O que acontece quando nos fechamos à noite num cinema com João Botelho e Victoria Guerra

Repórter noturno é uma entrevista feita a um ou vários convidados durante uma noite.

Foto: Tiago Manaia
02 de outubro de 2020 às 20:30 Tiago Manaia

  1. ao cair da noite

"Já viste o interior de alguém?" —pergunta-me João Botelho. 

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De voz rouca, o débito do seu discurso impulsiona a nossa conversa a um ritmo alucinante. Fala de pinturas, luz e sombras, evoca o artifício. O seu cinema é um conjunto disto tudo, "com seres humanos aflitos lá dentro"— diz-me. 

"Sabes quando é que acabam as relações de amor?" — questiona e acrescenta — quando se pergunta ao outro no que está a pensar". E assim resume os jogos psicológicos dos quais os atores são afastados quando contracenam nos seus filmes. No seu cinema ninguém morre de verdade, e ele já matou uns quantos personagens.

"Quando as pessoas se vêem a chorar, sentem que estão a ver algo de verdadeiro num filme, mas no cinema nada é verdadeiro." No entanto, neste O Ano da Morte de Ricardo Reis, a sua adaptação do romance de José Saramago, a narrativa não está tão distante do estado atual do mundo. — "Não há pandemia, mas há a ideia de que o fascismo está a renascer em todo o lado". Erdogan, Trump, Bolsonaro…Em 1936, ano em que se desenrola a ação do filme, Hitler preparava-se para mergulhar a Europa num pesadelo, Salazar era ditador nas nossas ruas, Espanha entrava numa guerra civil, em Itália Mussolini estava no poder. Rodado há mais de um ano e meio, esperou-se que a loucura do lockdown esmorecesse para o estrear em sala. Sentiu que o filme se foi aproximando da realidade? 

"Isto tudo já cá estava —diz-me Botelho— mas sim o cinema é para inquietar, não é para consolar, detesto filmes de consolação, a vida é tão rápida e com a pandemia descobri coisas nas quais se calhar não tinha tempo para reparar antes. Deu para olhar melhor para as pessoas, ver-lhes atitudes ou coisas que nunca tinha visto. E inquieta-me as pessoas começarem a desviar-se nos passeios com medo do outro. Pensava que isto ia criar layers de generosidade e criou uma coisa que eu odeio, a filantropia, esmolas não!"

Estamos sentados no café do Cinema Ideal, sala onde se mostram filmes de autor, entre o Bairro Alto e o Chiado, há cartazes que nos rodeiam, títulos que puxamos para a conversa, como o Fim do Mundo (2020), filme de Basil da Cunha — muitas vezes pensámos nele nos últimos meses. As portadas do cinema estão abertas para a rua. Olhamos para o centro da cidade, o rumor de uma segunda vaga de Covid-19 formaliza regras de conduta, a vida improvisa-se a querer ser normal com máscaras e distanciamento. Connosco está Victoria Guerra, símbolo de desejo em O Ano da Morte de Ricardo Reis, figura central nesta história onírica de um possível caminho para a morte. Botelho filmou-a a preto e branco.

  1. escuro

Na sala do Ideal estão pessoas a ver o filme, uma antestreia. Minutos antes Botelho dava um golo num gin e puxava Victoria para perto do ecrã, explicava ao público que havia nela algo da atriz italiana Anna Magnani. Pasolini filmou-a trágica, em Mamma Roma (1962) rodeada de "não atores", como era seu costume. Victoria fala-me, a certa altura, de como admira o trabalho desses "não atores", que se encontram pela primeira vez à frente de uma câmara. São capazes de atingir patamares de eficiência únicos, "talvez por não se questionarem em demasia" —acrescenta. Aspira a algo parecido.

Há também uma vontade de sujar a sua imagem, — "e não me estou a queixar do que tenho feito, só que enquanto atriz tenho mesmo vontade de ir a um sítio mais raw."

Foto: D.R.

Victoria tem um enigma, tanto encarna uma beleza fria nórdica, como é absolutamente autêntica e espontânea. Falo-lhe de Kate Moss, nascida em Croydon, os arredores populares de Londres. "Ela era mitra, mitra — diz Victoria a rir— sabes, cresci com pais muito autênticos, e falas da minha beleza meio fria e distante, mas eu não cresci com preocupações fúteis e superficiais, nada disso era importante em casa, portanto eu sou da terra, o meu pai é algarvio de Loulé e a minha mãe de east London. Este mash up deu-me mundo, foi a sorte que tive na vida." 

A sua sede de conhecimento foi instigada pelo pai, as origens inglesas da mãe potenciaram a equação. Victoria teve aulas de jornalismo e fala comigo na importância da deontologia no presente estado do mundo. Recentemente, o testemunho de Emily Ratajkowski na The Cut mexeu com ela. Um reflexão explosiva pós MeToo, sobre o consentimento e como uma atriz ou manequim pode (ou não), controlar a exploração da sua imagem (e corpo), quando ainda não é conhecida. Ao longo da conversa, deixa pistas no ar, é uma atriz engajada. Acredita na arte capaz de elevar o pensamento. O cinema e a literatura têm a possibilidade de iluminar temas, extratos sociais e realidades que nada têm a ver com o luxo que desliza atualmente no Instagram. " A maior parte… Desculpa dizer isto…Mas é só lixo ou uma espécie de lifestyle. E não pode ser só isso."— remata. 

