a mãe está em casa, entre duas reuniões, aproveita para pôr a cozinha em ordem, idem aspas para as toalhas espalhadas pelo chão, e as camas por fazer. E, de facto, dizemos nós, o que é que custa? Nada, claro, a avaliar pelo facto de que quando regressam nem dão pelo milagre da fada-do-lar que, com mais ou menos esforço, lhes vai por o jantar à frente (depois do jantar, logo se acaba o relatório).
Dizem-me que as novas gerações já não são assim. Que sabem deixar cair o lápis ao toque das seis badaladas e que, sem remorsos nem culpas, têm uma vida para lá do trabalho. E que dividem equitativamente as tarefas. Mas suspeito que é mentira. Suspeito que se limitam a dar outro nome ao trabalho que andam a fazer. Iludidos como eu.
Mas se for verdade, se houver por aí quem genuinamente consegue desligar as antenas e estar-se nas tintas para o que ficou por acabar, se houver por aí mulheres e mães que embora preguem a igualdade, acabam por açambarcar (mais ou menos voluntariamente) o cuidado da casa e da família, peço o favor de me mandarem dizer. Ainda vou a tempo de aprender.

Nota importante: postar selfies no Instagram também é trabalho, e a quantidade que vejo desmente claramente a miragem de uma geração que consegue desconectar-se do serviço. Nop. Acho bem mais fácil acreditar no Pai Natal.
