Pelas 12h30 servi o meu primeiro Martini bianco, como habitual – duas pedras de gelo, duas raspas de limão, cheio até meio. Era sábado, a minha melhor amiga fazia anos e esperava-nos um almoço normalíssimo, não fosse a pandemia obrigar-nos a determinadas cautelas. Estávamos sensivelmente a duas semanas do Natal, e ninguém queria correr riscos. Por isso, toca a enfiar zaragatoas narinas acima antes de nos sentarmos à mesa. Uma hora e três Martinis depois chega o Vasco, de mini na mão, como ar de quem já vem com um certo embalo, vestindo um par de calças Tommy Hilfiger com estampados alusivos ao Looney Tunes, que me intrigou de imediato.
"Bons jeans!", disse, para o provocar. "Boas pantufas!". Obtive como resposta às minhas UGGs casuais, que usava combinadas com uma calças vincadas e uma camisa azul, de forma despreocupada. Servimo-nos de vinho, percebemos que ambos tínhamos escolhido polvo para prato principal – great minds think alike -, e fiquei contente ao vê-lo sentar-se ao meu lado para almoçar. Se há coisa que temo nestes convívios depois dos 30 é a separação de géneros que acontece, quase inevitavelmente, havendo bebés: as mulheres ficam circunscritas a conversas redundantes sobre maternidade, ranho e coisas que desconheço – não por falta de instinto maternal, mas por pura falta de interesse.
Já sentada na mesa onde se reuniam os homens, para onde me escapuli assim que tive oportunidade, discutia-se política e, entre opiniões fortes à esquerda e à direita, o Vasco tendia a correr em meu socorro. "Percebo o vosso ponto, mas estou com a Maria", dizia e repetia. Alguns copos mais tarde, já sem saber se era o álcool a surtir efeito ou se era ele que estava, efetivamente, mais bonito, comecei a observar o Vasco de outra forma. Algo parecia diferente. Tinha-o conhecido uns meses antes, no verão, numa ida à praia do Portinho da Arrábida. Pareceu-me culto, interessante, cortês, mas não houve um clique. Convidou-me para irmos à Feira da Livro, mas fiz-me de muito ocupada e acabei por ir sozinha. Na tarde do aniversário da nossa amiga, ele mantinha a insistência em aproximar-se de mim e, sem saber bem porquê, parecia estar inclinado para conquistar-me.
Quando o tema passou a ser música discutiu-se o porquê de C. Tangana ser um dos melhores artistas e compositores latinos da nova geração. "Tem letras incríveis", dizia, e cantarolava: "A ella no le vale con que le escriba canciones / Ingobernable, el amor de mis amores / Que no me vale / Ni una escalera / Para poder alcanzarte / Ni una pistola / Para poder gobernarte". Enquanto bebia o vinho e o olhava de soslaio, com um sorriso atrevido e uma sobrancelha arqueada, os nossos olhos cruzaram-se. Sorrimos. Ambos sabíamos que a ingobernable ali era eu. A ingovernável, a indomável, a inquieta e a inconformada, entre tantos outros "ins" aos quais podemos somar ainda a inconstante e a incontrolável.
Ao final da tarde dei-me por vencida, entre o álcool e um ego cheio de elogios, descalcei as pantufas e saímos para jantar. "Estás linda para c********, acho que não tens noção disso", disparou, quando ainda nem nos tinham servido as entradas. Corei e aproveitei que continuasse a gabar-me para introduzir algumas das minhas mais recentes dúvidas: "Quero muito ter filhos, mas que mania é esta das mulheres deixarem de ser mulheres para se tornarem mães? Será que todas as mulheres se anulam com a maternidade? Que modernice é esta de viver só em função dos filhos? Percebeste que elas não conseguiam falar sobre absolutamente nada de interessante, mas a coitadinha da solteira era eu?". Assegurei que comigo nunca seria assim, que seria sempre a miúda desempoeirada e sentada no topo da mesa ocupada pelos homens, com opiniões fortes e nariz empinado, e prometi que nenhuma criança serviria de desculpa para desinvestir em mim.
A crise existencial e as minhas opiniões não o assustaram, quanto muito, motivaram-no. Assim que saímos pela porta do restaurante beijou-me e eu retribuí com entusiasmo. Contudo, duas ruas ao lado, já num bar, fui assolada pela dúvida. Enquanto foi buscar bebidas, observava-o do meu lugar e a cada minuto que passava uma nova dúvida me inquietava. A conclusão não tardou a chegar: estava perante um tipo porreiro mas, mesmo regados com doses elevadas de vinho, ele não era o tal, como instintivamente senti desde o início. Mesmo assim, e vendo o meu ar de contrariada, insistiu em levar-me até à sua casa e eu aceitei ir. Descalçou-me repetidas vezes, eu voltava sempre a calçar-me, até se dar por vencido e adormecer no sofá. Tapei-o e saí. Voltei para casa sozinha.
Seis dias mais tarde testei positivo para a covid-19 e o Vasco também. Em lágrimas perante a possibilidade de passar o meu primeiro Natal inesperadamente longe da família, o Vasco sugeriu que celebrássemos juntos o facto de ainda mantermos o paladar e o olfato. "Eu sei cozinhar polvo, tu tens panela de pressão", o melhor parecia mesmo ser juntar os dotes culinários e unirmo-nos na luta contra a covid-19 e a solidão. Parecia a solução ideal, mas eu só pensava na comida da minha mãe, no quentinho da lareira da terra, na alegria dos putos a rasgar o papel de embrulho à meia-noite e nas azevias de grão que era suposto comer ao pequeno-almoço no dia seguinte. Era óbvio que queria companhia para aquele momento, mas não uma companhia qualquer. Eu não queria passar o Natal com o Vasco, por mais triste e sozinha que me sentisse. Por isso, recusei.
Na noite da véspera de Natal sentei-me sozinha à mesa de jantar. Comi bacalhau com natas como em criança e bebi Coca-Cola porque sempre teve os melhores anúncios nesta época. Vi o Sozinho em Casa pela milésima vez e fiz Facetime com os amigos e a família. Mesmo à distância recebi um elogio que me aqueceu o resto da noite, vindo do meu sobrinho mais novo: "Estás com os olhos maquilhados, que eu estou a ver! Estás tão bonita, tia!". A verdade é que, umas semanas antes, de coração irremediavelmente partido e sem qualquer outra fonte de esperança, tinha até à igreja da Graça e feito uma prece: "Por favor, meu Santo António, não me deixes chegar ao fim de ano sozinha outra vez. Não mereço ter amor na minha vida?". A maior ironia é que foi preciso passar o Natal sozinha para entender a resposta.