“Queria que estas mulheres contassem as suas histórias, elas devem ter uma voz no mundo e na sociedade”

Conversámos em Lisboa com a escritora marroquina Leila Slimani, que nos falou de literatura, feminismo, liberdade e dos problemas da sociedade atual.

06 de outubro de 2018 às 08:00 Rita Silva Avelar

Nascida na capital de Marrocos, Rabat, no princípio dos anos oitenta (1981), Leila Slimani aprendeu cedo que as mulheres não estavam em pé de igualdade com os homens, no seu mundo em particular, e no mundo em geral. Aos 17 anos, quando se mudou com a família (de expressão francófona) para Paris, conheceu finalmente a liberdade de não ir escondida ter com um namorado ou de poder beber um copo num terraço da cidade. A capital francesa deu-lhe a liberdade, mas foi antes, em África, que começou a devorar grandes clássicos e a escrever poemas e micronarrativas. Estudou Ciências Políticas e em 2014 lançou o aplaudido pela crítica No Jardim do Ogre, sobre Adèle, uma mulher infeliz com um casamento de farsa e mãe de um filho que ainda está a aprender a amar. O seu segundo livro, Canção Doce, conta a história de Louise, uma ama que assassina os dois filhos de Myriam e Paul e foca, acima de tudo, temas como a pobreza, a humilhação social, a solidão, o desespero. Antes de se dedicar à escrita, Slimani trabalhou como jornalista na revista Jeune Afrique. Canção Doce reconfirmou o seu papel nas letras francesas e valeu-lhe a atribuição do prestigiado Prémio Goncourt.

Leila, como foi crescer em Rabat? Já era uma criança que se embrenhava nos livros?

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Assim que aprendi a ler comecei a "devorar" romances e vivia no maravilhoso mundo da literatura.

Quais eram os livros que mais lhe despertavam curiosidade?

Ficção. Primeiro li coleções de livros infantis que os meus pais nos compravam, mas logo a seguir vários livros de aventuras, como Júlio Verne, Victor Hugo, Charles Dickens… muitos clássicos.

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É uma observadora nata, isso vê-se na sua escrita. Recorda-se de observar os outros, em pequena?

Eu sou uma observadora, mas não tenho uma grande memória, infelizmente. Sim, observo, mas sou uma pessoa que vive muito o presente. Em criança e em adolescente observava os gestos de toda a gente, mais precisamente dos adultos, dos meus pais, da minha família. Como romancista, por vezes preciso de olhar para as pessoas em silêncio e apenas escutar, observar e ser invisível.

Aos 17 anos mudou-se para Paris. Como viveu essa mudança, de sociedade e de cultura?

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Em Marrocos, especialmente se alguém for mulher e adolescente e se quiser viver coisas como apaixonar-se ou sair com amigos, não é tão fácil como quando se está na Europa. Tem de se mentir muito, encontrar sítios onde se possa fazer o que se quer, sem ter pessoas a controlar. É-se mais passivo. Quando eu cheguei a Paris, descobri que esta era uma cidade para a exibição. Podia estar lá fora, nas ruas, mostrar-me de forma verdadeira, usar vestidos bonitos, ir a um miradouro, olhar para os homens, falar com eles… mesmo não os conhecendo. Descobri o que era viver num sítio onde tudo é mostrado e onde se pode estar onde se quer.

Começou a escrever em Paris ou antes?

Não, comecei a escrever quando ainda vivia em Rabat, Marrocos. Em adolescente escrevia poemas, pequenas histórias e adorava as aulas de literatura. Mas não pensava, claro, que ia ser romancista e que um dia iria escrever um verdadeiro romance. Em Paris, comecei a pensar nessa ideia de escrever algo maior.

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Mas primeiro começou como jornalista, na revista semanal Jeune Afrique. Nunca pensou continuar na profissão?

Eu adorava o meu trabalho: ser jornalista e repórter. Passei muito tempo em Marrocos, na Tunísia, em toda a África… E falei com pessoas muito interessantes, a propósito de entrevistas profissionais. Ao mesmo tempo tinha o pressentimento de que não iria estar completamente satisfeita com este trabalho, queria algo maior. Queria ficção, na verdade. A realidade era muito difícil para mim (viver nela a tempo inteiro).

Mas é precisamente sobre situações mundanas, muito reais, que escreve. Como é o caso de Louise, a personagem do livro Canção Doce. Como estrutura o retrato dessa realidade?

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Eu quero expressar a minha realidade, a forma como olho para ela. Quando escrevo um romance não tenho uma ideologia nem quero provar nada, nem tenho uma ideia formulada sobre a sociedade. Só quero dizer algo sobre a forma como olho para as pessoas, a minha rua, o meu bairro, Paris, as mulheres que admiro. As personagens que eu amo, Adèle ou Louise, são pessoas perdidas, pessoas que sinto estarem "perdidas". Talvez eu queira salvá-las... Que alguém, em algum lugar, as possa compreender ou identificar-se com elas.

