A batalha para vencer a fome emocional

Ter uma relação complexa com a comida não é saudável, nem prazeroso, nem incomum. Aprenda a distinguir a fome física da emocional e comece a comer com prazer e sem culpa.

O Diário de Bridget Jones (2001) Foto: IMDB
03 de janeiro de 2020 às 12:22 Mafalda Sequeira Braga

Quantas vezes já assaltou inconscientemente o frigorífico depois de ter discutido com um familiar, devorou um pacote inteiro de bolachas enquanto esperava por um telefonema importante, passou numa pastelaria a caminho de casa para compensar um "dia não" ou arranjou espaço para a sobremesa num jantar de amigos, mesmo estando completamente saciada? Mas aquele litro de gelado que acabou numa noite no sofá ajudou-a realmente a sentir-se melhor – ou apenas fê-la sentir-se perigosamente cheia e depois culpada?

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Nem sempre comemos com o simples intuito de satisfazer a fome. Também usamos a comida para sentir conforto, aliviar o stress, celebrar uma data ou como uma recompensa. Fazê-lo de vez em quando não é necessariamente mau e resulta geralmente de um comportamento transversal a todas as culturas e fases da vida, mas quando o primeiro impulso é comer sempre que nos sentimos chateados, aborrecidos, sozinhos ou exaustos, estamos perante um problema muito mais complexo. Neste caso, a fome ou vontade de comer surgem quando determinada questão se coloca, resultando numa ingestão alimentar comandada pelas emoções e não pelas necessidades nutricionais. O prazer e bem-estar associados aos alimentos aquando da ingestão inicial rapidamente dão lugar a sentimentos de culpa, perda de controlo e arrependimento, com tendência para que o mesmo padrão se repita numa situação futura, dando assim início a um ciclo vicioso.

Foi o que aconteceu a Magda Gonçalves. Desde muito cedo – 4/5 anos – que a sua relação com a comida era problemática. Apesar da família "normal", era uma criança tímida, envergonhada e já com excesso de peso, que acabou por sofrer de bullying na escola. Os pais procuravam proporcionar-lhe o acompanhamento necessário através de nutricionistas, endocrinologistas, dietistas e outros profissionais com boa reputação na área da alimentação e da perda de peso, mas nada resultava. Magda experimentou todas as dietas que havia para experimentar, incluindo substituição de refeições por batidos, eliminação de hidratos de carbono e doces, contagem de calorias, pesagem de alimentos, etc. A verdade é que ia emagrecendo (chegou a perder 57 quilos em dois anos e meio), mas depois recuperava sempre tudo o que tinha perdido e, por vezes, ganhava até mais. Os seus medos continuavam todos lá, acompanhados pela falta de confiança e de autoestima, causando um sofrimento que só se atenuava depois de ingerir grandes quantidades de comida. Com cerca de 32 anos, foi com o marido aos Estados Unidos da América, onde fizeram um curso de comunicação saudável para casais. 

Lá, foi abordada por terapeutas que questionaram a sua relação com a comida. Apesar de ter sentido alguma resistência ao que ouviu e a aceitar que tinha qualquer tipo de problema, além da gula ou da falta de força de vontade, estava pouco depois a iniciar um programa de seis semanas no Centro de Distúrbios Alimentares do Arizona (EUA). Começava aí também um processo de desenvolvimento pessoal e autoconhecimento, onde aprendeu a encontrar um propósito de vida e a perceber de onde vinha a sua batalha com a comida. Hoje, é psicóloga alimentar porque quis mostrar aos outros aquilo que lhe ensinaram e lançou agora um livro sobre o tema. Foi esse o pretexto para uma conversa onde nos explicou o seu trabalho, a quem é dirigido e o que é isto da compulsão alimentar e da fome emocional.

"Comer com prazer e sem culpa pode fazer parte da nossa vida todos os dias." É esta a mensagem que Magda Gonçalves, psicóloga alimentar, pretende passar através da sua profissão e do livro Vencer a Batalha com a Comida, da Matéria-Prima Edições. "O que me leva a comer da forma que como?" É uma das perguntas a que Magda Gonçalves ajuda os seus clientes a responder. Muitas vezes escolhemos alimentar-nos de uma forma com a qual não estamos confortáveis e não sabemos bem porquê. "A psicologia alimentar vai muito além daquilo que nós comemos para perceber quem somos enquanto comedores." Assim começa a coach, cuja função consiste em analisar as ligações entre a mente, o corpo, a alimentação e a forma como os aspetos sociais, emocionais e culturais da vida influenciam o metabolismo.

