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Ana Rocha de Sousa: “várias pessoas perguntaram-me: 'tens a certeza que que queres fazer este filme?'”

Encontrámo-nos com a realizadora Ana Rocha de Sousa na Cinemateca Portuguesa para falar sobre Listen, o seu primeiro e premiado filme, protagonizado pelo duo Lúcia Moniz e Ruben Garcia e que estreia esta semana.

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22 de outubro de 2020 às 07:00 Rita Silva Avelar

Ana Rocha de Sousa chega ao bar da Cinemateca pouco depois da hora combinada, vinda de uma manhã preenchida com entrevistas. Sabemos que o tempo com a realizadora é escasso, uma vez que tem passado os últimos dias a falar sobre Listen, a sua primeira-longa metragem premiada com cinco galardões no Festival de Cinema de Veneza (Leão do Futuro – Luigi De Laurentiis, o prémio especial do júri da secção Horizontes, e três distinções paralelas: Arca Cinema Giovani, Bisato d'Oro e Sorriso Diverso Veneza). Mas nem por isso lhe vislumbramos vestígios de deslumbramento ou de vaidade exacerbada. Deparamo-nos, sim, com uma mulher segura, ambiciosa e, na verdade, com uma vontade imensa de abrandar para retomar novos projetos.

Antes de passar para trás das câmaras, Ana Rocha de Sousa iniciou-se nos anos noventa como atriz, passando por projetos como Médico de Família, Sonhos Traídos ou Morangos com Açúcar. Em Listen decide contar a história de um casal em desespero, Bela e Jota (Lúcia Moniz e Ruben Garcia), a quem os serviços sociais britânicos retiram os três filhos, incluindo um bebé, por suspeitas de maus tratos. É um retrato social de uma realidade ainda adormecida, pouco discutida e com carências de exposição a todos os níveis, e na qual apostou todas as cartas, como diz, "atirando-se de cabeça".

Foto: Sebastian Leif

Sobre o reconhecimento internacional, confessa-se emocionada mas de pés bem assentes na terra. "Foi importante para o cinema português, e para mim é importante que os portugueses sintam isto como deles porque eu sou portuguesa e o meu filme é português. Para onde quer que eu vá e onde quer que eu esteja, estou eu e o meu país e não é por acaso que a minha filha se chama Amália. Eu tenho muito esse sentido de pátria e de amor por Portugal e isso acentuou-se imenso com a minha vivência fora" conta, já no fim da nossa conversa. O filme chega aos cinemas portugueses a 23 e outubro.

O que trouxe de Londres, além do argumento, que a inspirou a criar esta primeira longa-metragem?

O que eu trago de Londres são memórias fantásticas, sobretudo por sentir aquele "vibrar" do mundo ali. Quem vê este filme, provavelmente fica na dúvida se a minha ligação a Londres é pacífica, mas eu tenho o maior amor por Londres. Eu deparei-me com um tema que é me mexe com as entranhas, e que não há como mexer a partir do momento em que nos tornamos pais. Gostava muito que o meu primeiro filme não fosse visto como um filme absolutamente contra o Reino Unido, porque me sinto mal nessa posição no sentido em que devo imenso a Inglaterra. Foi lá que tive grandes professores (também os tive cá, na Faculdade de Belas-Artes) mas em Londres senti-me no centro do mundo. Claro que hoje em dia, com o Brexit, sentem-se imensas diferenças a esse nível. E não deixa de ser curioso que este filme sai numa altura em que esse contexto é bastante mais agressivo para a emigração. Para todos os efeitos, a aprendizagem de artista, de autora, de criadora, vem das Belas-Artes.

Mas quando se depara com o tema, está em Portugal ou no Reino Unido?

Em Portugal. Porque lá fala-se do tema, mas é diferente. Quando oiço falar é de um caso de uma mãe portuguesa que perde um bebé recém-nascido com dias. Nessa altura a Amália, a minha filha, era muito pequenina, e aquela notícia incomodou-me. E eu já estava numa fase em que estava a pensar na minha longa-metragem, porque ela já podia ir para a creche. Quis ter a certeza de que fazia sentido, não queria de maneira nenhuma estar a fazer algo despropositado, ou com base num caso isolado. Aquela história fez-me descobrir muitas histórias, e a partir dai eu atiro-me de cabeça para um tema que é muito difícil, que é muito sensível e que tem posturas muito desequilibradas. E o que tento fazer é abordar o tema da perspetiva mais equilibrada possível, ao relatar aquilo que me saltou à vista, e que senti como profundamente absurdo.