É por essa razão que as protagonistas das suas histórias são sempre mulheres? Para dar-lhes voz?

Porque num país como Marrocos é preciso esconder-se tudo. É preciso calar-se. E isso é comum a muitas partes do mundo: ter homens – pais ou maridos, por exemplo – que nos mandam calar. Eu queria que estas mulheres contassem as suas histórias, sem vergonha. Porque elas deviam ter uma voz no mundo e na sociedade. Além disso, quis dizer que a sexualidade é um assunto político. Não ter a possibilidade de ter uma sexualidade, de sentir alegria e liberdade nela, não permite ao cidadão sê-lo por completo, seja em que sociedade for.

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Continua a ser um dos temas mais proibidos, um tabu?

É bem diferente, se falarmos na Europa ou em África, onde a sexualidade ainda é considerado algo sujo, um tabu, algo errado, mau, não se fala sobre isso. Não há ainda verdadeira liberdade neste assunto. É triste que hoje em dia não possamos sentir a alegria do amor e da sexualidade, é sempre algo que tem de ser submetido à religião, à moralidade, à posição das mulheres. Eu tento defender o facto de sermos mulheres como todas, não porque somos muçulmanas ou marroquinas.

As histórias de ambos os livros, No Jardim do Ogre (2014) e Canção Doce (2017), foram pensadas ao longo de muito tempo? Ou surgiram rapidamente?

Eu imagino-as por um longo período. Demoro algum tempo para encontrar uma personagem, para me encontrar com ela. É como estar numa cidade que não se conhece, não ter um mapa, e tentar encontrar uma forma de conhecer a cidade, encontrar os sítios onde se consegue estar seguro, e depois encontra-se a personagem. Depois, sim, começa-se a contar a história.

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Voltando a Louise, a ama que assassinou Mila e Adam. Em que se inspirou para construir esta personagem?

Eu inventei-a por inteiro. Para o enredo, inspirei-me na minha própria vida e até na minha própria ama. Em muitas situações que observei, mas também que já vivenciei. Louise é pura ficção, inventei-a de raiz.

A pobreza é um dos males por erradicar no mundo e um dos mais difíceis. É sobre ela que este romance se trata, também. Quis focar o tema a ponto de mostrar que é comum as pessoas, como Louise, enlouquecerem?

Se lermos Dostoiévski, Dickens, Victor Hugo… lemos sobre pobreza. Sobre como a pobreza leva à humilhação e a humilhação leva à violência. Se tratarmos as pessoas de forma miserável, elas certamente agirão de forma miserável. O que me fascina é mais o tema da humilhação. Porque pode ser-se pobre e ter dignidade, mas a nossa sociedade é muito violenta para as pessoas pobres, considera-as nulas, está sempre a humilhá-las. É mais difícil quando se tem filhos, quando se é humilhado em frente aos filhos, numa situação em que eles pedem algo que não se pode dar ou comprar. É muito difícil para uma mãe ou um pai explicar ao filho que ele não pode ter isto ou aquilo, que se é pobre.

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Como reagiu ao Prémio Goncourt com este romance?

Eu não estava à espera, foi irreal, não como um sonho, mas como algo que estava a acontecer a outra pessoa. Foi estranho e engraçado ao mesmo tempo.

O que faz um bom escritor?

Sinceridade e uma voz única. Ainda nunca ouvida.

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As mulheres têm mais voz na literatura que nunca?

No mundo ocidental estamos [mulheres] a viver um momento muito bom na literatura. Mas nunca nos podemos esquecer que, para muitas mulheres, apenas pensar na ideia de serem escritoras é algo inviável e impossível. Porque pensam que tal coisa poderia ser algo mau, deveria ter de ser feito às escondidas, que seria indelicado. Sempre que escrevo penso em todas as mulheres que nunca serão escritoras não porque não tenham talento mas porque têm medo ou estão sob pressão.  

O que é que, para si, define uma vida livre?

Para mim, uma vida boa é uma vida em que não nos tornamos aquilo que outros querem que sejamos. Uma vida em que cada pessoa se possa inventar a si mesma, seja o ator/atriz principal da sua própria vida. Em que se decide onde se quer estar. Ao descrever a sua vida, Simone de Beauvoir disse que a sua obra de arte era a sua vida, porque se tornou a mulher que queria ser. Teve exatamente a vida que queria: decidiu não casar, não ter filhos, traçar uma luta política e feminista.

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*A autora esteve em Portugal a convite da Câmara Municipal do Porto.

Foto: Catherine Hélie
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