Foto: Getty Images

As suas redes sociais vão continuar fechadas. Nada é definitivo, mas a convicção mantém-se, e pergunta —"até que ponto é importante eu partilhar o meu pequeno almoço?" — Não é preciso responder, é retórica.

É empolgante poder levar um clássico da literatura portuguesa a um público novo (como este filme de Botelho), ou tratar o amor da forma como foi abordado no filme Variações (2019), numa altura em que ainda existem campos de concentração para gays na Chechénia.—"neste momento a concentração é mínima, e as pessoas não lêem. A pandemia vincou as assimetrias sociais e isso assusta-me. Quando isto acontece, pode-se procurar uma mudança sem se pensar muito nela. As pessoas querem uma saída sem pensar que essa saída pode ser dez vezes pior… E nós acabámos de viver a década Kardashian, isso tramou-nos de certa forma. As pessoas já não têm conteúdo, são só famosas, vazias." Victoria cita o poeta modernista T.S. Elliot para se referir ao Algarve da sua infância, recorda a sua terra com carinho. — "Um dia vou querer escrever sobre aquela Waste Land".

 

  1. pela noite dentro

Volto ao débito rápido de João Botelho e à sua passagem na nossa noite —  não ficou sempre connosco. Falou durante uma hora sem parar. Como Fernando Pessoa parece ter heterónimos espalhados a viver várias vidas num só corpo. Apesar de um sotaque nortenho vincado, Botelho tornou-se indissociável às ruas e sobretudo às noites de Lisboa. Antes da Covid-19, vê-lo dançar numa pista, era sinónimo de ter atracado em bom porto. Aos 71 anos, há nele uma memória fulgurante, pormenoriza todos os detalhes nos relatos que expõe. Por momentos pára de falar comigo e grita o nome de um amigo. Num acaso, passa à frente do Cinema Ideal, Artur Mendes da Silva, o homem que está por trás do Boom Festival. 

Botelho diz-lhe, "— temos de fazer o Boom para 50 pessoas— apresenta Victoria, fala do seu filme e diz a Artur — olha para mim, nunca estive tão saudável."

Victoria fala de utopia, Botelho diz que já foi sete vezes ao Boom —"adorei aquilo, é essa ideia de liberdade que não há em lado nenhum, o problema é que depois acaba e tens de vir para a vida normal". 

"Vens melhor" — diz Victoria.

Peço a João para me descrever noites vividas em Lisboa. Lembra-se de tempos pouco antes do 25 de Abril. Detalha uma encenação de Ricardo Pais, do Frei Luís de Sousa, fala do Jamaica, essencialmente frequentado por prostitutas, mas onde ele e os amigos levavam os discos da Patti Smith para que todos pudessem ouvir. Ia também a um bar frequentado por carteiristas, foi roubado mal lá entrou, acabou por ficar amigo do tal ladrão, que das carteiras furtadas guardava todos os cartões que encontrava dos sócios do Benfica — " eles metiam as facas e pistolas em cima da mesa, e ficavam ali. Aquilo era mesmo uma coisa de paz dos bandidos, era o descanso deles depois do dia de trabalho." 

Quando no início dos anos 80, abriu o Frágil de Manel Reis, Botelho diz que o medo acabou, — "ali eram aceites gays, pretos, azuis, amarelos. Era uma coisa impossível até à época. O Manel abriu Lisboa. É mais importante a urbanização que ele fez, do que todas as câmaras que tiveram à frente disto. Aquilo era uma atitude contra o status quo, contra a repressão e o olhar diferente" — diz Botelho.

Tiramos duas polaroids para ilustrar este texto, o flash da minha máquina deixa de funcionar. É o cinema que nos ilumina. 

A sós com Victoria a conversa continua, o público sai da sala e fica parado a olhar para ela. No decorrer da noite, tínhamos esquecido de que ali estava estrear O Ano da Morte de Ricardo Reis. Duas brasileiras visivelmente comovidas agradecem à atriz.

Pergunto-lhe, se pode ficar sem dormir por causa de uma cena que filmou ou que poderá vir a filmar. "Sim o meu trabalho tira-me o sono. Eu consigo desligar do personagem, mas às vezes não consigo desligar do processo"— evoca o trabalho no filme Cosmos (2015) realizado pelo polaco Zulawski— ele tinha um lado brilhantemente perverso, obrigava-me a ir a um lado pessoal e aos meus demónios de uma forma muito intensa."

Aconteceu isso no filme que acabou de rodar em setembro com Edgar Pêra. A equipa viveu isolada numa quarentena total, durante a pandemia. Coincidência ou não, exploraram também o universo de Fernando Pessoa.

"Eu gosto desta coisa de ir para fora filmar, e não ter de voltar para casa ao final do dia. Esta coisa de saíres do quotidiano e deixares de viver a tua vida durante algum tempo." 

O Cinema Ideal fecha portas, pedem para sairmos, estão no limite da lei.

Por momentos esquecemos onde estávamos, fechados num cinema à noite a falar do que aconteceu ao mundo.

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PARA SER GRANDE, sê inteiro: nada 

Teu exagera ou exclui.

Sê todo em cada coisa. Põe quanto és 

No mínimo que fazes. 

Assim em cada lago a lua toda

Brilha, porque alta vive.

14.2.1933. Ricardo Reis

Foto: Tiago Manaia
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