Há muito tempo que somos inundados por mensagens que promovem um estilo de vida saudável – diferentes tipos de dieta brotam de livros, programas de televisão e outros meios de comunicação, sendo transmitidas frequentemente noções de fraqueza, falta de força de vontade ou pouco autocontrolo se os resultados não forem alcançados. Mas, para muitos, o problema não está na escassez de informação sobre o que fazer para ter o peso certo. Envolvendo questões que variam de pessoa para pessoa, é preciso reconhecer que, muitas vezes, os nossos desafios com a comida, imagem corporal e saúde estão ligados às preocupações do quotidiano, sejam de caráter financeiro, profissional, familiar e/ou sentimental, bem como às esperanças, sonhos e receios que nos acompanham. "Se as pessoas se quiserem realmente entregar a esse processo descobrem, através das dificuldades com a comida, como é que essa relação é de certa forma o espelho da sua maneira de estar noutras áreas da vida." E exemplifica com o caso de quem passa o dia a cumprir um rigoroso plano alimentar para depois à noite se descontrolar: "Podemos agarrar nesse aspeto do ‘8 e 80’ com a comida (e quem diz este, diz outros) e perceber onde é que o ‘8 e 80’ também se revela noutras áreas da vida – com um relacionamento, com compras, com os filhos, etc."

FOME FÍSICA VERSUS FOME EMOCIONAL

FOME FÍSICA

- Tende a surgir gradualmente e pode ser adiada.

- Pode ser satisfeita com qualquer tipo e número de alimentos.

- Uma vez cheia, consegue facilmente parar de comer.

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- Não causa sentimentos de culpa.

FOME EMOCIONAL

- Surge súbita e urgentemente.

- Provoca desejos muito específicos (como por exemplo pizza ou gelado).

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- Há a tendência para comer mais do que o normal e necessário.

- Pode desencadear sentimentos de culpa, vergonha e impotência.

- Vem da cabeça: foca-se nas texturas, nos gostos e nos cheiros.

Partindo então do princípio científico de que o corpo e a mente existem numa ligação muito complexa, afetando-se profundamente, esses padrões emocionais, fatores psicológicos e socioculturais e até determinantes biológicos que alteram significativamente o nosso comportamento relativo à comida dão facilmente origem a doenças ou distúrbios alimentares. Os mais conhecidos são a anorexia e a bulimia, mas a área de especialização de Magda Gonçalves não é essa. A psicóloga ajuda pessoas que comem compulsivamente, mas depois não vomitam – são aquelas que sofrem daquilo a que chama binge eating disorder: "Estas pessoas podem ter muito, pouco ou até nenhum excesso de peso, mas é a forma como estão concentradas, obcecadas, focadas de forma compulsiva na comida. Já consultaram vários especialistas, sabem o que é comer saudavelmente, mas voltam sempre à estaca zero e não conseguem controlar as quantidades e a frequência com que comem. No fundo, a comida é uma bengala, utilizada para algum tipo de escape, compensação ou conforto." Dito isto, esclarece que o problema responsável por levar uma pessoa a um extremo da doença como a anorexia não tem de ser superior ao de alguém que luta diariamente com dois ou três quilos e tem um peso perfeitamente normal. "A forma como o problema se revela em termos de doença é muito diferente porque todos somos diferentes e lidamos com as coisas à nossa maneira."

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Além da necessidade fisiológica, as pessoas comem por muitas razões. Primeiro, é preciso saber distinguir entre a fome emocional e a fome real (ver caixa). Depois, há que identificar os gatilhos, ou seja, os elementos que desencadeiam essa compulsão com a comida. Por vezes, a fome emocional está ligada a grandes acontecimentos da vida, como uma morte ou um divórcio. Mais frequentemente, porém, são as pequenas tensões diárias as principais culpadas. Quando são crónicos, como é tão habitual no mundo acelerado onde hoje vivemos, o stress e a ansiedade levam a um aumento do cortisol. Esta hormona provoca desejo por alimentos muito doces, salgados e com alto teor de gordura que levam a uma explosão de energia e prazer. É como qualquer outra droga: o caráter viciante deste tipo de comida faz com que a procuremos continuamente quando nos sentimos em baixo.

