Visita guiada. Corunha mostra vida e obra de Helmut Newton
A nova exposição organizada pela Fundação Marta Ortega Pérez, "Helmut Newton – Fact & Fiction", dá a conhecer as três facetas do trabalho do famoso fotógrafo alemão: a moda, os retratos e os nus, numa carreira plena de subversão, erotismo e humor negro.
Foto: Helmut Newton Foundation23 de novembro de 2023 às 12:14 Madalena Haderer
Mulheres de todas as cores, de várias idades, mulheres atrevidas, mulheres acanhadas. Mulheres de guerra e de paz. Não é certo (talvez não seja sequer provável) que Martinho da Vila se tenha inspirado na carreira fotográfica de Helmut Newton para escrever a letra da sua famosa canção Mulheres. Mas poderia tê-lo feito. As mulheres sempre foram o tema e inspiração favoritos deste fotógrafo, principalmente as poderosas que, na verdade, aos seus olhos, todas eram, mesmo que não o reconhecessem ou soubessem sequer. Isso é óbvio para quem tire algum tempo para se familiarizar com a sua obra e agora há uma oportunidade perfeita para isso: acaba de inaugurar no Muelle de Batería, na Corunha, uma grande exposição dedicada à vida e obra do famoso fotógrafo. Chama-se Helmut Newton – Fact & Fiction e pode ser visitada até ao dia 1 de maio de 2024. A Máxima foi à inauguração e está em posição de garantir que vale bem as longas horas de estrada.
Organizada pela Fundação Marta Ortega Pérez (a herdeira do império Inditex) em colaboração com a Fundação Helmut Newton (FHN), a exposição teve como comissários o vice-presidente e o diretor e curador da FHN, respetivamente, Philippe Garner e Matthias Harder, e Tim Jefferies, dono da Hamiltons Gallery, em Londres. Foram Garner, britânico, e Harder, alemão, que guiaram o grupo de jornalistas europeus pela exposição, parando, de forma orgânica, junto das fotografias que mais os atraiam e à medida que sentiam necessidade de dizer alguma coisa sobre esta ou aquela imagem.
Para quem chega da rua, principalmente num dia de sol, a penumbra no espaço da exposição pode ser desconcertante. Tudo está mergulhado na sombra, com a luz colocada atrás das fotografias. E isso não é por acaso. Helmut Newton era um homem de contrastes. Escuro, claro. Modelos nuas, modelos vestidas. Fotos a preto e branco, fotos saturadas de cor. O ambiente do espaço transmite isso mesmo.
Antes de começarmos o percurso, Philippe e Matthias contam que ficaram muito entusiasmados quando conheceram o local onde a Fundação Marta Ortega Pérez (MOP) lhes propôs fazer a exposição: um edifício industrial com um silo, junto ao porto. "Helmut teria adorado os silos e armazéns renovados, o ambiente portuário e a arquitetura da cidade. Começámos logo a imaginar que fotografias ele teria criado neste sítio", disseram.
Foto: Profirst - Mathieu Ridelle
Assim que avançamos, Garner sente-se imediatamente puxado para uma das fotografias mais icónicas de Newton, intitulada Rue Aubriot – uma campanha Yves Saint Laurent (YSL) para a Vogue francesa – tirada em 1975. Um exemplo perfeito do apelo que sentia pelos contrastes. Vemos uma mulher no meio da rua, elegante, uma modelo impecavelmente vestida, com um fato de homem YSL, um penteado igualmente masculino, segurando um cigarro com o olhar perdido, numa pose também ela masculina; nas suas costas, o cenário de rua está desfocado. "Há uma ambiguidade nesta fotografia. Uma tensão entre o que é factual e ficcional. Newton joga aqui com um contraste deliberadamente artificial. Usa a luz ambiente, que é algo que ele gostava muito de fazer, por isso as suas fotografias têm um vibe de documentário", explica.
A carreira de Helmut Newton, que durou mais de seis décadas, está intimamente ligada às revistas de moda, com fotografias suas a preencherem as páginas das revistas Vogue francesa e inglesa, Elle, Marie Claire, Stern, Queen e Nova, entre outras. De acordo com Philippe Garner, que foi seu amigo próximo, Newton descrevia-se como "a gun for hire" – qualquer coisa como um pistoleiro a contrato ou mercenário, num jogo de sentido com a palavra "disparar", de quem dispara uma fotografia ou uma pistola. E acrescenta que "nos seus trabalhos com as revistas de moda, Helmut levava tudo até ao limite. Se não tivesse limites para extravasar, ultrapassar e arriscar, não tinha inspiração".
Um pouco mais à frente, junto àquelas que são, provavelmente, as fotografias mais impactantes da exposição, Matthias Harder explica que Newton tinha três facetas enquanto fotógrafo – a moda, os retratos e os nus, mas que essas facetas eram fluídas e permeáveis entre si. No livro editado para a exposição, pode ler-se o seguinte: "As campanhas de moda eram concebidas em torno de temas sexuais e de códigos sociais; os seus retratos eram preparados com o cuidado de uma campanha de moda; os seus nus têm uma elegância distintiva e perturbam as convenções de género com a atmosfera confiante e confrontacional, por vezes perturbadora, que ele criava."
