Teresa Salgueiro: "Nunca na vida eu achei que a música iria ser a minha profissão"
Teresa Salgueiro é uma das mais belas vozes portuguesas. Cresceu a ouvir Amália Rodrigues e a admirá-la, longe de saber que seriam os Madredeus, banda da qual se tornou vocalista, aos 17 anos, que teriam a primeira maior projeção internacional depois da conceituada fadista.
Foto: Pedro Ferreira06 de setembro de 2019 às 07:00 Rita Silva Avelar
Hoje com uma carreira cheia de referências, de colaborações, de concertos em palcos nacionais e internacionais, em grupo ou a solo, Teresa Salgueiro continua a ser uma inspiração. E, acima de tudo, a honrar o melhor da música nacional da atualidade: a que não esquece os ecos do passado, mas que também projeta a sonoridade do futuro.
Teresa Salgueiro (Lisboa, 1969) levou a emoção natural da sua voz, que contagia, enternece e comove quem a ouve, aos quatro cantos do mundo nas últimas três décadas. Adolescente que cantava nas tascas do Bairro Alto, entre amigos e conversas, o seu percurso na música inicia-se de forma oficial, em 1986, quando, com apenas 17 anos, é convidada para integrar a fundação do grupo Madredeus – com Pedro Ayres Magalhães, Rodrigo Leão, Francisco Ribeiro e Gabriel Gomes. Em 1995, aos 26 anos, foi distinguida como Oficial da Ordem do Infante D. Henrique. Com os Madredeus gravou nove discos de música original, pensada especificamente para a sua voz, e juntos venderam cinco milhões de álbuns em todo o mundo, até Teresa abandonar o grupo, em 2007. Construiu uma carreira a solo. Em O Mistério, aquele que foi o primeiro disco integralmente composto por si, da letra à música, Teresa Salgueiro refletiu sobre a equação misteriosa que é a vida. Essa reflexão abriu caminho para Horizonte, lançado em 2016, o qual deu origem a uma digressão de dois anos, O Horizonte e a Memória. Fechou-se um ciclo.
Como é que a música entrou na sua vida, sobretudo na infância?
Como sou filha única - apesar de eu ter vivido muito próximo de duas primas, que moravam no andar de baixo, e de ter brincado muito com elas -, na verdade passei muito tempo sozinha. E cantava sempre. O canto era uma companhia constante de uma forma completamente espontânea. Eu costumo contar que pensava que "Não se canta à mesa" era um ditado. Devia ser uma coisa que me diziam, assim como quem diz "Pelo menos, à mesa não cantes". E eu sempre disse que não se cantava à mesa até que alguém me disse: "Mas não se canta à mesa porquê?" [risos]. Muitas das minhas brincadeiras eram à volta da música. Com as minhas primas, que tinham um gravador, fazíamos programas de rádio e organizávamos festivais da canção que, na altura, mobilizavam a atenção do país.
Eu comecei a partilhar esse gosto com amigos quando saía à noite e tinha sempre uma amiga que me pedia para cantar. As minhas saídas também eram à volta dos momentos em que cantava a capella em lugares públicos ou até na rua, no Bairro Alto, nas tasquinhas. As pessoas aplaudiam e queriam mais. Mas nunca na vida eu achei que a música iria ser a minha profissão. Felizmente foi assim…
Os Madredeus encantaram os portugueses durante duas décadas. Como é que tudo começou?
Convidaram-me para fazer uma audição. Eu tive sorte de encontrar um repertório, que se prolongou por 20 anos, que era feito para mim, mas que ao longo do tempo se veio a modificar. Era uma música completamente nova, mas ao mesmo tempo era-me muito familiar. O público que ouviu sentiu o mesmo. Eu cantava alguns fados a capella que tinha aprendido com um disco que tinha da Amália em casa dos meus pais. Cantava essencialmente repertório desse disco, o Busto, e também de um álbum do Zeca Afonso, o Cantigas do Maio. Mais do que fado, eu gosto muito da Amália por ser muito mais abrangente que o fado, em si. Gostar de fado, naquela altura, não era algo que fosse comum e estar próximo dessa tradição era algo que as pessoas estranhavam, ao contrário de hoje em dia.
Quando os Madredeus apareceram houve essa identificação com uma música que fazia a fusão da linguagem urbana e da linguagem rural. Havia um eco e uma memória naquela música, mas ao mesmo tempo era completamente novo. E era novo também o facto de se cantar em português com tanta convicção e com tanto amor pela língua portuguesa naquele momento da nossa história. A minha vida transformou-se inteiramente e converteu-se nessa entrega total à música, como tem sido até hoje.
Essa sonoridade tão especial que deram ao mundo deixa-lhe saudades?
PUB
Viajámos pelo mundo e muitas pessoas vinham dizer-me que estavam a aprender português ou que tinham aprendido português para poder cantar as nossas canções e entender o que elas diziam. Isso é o que mais satisfação me dá. E também o saber que a música tem o poder de acompanhar as pessoas, que em determinado período foi importante na vida de alguém, que fez um certo sentido, que lhes fez companhia e que as ajudou em momentos mais difíceis. Que as ampara. São as duas facetas que mais me agradam e que permanecem. Eu não olho para o tempo dos Madredeus com saudade. Foi uma entrega muito profunda e é uma alegria ter vivido juntamente com aquelas pessoas uma aventura que é única na história da música portuguesa. É claro que essa aventura é cheia de grandes desafios, mas também de momentos de muita solidão e de procura de como viver e encontrar o sentido total do que estamos a fazer.
O disco Você e Eu foi gravado no Brasil. O que é que a apaixona nessa sonoridade?
Tive a felicidade de viajar pelo Brasil a cantar e de ser muito bem recebida durante muitos anos. E eu pude ver de perto o entusiasmo e a força que há naquele país. Desde muito pequenina que na rádio e nos discos eu ouvia canções brasileiras, de Dorival Caymmi a Tom Jobim, de Elis Regina a Caetano Veloso. Eu costumo dizer que conheço muitos países e que me sinto próxima de muitas culturas, mas o Brasil é monumental. Tem uma cultura extraordinária em que se fala e se canta em português com uma liberdade criativa e uma grande riqueza. Há uma liberdade no ser brasileiro que é contagiante.
Com Matriz, o primeiro disco homónimo, prestou homenagem à cultura portuguesa. Quis homenagear as suas raízes?
PUB
Eu fui buscar alguns dos músicos que trabalharam comigo no espetáculo La Serena. Tinha estado durante 20 anos num grupo a cantar música original em língua portuguesa, feita para mim, e depois tinha gravado dois álbuns, um em português do Brasil e outro em que cantava em vários idiomas, mas não eram discos que me definissem. Foram dois encontros fugazes e, naquele momento, eu queria dizer que não ia desistir da música e que ia fazer um álbum português, no qual pudesse cantar canções que mostrassem a diversidade, a riqueza e a antiguidade da cultura portuguesa.
Em 2012 lançou o disco O Mistério, onde reflete sobre o significado da vida…
É sobre o mistério que é a vida ela mesma, a nossa presença aqui e a nossa condição diante desse mistério. Nunca teremos acesso ao total sentido da nossa vida. É uma constante procura. É preciso aceitar a presença da nossa fragilidade, assim como a nossa força e a nossa capacidade criativa. Tudo o que dizemos e fazemos tem impacto. A nossa dimensão perante o universo é como um grão de areia, mas ao mesmo tempo temos uma força extraordinária porque temos o poder de transformar as coisas.