A sua fome é emocional?

Responda a estas questões e fique a saber:

  • - Come mais quando se sente stressada?
  • - Come quando já não tem fome ou quando se sente cheia?
  • - Anda a comer quantidades maiores do que o normal?
  • - Costuma comer em horários pouco comuns?
  • - Come para se sentir melhor (para se acalmar e distrair quando está triste, com raiva, aborrecida, ansiosa, etc.)?
  • - Costuma recompensar-se com comida?
  • - A comida fá-la sentir-se segura? Sente que a comida é como uma amiga?
  • - Sente-se impotente ou com pouco controlo perto de comida?
  • - Houve recentemente alguma alteração brusca no seu peso?
  • - Cumpre um plano alimentar à risca durante o dia ou durante a semana, mas à noite ou ao fim de semana descontrola-se?
  • - Pensa frequentemente na próxima vez que irá comer?
  • - Sente-se culpada e envergonhada depois de comer certos alimentos ou quantidades?

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Se respondeu afirmativamente à maioria destas perguntas, poderá estar a usar a alimentação como um mecanismo de compensação face a certas emoções e, portanto, é aconselhável que procure a ajuda de um especialista.

No seu livro, Magda Gonçalves reforça: "A compulsão alimentar, ou adição à comida, é um problema tão perturbante quanto outra adição. […] Talvez até pior, porque temos de comer para sobreviver." Contudo, ao contrário daquilo que se possa pensar, a fome emocional não é desencadeada apenas por sentimentos negativos. Os hábitos de infância, que geralmente transitam para a idade adulta, são um exemplo. Uma criança a quem deram doces para recompensar o bom comportamento ou quando se sentia triste vai crescer usando os mesmos alimentos em situações semelhantes, pois isso traz-lhe conforto.

Até certo ponto, todos somos comedores emocionais, mas para algumas pessoas, este comportamento pode adquirir proporções muito mais graves. O problema deste tipo de fome (além das questões de saúde) é que, depois do prazer de comer, os sentimentos que provocaram a compulsão não desaparecem. Pelo contrário, assomam com ainda mais força. Não só a questão original permanece como ainda surge a culpa por comer de mais. Mas porque é tão difícil identificar e controlar esses fatores que influenciam a forma como comemos? Magda Gonçalves esclarece: "Porque nós queremos muito achar que conseguimos gerir a nossa vida e as nossas emoções, desejos, vontades, medos, dificuldades. Só quando passamos a ter uma relação mais saudável com a alimentação e não nos permitimos utilizá-la como a dita bengala ou mecanismo de defesa, é que começamos a sentir o verdadeiro desconforto que existe na nossa vida. Eu escolhi isso para mim e sou apologista de que as pessoas terão uma qualidade de vida acrescida se adotarem esse caminho. Mas há histórias de vida tão complicadas, que se calhar realmente a dor da compulsão alimentar é inferior àquilo que teria de ser feito e sentido para viver uma vida sem ela." É por isso que as dietas não funcionam nestes casos – para cerca de 95% das pessoas. Durante o plano alimentar até podem emagrecer, mas depois disso o problema continua lá e voltam a engordar. Para a psicóloga, "a dieta é como estar a pôr um penso rápido por cima de uma ferida que precisa de levar pontos: dura um tempo mas depois começa a sangrar novamente. E assim sucessivamente - é o ioiô".

Magda Gonçalves não acredita, portanto, em planos alimentares restritivos, em passar fome ou em ter força de vontade para não comer, já que a recuperação da compulsão alimentar raramente se consegue assim. "Há tendencialmente uma ânsia em fazer uma alimentação muito saudável no dia a dia, ignorando frequentemente as vontades que temos. Se incutirmos o hábito de comer um bocadinho daquilo que verdadeiramente nos apetece durante a semana, de forma planeada e estruturada, conseguimos ir tendo prazer ao longo desses sete dias e não chegar ao fim de semana e comer uma pizza ou uma caixa inteira de bolos, que vai fazer muito pior."

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Artigo originalmente publicado na edição 331 da Máxima.  

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