Foto: Profist - Mathieu Ridelle
Estamos perante cinco fotografias em tamanho real de modelos femininas completamente nuas – tirando os sapatos de salto. Cinco mulheres em poses confiantes, desafiantes mesmo. "Newton encontrava inspiração para as suas fotografias em todo o lado. Em pinturas, filmes, até nas notícias, como foi o caso aqui", diz Harder, referindo-se ao facto de Newton ter visto, no telejornal, que a polícia de Berlim tinha fotografias de corpo inteiro dos elementos do grupo Baader Meinhof – um grupo de guerrilha urbana comunista e anti-imperialista da Alemanha Ocidental, fundado em 1970 e que, durante essa década cometeu assassínios, atentados bombistas, raptos, assaltos a bancos e tiroteios. Já Garner acrescentou que "Helmut pegou nessa ideia e usou-a para fazer um editorial de beleza para a Vogue francesa, em 1981, e depois decidiu expor essas fotografias e isso mudou o rumo do seu trabalho". Harder concorda com a opinião do colega e conclui: "Newton tornou-se Newton em Paris".
Não obstante a importância de Paris na sua carreira, o fotógrafo tinha uma ligação à Alemanha que nunca perdeu. Harder, ele próprio alemão, refere que, ao longo das suas muitas décadas de trabalho, Newton andava sempre à procura da luminosidade de Berlim, que conhecia tão bem. Afinal, foi lá que nasceu, em 1920, no seio de uma próspera família judia. Em 1938, depois do trauma da Kristallnacht – noite de extrema violência dirigida aos judeus alemães – Helmut decidiu fugir e, com a ajuda da mãe, apanha um comboio na estação Zoologischer Garten, rumo a Trieste, de caminho para a Austrália, onde passa mais de 20 anos e conhece June Brunell, sua mulher de toda a vida. Curiosamente, o edifício em frente à estação onde começou a sua fuga da Alemanha Nazi é hoje onde fica a Fundação Helmut Newton. No ano seguinte, também os seus pais fogem para a Argentina.
Foto: Helmut Newton Foundation
De volta à exposição, Mathias chama a nossa atenção para aquela que é, para si, uma das fotos mais emblemáticas de Newton por reunir todas as suas facetas: é um nu, que é, ao mesmo tempo, um retrato, um autorretrato e um editorial de moda. "Era uma fotografia para a Vogue francesa, um editorial sobre a gabardine masculina, só que é muito difícil fazer um shooting interessante com gabardines de homem. Newton resolveu o problema da seguinte forma: fotografou a modelo nua em frente ao espelho, aparecendo ele próprio no enquadramento, com a gabardine vestida. Ao canto, vemos a mulher dele, June, que tinha vindo buscá-lo para almoçar. E aí está: temos a gabardine, temos a modelo, o fotógrafo e um retrato da sua mulher, tudo numa fotografia", explicou com visível entusiasmo.
Foto: Helmut Newton Foundation
Um pouco mais à frente, Matthias aponta uma fotografia a cores que o atrai particularmente: uma imagem da atriz italiana, Monica Bellucci com um lenço de papel usado para tirar o excesso de batom, mas que aparece na fotografia, cobrindo a boca da atriz. Ao invés de vermos os seus lábios, vemos a sua marca no lenço. "Ele adorava virar o normal do avesso", diz.
A propósito de atrizes, Philippe aponta o retrato de Charlotte Rampling, um ícone de beleza dos anos 60. Charlotte, contrariamente ao que seria de imaginar – e como é o caso das modelos Naomi Campbell e Jerry Hall, da atriz Brigitte Ariel, da bailarina Bernice Coppieters e até do falecido designer de moda Gianni Versace – não aparece nua, mas quase totalmente coberta por um casaco de peles. "E, no entanto, é uma fotografia extremamente sensual e Charlotte, quando comenta essa fotografia, diz que Newton encontrou nela e trouxe ao de cima algo que ela não sabia ter – "muitas mulheres diziam o mesmo", explica o comissário.
PUB
Foto: Helmut Newton Foundation
E, de repente, é impossível que os olhos não se foquem num rosto inesperado naquele cenário de editoriais de moda, fotografias de campanhas publicitárias e mulheres nuas: Margaret Thatcher. Newton retratou-a em Anaheim, na Califórnia, em 1991, pouco depois dos seus 11 anos como primeira-ministra do Reino Unido terem chegado ao fim de forma pouco digna – com os seus ministros a rebelarem-se. Thatcher pode não ter a figura física que associamos às mulheres de Helmut Newton, mas o poder, a postura desafiante, a confiança e até uma certa doçura, estão lá. Phillipe sorri diante de Thatcher. "Há um momento mágico na vida de Newton que recordarei sempre. Estive com ele numa exposição em que ele foi cumprimentado pela rainha de Inglaterra, outra mulher poderosa, diante deste retrato."
A exposição Helmut Newton – Fact & Fiction é a terceira exposição de fotografia apresentada pela Fundação MOP, seguindo-se à de Peter Lindbergh e Steven Meisel. Para além das suas imagens mais icónicas, mostra fotografias de lugares que foram importantes no seu percurso artístico, como Paris, Los Angeles, Monte Carlo, Berlim, Viena e Las Vegas, bem como retratos de David Bowie, Andy Warhol, Yves Saint Laurent, Daryl Hannah, Karl Lagerfed, entre outros. Inclui vídeos de Helmut Newton a trabalhar e a conversar, imagens pessoais que contextualizam a sua infância, carreira e a relação com June, bem como documentos, cartazes, câmaras, adereços, artefactos intrigantes e lembranças.
Foto: Profirst – Justin Paquay
A entrada é grátis, mas as vendas de merchanding – há coisas muito giras – revertem para o projeto Future Stories, que apoia a carreira artística de jovens criadores.
Onde? Muelle de Batería s/n, Corunha, Galiza. Quando? Até 1 de maio de 2021, de segunda a quinta, das 10h às 12h; à sexta, das 10h às 21h; sábados e domingos, das 11h às 21h. É possível agendar uma visita guiada através do site.