Sentiu uma dupla responsabilidade, por ser um tema social e por ser a primeira longa?

É uma responsabilidade muito grande. Eu não sou jornalista, por isso também há aqui um lado que se torna ligeiramente mais leve. Mas para mim era impensável fazer este filme de uma perspectiva artística e torná-lo irresponsável. E portanto sim, existe um peso grande ao tratar-se de um tema como este. O facto de ser uma primeira longa-metragem também me permitiu "atirar de cabeça" para uma coisa mais "louca". Tive várias pessoas a perguntar-me: "tens a certeza que é isto que queres fazer?". Um primeiro filme é sempre difícil, juntando-lhe o tema destes torna tudo mais difícil, lento e doloroso a todos os níveis. Mas me trouxe também uma aprendizagem profunda.

Foto: Alfie Samba

Era importante escolher uma atriz que já tivesse sido mãe, como é o caso da Lúcia Moniz?

Sim, não tinha a menor dúvida. E aí perdoem-me mas para mim era impossível não o ser. Há uma parte da simulação no cinema para a qual eu não vou, e que dificilmente irei um dia. Há um limite para o fingimento, e não seria a mesma coisa. Há muitas atrizes e atores que podem defender que para interpretarem a morte não precisam de morrer, mas eu sei que consigo um caminho muito mais profundo e muito mais genuíno e incrível com uma atriz que sabe o que é ser mãe. Eu não digo que uma atriz sem ter sido mãe não fizesse um papel bem, mas entre o bem e o incrível vai ainda um passo. E sou capaz de dizer mais: e mesmo que fosse incrível, eu não queria estar a fazer um filme em que a aquela mulher, atriz, não soube o que era ser mãe porque seria quase desonesto. Um dia, se fizer uma ficção com características diferentes, quem sabe. Mas aqui há um grau de veracidade, honestidade e de sinceridade que eu acho é fundamental para este filme que retrata tanto e tão intensamente a justiça e a falta dela.

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Foi emocionante receber este reconhecimento em Veneza, como portuguesa e como mulher realizadora?

Sinto-me muito honrada e muito orgulhosa de ser portuguesa e de ser mulher, e termos com este filme conseguido estes prémios. Também se prende com o facto de estarmos a falar de um filme em que o ponto de vista da maternidade ser tão importante e tão relevante. A questão do prestigio é importante, sobretudo para mim que venho de "bater de frente" com alguns preconceitos e mais do que ser o rosto da luta contra o preconceito prefiro sentir-me como a esperança daqueles que eventualmente em tempos passaram a sentir o preconceito e que podem sentir que é possível. Há vários tipos de preconceitos, mas aqui acho que para além de ser mulher – porque é mais difícil perceber todas as camadas desse tipo de preconceito – é entender que é complexo, porque ninguém chega ao pé de nós e diz: "olha, tu menina, tu mulher, sai daí". Isso não acontece, mas há outro tipo de preconceito que acontece às claras – e sim, existe, não é uma ideia nossa. A partir daí sabe-se com o que se lida.

Sente este projeto como algo transformador? Já conseguiu assimilar tudo?

A transformação existe. E é tão enorme que eu ainda não sei falar dela. Eu ainda não parei, e estou a começar a sentir que preciso, para me focar naquilo que é verdadeiramente o meu trabalho. O regressar e estar a ser recebida desta maneira claro que é fantástico mas começo a sentir necessidade de recolher. Sentar-me ao computador e voltar a agarrar os projetos, voltar a escrever e a focar-me nisso. E sentir que os atores são quem dá a cara, são o filme, para além de toda a equipa. Mas sim, essa transformação existe e não é pequena mas não tem a ver com ficar toldada e fascinada com as premiações.

Mas abrem sempre portas para novos projetos…

São importantes, acima de tudo para mim, para as minhas lutas, para me ajudar a contar as histórias, a abrir as portas internacionalmente. E isso são abraços atrás de abraços, e uma percepção de que é verdadeiramente possível. O mais bonito disto é perceber que às tantas quando estamos muito focados nos nossos objetivos e na nossa forma de tentar levar as coisas para a frente contra ventos, marés, montanhas, tudo, ficamos muito ali agarrados àquele peso. E esquecemo-nos inclusivamente do que pode acontecer no dia em que chegamos ao cimo da montanha e de repente pensamos: "Ai era aqui?" (risos). Chegar lá acima não significa largar tudo e viver ali. É preciso voltar a agarrar nas coisas, lembrarmo-nos desse passo a passo, e continuar o caminho.

Veja o vídeo com a rubrica "Recomenda" com Ana Rocha de Sousa.

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